Um mundo de
diferenças
Nunca silenciarás minhas
melodias,
Porque sou o amante da terra,
O trovador do
vento e da chuva.
Salem Jubran (1941-2011)
Quando F. me pediu
para escrever o prefácio de seu romance, aceitei
sem pensar duas vezes, ao acreditar que com a leitura, vivenciaria novas
impressões dos espaços devastados da Gaza de nossos dias. Meses antes, já havia
saído de uma incômoda experiência, definida pela infindável pesquisa a que me
submeti sobre a cultura palestina, ao concluir depois de muitos anos minha
peça Terra Devastada, cujos personagens transitam de uma realidade
atormentada por bombas e proibições, à realidade etérea da vida após a
morte.
Perguntava-me, o que mais
poderia apresentar o romance de F.? Pois foi essa a bela surpresa. Com a
leitura, não contava deparar-me com a fantasia, com as paixões e angústias como
reflexos de um mesmo espelho, a mover a história, a ilustrar as tensões
subjetivas que escondem seus personagens tão humanos. Em meio a um espaço
conflagrado, eis que emerge o valor dos sentimentos, fazendo o leitor a
compartilhar sonhos e confissões. Os percalços estão nos momentos de lirismo de
cada indivíduo tolhidos pelo genocídio em curso, com o jogo de vozes narrativas
a expandir-se indefinido entre o tempo presente e o tempo passado, entre o
tempo da realidade cotidiana e o tempo mítico, assim como o reflexo nos
espelhos denota a dualidade entre o real e o imaginário.
A dor e o sofrimento pelo
que acontece em Gaza, e mais especificamente, em Rafah, surge aqui e ali, no
transbordamento das personagens, que se sucedem tal qual uma apresentação
teatral, em que a luz da cenografia os trazem ao proscênio para mitigar suas
aflições. E nada parece escapar ao escrutínio das emoções, e o mundo real a
cercear o distanciamento que é lembrado na narrativa indireta, Raquel
nutre em si raiva e indignação. Raiva e indignação pela dor das mulheres que
veem os filhos explodindo pelos ares e pela dor dos filhos diante das mães
desfazendo-se em sangue, ossos e lágrimas (...).
É no capítulo Montanha
Mágica que sobrevém a fantasia, como uma necessidade para contribuir
com os fatos históricos, a ideia de um casal fundador, que uma vez
desaparecidos, retornariam com um exército de anjos para salvar Rafah
dos fuzis e bombas. Não há qualquer incompatibilidade nessa mitologia,
ainda mais se considerarmos o cul-de-sac em que os palestinos
se encontram hoje, cercados e à beira de mais uma expulsão sionista. Como na
poesia de Refaat Alareer, em que uma criança olha para os céus no aguardo de
seu pai, desaparecido em um resplendor, e ao mirar um barrilzinho voando alto,
imagina que ali existe um anjo trazendo de volta o amor e a esperança.
Há sempre a leveza na escrita de F., que enseja a leitura continuada. Os capítulos se sucedem em novas revelações, conectando-as com o já conhecido: a narrativa assim não nos deixa reféns do desconsolo; nas fronteiras de Rafah procura no dar a tensão subjetiva da vida que nos é negada nos relatos jornalísticos. Assim, Emmanuel, Raquel, Ava, Cashemira, despontam com suas dúvidas, embrenhados em uma tormenta psicológica que estremece o ser, tal como as bombas de um inimigo invisível. Em um ambiente de turbulência sem fim, a destruição é simultânea e nada poupa, seja o mundo pessoal com seus afetos, seja o mundo coletivo com a força de uma cultura.
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