26 fevereiro 2025

Carlos Fuentes e Nuestra Latinoamerica


Foto de Fred Herzog


De minha parte, segui de certo modo envolvido com a leitura de La Gran Novela Latinoamericana, de Carlos Fuentes, intercalando com a apreciação deste ou daquele ensaio sobre os escritores de Nuestra America que ele destaca. Uma leitura difícil de abandonar, seja onde for. Não saio de casa sem o volume, e lá estou sentado em qualquer canto, devorando de modo aleatório esta obra que, detendo-se nas idiossincrasias do imaginário, expande-se até nos encontrar no mundo real. 

Com alguns autores Fuentes demonstra um apaixonado envolvimento, e descreve suas obras com leveza, carinho e profundidade, expondo a força característica de seus signos. É assim, por exemplo, quando fala da obra de Lezama Lima e suas eras imaginárias, "se uma cultura não logra criar uma imaginação, resultará historicamente indecifrável", especificamente em Paradiso. De Roa Bastos e seu Eu, o Supremo, ou da Comala do impressionante Juan Rulfo, alinha a versatilidade dos seus aspectos mágicos. 

Assim, o painel apresentado em La Gran Novela... captura o leitor mais alheio à realidade latino-americana. Um painel que se monta e se torna mais atraente à medida que Fuentes avança deste para aquele autor, criando uma espécie de relação entre eles e reafirmando a matriz comum da solene história a que pertencemos, registrada pelo maravilhoso da grande novela latinoamericana. 

O texto sobre o nosso Machado - que ainda não li na íntegra - produz o seguinte comentário: "Machado de Assis, Machado de La Mancha, o milagroso Machado, é um pioneiro da imaginação e da ironia, da mestiçagem e do contagio em um mundo ameaçado cada dia mais pelos verdugos do racismo, da xenofobia, do fundamentalismo religioso e outro, implacável fundamentalismo, o do mercado".

Pois como não pensarmos nossa ficção latino-americana como uma apropriada metáfora de nossa realidade do passado e do futuro? 

(Diários, julho/2012)





18 fevereiro 2025

Reflexões de botequim


A lua da Bela Vista

Mais para além, mais para além da mera intenção em dizer que se está feliz porque, afinal de contas, é um otimista. Assim, Rubem Montillo passou a refletir, enquanto comia sua fatia de pizza, no balcão da Santa Clara. Se a alegria se deve ao caráter quietista do otimismo, a isso em que as coisas se resolvem por uma saudável iluminação do destino, não duvido que logo essa bolha explodirá em lamurioso pessimismo. O otimista convicto não alardeia uma apreensão colorida de mundo para o mundo. Soa piegas e depois, bem, depois o otimismo não é uma graça, mas uma espécie de disposição natural que mobiliza para a ação. Supõe a intervenção humana, consciente, racional, destacando o essencial, a compreensão do compromisso. O fato de estar propenso a por si só revela o estado de espírito otimista por excelência, sendo desnecessário encontrar razões para decliná-lo como uma força mítica.

Desta forma, uma frase como hoje o dia está belo, sem umidade excessiva, sem ruídos, de uma luminosidade suave e morna, e de outra parte sinto uma disposição para escrever, para arrumar minhas coisas, de sorrir e clamar para as pessoas o quanto a vida é bela..., talvez não seja a banalidade desprezível de um pensamento da revista Caras, mas inevitavelmente o início de um torpor indigesto, propondo certo otimismo para terminar no vazio. Um torpor fútil, no caminho da prevalência do supérfluo. As derivas de Montillo esbarraram em uma frase que recordou de Benedetti, o pessimista é um otimista bem informado... Talvez bastasse para distrair-se em seu devaneio.

Mas prosseguiu, avaliou que na pós-modernidade não existe disposição para que as proposições elaboradas sobrevivam. Sem sustentar um olhar apreciativo e condescendente, subsiste à deriva esse ser-aí liquefeito, assustado, preconceituoso, esperando cada qual o seu Godot. Lembrou-se de uma frase de Bauman, não há sonho comunitário vigente, mas a sensação de segregação e exclusão... As amarras típicas de nosso tempo, que arremetem cada vez com mais força ao isolamento e à intolerância, sob a proteção dos muros salvadores. A relação cotidiana pode ser considerada como uma bênção, sempre com conforto e proteção entre os iguais. E Rubem Montillo pareceu chegar a uma conclusão momentânea, antes de pedir a segunda fatia: nesse ambiente asséptico desponta o otimismo pueril dos indolentes, que nada acrescenta a não ser desilusão e miséria.



11 fevereiro 2025

Letra e Alma


Paulo Cesar Pinheiro

Assisti ao maravilhoso depoimento de Paulo Cesar Pinheiro no documentário Letra e Alma, de Cleisson Vidal e Andrea Prates, no canal Curta. Sua fala serena nos remete a uma intensa atividade musical, produzindo parcerias com os grandes compositores de sua geração e das anteriores, de Pixinguinha a Baden Powell. Cantado em verso e prosa por magníficas intérpretes, de Clara Nunes, sua esposa por oito anos, a Elis Regina. Enfrentou a ditadura com coragem, compôs maravilhosos libelos desafiadores, como Pesadelo, em parceria com Maurício Tapajós, Quando o muro separa, uma ponte une/ Se a vingança encara, o remorso pune/ Você vem me agarra, alguém vem me solta.../ Se a força é tua, ela um dia é nossa/ Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando... Estava cansado de fazer letras com metáforas para que a censura não o censurasse, então propôs a Tapajós que fizessem uma canção sem meias palavras. Por incrível que pareça, em um primeiro momento, ela foi liberada, mas logo a seguir, pela grande adesão popular, censurada. 

Censura medíocre, de tão surreal, ou o inverso, surreal de tão medíocre. Sua linda composição, Sagarana, uma singela homenagem ao escritor que admirou profundamente, A ver, no em-sido/ Pelos campos-claro: estórias/ Se deu passado esse caso/ Vivência é memória/ Nos Gerais... Não adiantou, acabou censurada. Sem entender o motivo, afinal não se tratava de uma letra politicamente engajada, dirigiu-se até o escritório dos censores. Eram dois senhores de baixa formação, e o Poeta expôs seu argumento, era apenas uma canção homenagem a João Guimarães Rosa, grande escritor da academia brasileira de letras, que tinha uma linguagem popular, sertaneja, sem qualquer intenção política e coisa e tal... Os homenzinhos pensaram, olharam-se e um finalmente respondeu, manteremos a censura. E por qual razão, perguntou o compositor, ao que responderam, "pode ser uma letra em código".  

Mas o que me encantou em seu depoimento foi o convívio com os avós. Moravam em uma tapera, em Angra dos Reis, e ele sempre que podia ia lá para ficar dois, três meses. Não havia água encanada, luz, nenhum conforto. Os amigos comentavam sobre a pobreza dessa vida, ao que Paulo Cesar respondia que fora a experiência mais rica de sua vida. A avó, india de uma tribo Guarani, que ainda existe naquela região, saía de casa e voltava com raízes e folhas medicinais. O avô cantarolava belas canções, e quando Paulo Cesar lhe perguntava de onde ouvia aquelas sonoras composições (não havia rádio na casa), ele respondia, "ouvia do mar". Nunca viu dinheiro nas mãos de seus avós, praticavam literalmente o escambo, trocavam peixes por outros mantimentos, e assim foi. Paulo Cesar Pinheiro comentou que foi essa convivência natural, simples, poderosa, que o ajudou a superar o uísque e as noitadas da vida urbana. Esse aprendizado foi decisivo para retomar o caminho da vida e manter-se na beleza de suas composições.


07 fevereiro 2025

Os mal-entendidos




Um pouco abaixo, no meu constante campo de visão da janela, observo os jovens estudantes no imenso pátio em frente. Já não consigo precisar suas fisionomias, ou mesmo os detalhes de seus corpos, de suas vestimentas. Sei que estão ali, no intervalo de mais um turno de aulas, circulando por entre os cadeirões, reunidos em pequenos grupos conversando, ou solitários, metidos na fluidez de seus celulares. Para mim, basta apreciá-los e lembrar dos momentos de sala de aula, uma boa lembrança cujo ritual não tenho qualquer desejo em retomar. Estou bem aqui, com minhas rememorações, um bom copo de uísque e a visão que tenho deles. Atrás de mim, as estantes abarrotadas de livros me demandam para outros desafios, mais intrigantes, menos cansativos. Há livros esparramados pela grande mesa da sala, não me incomodo, gosto de retomá-los aleatoriamente. Livros, cadernos, papéis avulsos com resumos de leituras ou esboços de narrativas. Na outra ponta, o material que Jessica deixa para quando vem aqui. Tem sido muito bom trabalharmos juntos, ela oficialmente, ainda vinculada aos semestres letivos, aos trabalhos para congressos. E eu, envolto principalmente com a construção da peça dramatúrgica, recuperando a memória de meu pai. Ele aparece como personagem principal, dialogando com seu pai - meu avô, que mal conheci. Estão vivos e estão mortos, as cenas se confundem nessas dimensões, e nesse componente metafísico, não consigo me distanciar da incredulidade. A dúvida surge como substrato fenomenológico, o que de fato é visto e como se estabelece a relação existencial. O avô morto que não quer se retirar sem antes justificar-se por uma vida desregrada, um filho que não tem o que dizer senão compreender o que viveu. Outros personagens que se aproveitam da situação para igualmente justificarem os mal-entendidos. Persistir no desentendimento pode ser uma forma de interpretar os fatos, e nesse sentido, os argumentos se sucedem. É um tempo de recuperar memórias, tornando-as narrativas, e vejo que a essa altura da vida, as memórias escasseiam e não dão conta da sua abundância descritiva.



06 fevereiro 2025

Cenas que se diluem com o tempo


A capa que não é a capa

 

Ao todo, temos 56 narrativas sobre os acontecimentos cotidianos, que na primeira metade da obra descrevem um conjunto dissonante de expectativas, desejos, gestos harmoniosos, delineados pela condição humana; e na segunda metade, narram os tons mais sofridos, as angústias e tensões que nos inquietam. Instantes observados, apreendidos, descritos amorosa ou dolorosamente: a rudeza da noite no espaço urbano, um passeio a beira-mar, o sepultamento da avó, a carona na companhia de um líder muçulmano, a complexa relação entre pai, filho e avô, o arrependimento após a contratação de um pistoleiro. Nada que pretenda ir além das convenções silenciosas, ou da mera possibilidade do imaginário. Temos aqui uma sucessão de narrativas que testemunham a presença do ser humano como protagonista de seus atos.

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