06 janeiro 2025

O abominável


Foto de Saul Leiter

 

Há momentos em que me aproximo um pouco mais das lembranças de minhas atuações políticas, claramente mobilizadas pelos embates sindicais e pelo ímpeto de solidariedade, que por um tempo abraçõu a tantos jovens. Mas a era amarga do liberalismo, conectada com outras forças ideológicas mesquinhas, abreviaram e sepultaram os mais rudimentares desejos de engajamento. No português mais claro, demos com os burros na água. Tenho belas passagens parcialmente registradas, o que me permite ainda recuperar algumas lembranças. Os episódios ficam mais visíveis do que as fisionomias, ou seja, as boas disputas políticas do passado estão menos apagadas do que aqueles que estiveram ao meu lado, codo a codo en las calles. 

Há aspectos que consigo preservar com boa lucidez, os autores e a literatura que estudei. Mais do que ler, aprofundei-me em meia dúzia deles pelo prazer, pela beleza, pelo encanto narrativo e talvez isso faça diferença, o frescor das palavras que persistem presentes. E justamente o exercício imaginativo da literatura me faz recordar situações das minhas experiências políticas, de muito antes das aventuras sindicais, que já não sei discernir se fazem parte da realidade ou da ficção. 

Na época do ginásio, de um dia para o outro surgiu um professor cuja única fidelidade com a educação era o indispensável jaleco branco, que vestia quando entrava na sala de aula, esbaforido, já atrasado. Sua expressão emanava um vazio profundo naquilo que queria dizer, provavelmente porque sempre estava atrás do que as pessoas tinham a dizer. Muito se contou depois que fazia parte das catacumbas frias do regime de exceção, onde utilizava o seu vigor físico para arrancar informações de prisioneiros. E que havia sido posto ali para intimidar professores com seus modos bruscos. Quanto a nós, jovens alunos, tínhamos mesmo um desprezo por ele, que se consolidou quando Jocilei, o mais camarada da classe, perguntou por que o jaleco, naquela tarde, estava tão manchado de sangue. 



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