31 janeiro 2025

Enquanto isso


Café e Literatura

Soube que Estela se foi. Schuman passou por aqui e de modo bastante sucinto, talvez por estar incomodado com alguma reação minha. Não ficou nem para um café. Foi quando Jessica me perguntou quem era Estela, que me dei conta que não me recordava dela com precisão. Quis confirmar com outros amigos que trabalhavam no mesmo emprego, como Rosaldo e Fonseca, mas eles não se recordavam dela. Ou melhor, Claudemir até se recordou vagamente, mas disse que Estela era de outro setor, do jornalismo, e que nunca tinha mantido contato com ela. Fiquei a lamentar a dolorosa displicência dos amigos e o meu completo apagamento. Seu nome não me era estranho, nem sua atividade paralela, como delegada sindical: participava das reuniões de lideranças, das assembleias dos dissídios salariais e nos trazia informações da cúpula dirigente. Era o que Schuman tinha me dito, mas não me lembrava de sua aparência, de sua presença junto de nosso grupo de amigos. Havia um número grande de colegas que participavam fortemente da política interna da empresa, era um bom tempo para isso, saíamos do período da ditadura, queríamos mudanças. Atrás de nós, vinham todos aqueles que também queriam coisas diferentes e acreditavam em nossas ações. Comecei a recordar de muitos representantes sindicais, que se alternavam à medida que fracassávamos em nossos pleitos. Fora isso, havia a perseguição encoberta por parte da direção da empresa (quando não por parte da própria direção sindical) o que impunha atitudes furtivas, firmes e coletivas, porém cuidadosas. O fato de Estela ser do setor de jornalismo fazia com que atuasse como os demais, com força nos princípios, mas igualmente com bastante discreção institucional e, bem, isso era assim com todos. Eram muitos rostos anonimos que desfilavam diante de mim, rostos de fantasmas, de jovens que não existiam mais. Mas Schuman deve ter tido uma razão subjetiva para vir me informar e cá estou, tentando escarafunchar minhas relações daquele tempo. Foi difícil ouvi-lo lamentar, em meias palavras, que não compreendia como eu havia esquecido a importância de Estela.



28 janeiro 2025

O chatbot chinês


Em uma parede de Nápoles


O mundo segue sob o estrebuchar de uma direita desvairada, que regurgita ameaças sem um princípio sensato, sem uma virtude objetiva. Promove em escala mundial o ódio, a segregação, o individualismo, o medo, a desrazão. Não foram apenas os decretos assinados por Trump em sua posse, por si só um gesto simbolicamente arrogante, mas os ecos dessa empáfia que percorreram o mundo, formatados nas declarações de Milei em Davos contra a pluralidade de gênero, e mais recentemente, em repetição às diatribes de Trump em relação ao México, prometendo construir um muro na fronteira com a Bolívia, um muro de 200 metros, cuja serventia é desconhecida. Como Trump e Milei, espalham-se os falastrões, pequenos, médios, grandes, com o entusiasmo de promover um radicalismo neoliberal do qual não assumem as consequências éticas, políticas, sociais, e que ali na frente se encontra com os dogmas fascistas. Somos um planeta que adoece sob a destruição por um capitalismo demente, que produz em escala jamais vista antes bilionários na medida que empurra milhões de seres humanos para a vala comum. A trégua em Gaza é um acontecimento bestial, pois a partir desse momento artificial de paz, podemos acompanhar as dezenas de milhares de pessoas regressando aos seus lares, sobreviventes, caminhando e levando seus corpos sob os escombros. Nada sobrou, e muitos foram mortos sem misericórdia. O objetivo principal, o resgate dos reféns israelenses, só ocorre agora com as negociações, que podiam ter sido encetadas no começo. Ruínas, morte, destruição, isso me parece a imagem desse capitalismo pernicioso, que blasfema e se militariza, enquanto fenece. Uma pequena empresa chinesa golpeou em quase 1 trilhão de dólares as poderosas companhias estadunidenses do setor de tecnologia ao desenvolver um chatbot bom e barato. Trump vai espernear, mas o que pode fazer, sancionar os chineses? Não vai dar certo. Gastar um dinheirão a mais? Pode ser. Bater na mesa como um valentão? É provável, mas isso não impedirá que ele entenda o movimento dos mercados (que ele tanto ama) em torno das melhores oportunidades.



21 janeiro 2025

Os ninguéns, os nenhuns, os ignorados


foto de Todd Webb


Sueñan las pulgas con comprarse un perro; y sueñan los nadies con salir de pobres

Los nadies, Eduardo Galeano.


Desde ontem, os números apontam mais de 100.000 visitas acumuladas desde o início do blog, há mais de 16 anos. Não é um número exuberante, se considerarmos que a média foi em torno de 17 visitações diárias. Na verdade, não me impressiono pela quantidade, mas por alcançar uma marca redonda e significativa, 100.000. De onde procederão esses números, quem são essas visitações, faz sentido considerar os dados expressos friamente pelo Google, que relaciona a presença de países tão discrepantes como Singapura ou Lituânia? Seja como for, está aí a marca, e desse imenso conjunto de visitas, por certo existem leitores reais e sensíveis, que dedicam alguns instantes para a leitura dos textos. 

Ontem tomou posse Donald Trump, pela segunda vez. Se a sua primeira passagem revelou-se um tempo doloroso e nada inspirador, deste vez ele já começa tomando medidas fortes, como a retirada dos EUA da OMS, mais investimentos na exploração de combustíveis fósseis - e podemos imaginar que irá ignorar a COP30 no final do ano, em Belém - além de trazer ao procênio do poder figuras radicais como Marco Rubio para o Departamento de Estado, Linda McMahon para a educação, Robert Kennedy para a saúde (um sujeito negacionista, anti-vacinas), além do pior de todos, Elon Musk, como autoridade para a eficiência do governo. Esse sujeito já se apresentou ontem fazendo claramente o gesto nazista ao final de seu discurso. Serão tempos difíceis. Ontem mesmo Cuba retornou à lista de patrocinadores estatais de terrorismo, menos de uma semana depois de Biden retirá-la da malfadada lista. 

Penso no cessar-fogo em Gaza, no movimento das pessoas retornando não para suas casas, mas para os seus entulhos. Netanyahu fez um serviço colossal, tornando o território palestino inabitável, com mais de 90% das construções devastadas, sem alimentos, sem saúde, sem educação. Tudo destruído pela sanha sionista, que não está satisfeita com essa trégua. Uma paz delicada, que pode terminar a qualquer momento, com novos e violentos bombardeios. Uma paz que não garante desenvolvimento social, ou um mínimo de autonomia, que não deixará de ser tutelada pelos drones do exército de Israel. Uma paz tão frágil quanto a estrutura de uma bolha de sabão. Já começaram as trocas de reféns - sim, Israel também fez reféns palestinos nesses 15 meses de conflito, como Khalida Jarrar, membro do Conselho Legislativo Palestino. Com Trump, não há perspectivas favoráveis para uma paz duradoura.

Trump representa o que o capitalismo moderno, ou o que se denomina por alguns analistas, o neofeudalismo, tem de mais significativo a oferecer: arrogância, violência, descomprometimento com o mundo, na medida em que os interesses do Make America Great Again sejam questionados. Um bufão, que passará o rolo compressor nas minorias latinas e que tomará medidas draconianas, sem a menor consideração. E o pior, será seguido e amado por legiões de inconsequentes, de farsantes políticos, de racistas, de jornalistas submissos, que levarão seu poder aos rincões mais insalubres do mundo, preservando-os como tal.


 

08 janeiro 2025

Ainda estamos aqui


Foto de Gregory Crewds

Dois anos do fatídico ataque bolsonarista à Praça dos Três Poderes, numa intentona grotesca, produzida por gente igualmente grotesca. Muitos, não tantos, foram punidos pelos atos de vandalismo, que objetivavam a derrubada do governo recém-eleito democraticamente. Com o passar do tempo, ficou claro que as intenções por trás das falas de Bolsonaro, e de seus generais golpistas – como por exemplo lançar dúvidas sobre a urna eletrônica – não passava de uma cortina de fumaça para toda a ação pretendida com o objetivo de realizar um golpe de estado. 

As gravações recuperadas nas investigações da PF demonstram o quão essa gente esteve perto de realizar a derrubada de Lula, com sua prisão e assassinato, juntamente com Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Morais. Aliás, foi graças a Xandão, com ações oportunas e tidas por muitos como autoritárias, que impediu o sucesso golpista. Enfim, o pior é que não dá para se dizer que essas hostes degeneradas aprenderam alguma coisa. A democracia venceu, mas é comum ouvir versões aqui e ali de apoio à trupe inconsequente. Só agora as obras do Planalto foram restauradas, o que permitirá sua exposição pública. Com muito custo as políticas públicas foram retomadas e seguem seu curso, permitindo a recuperação do poder de consumo das famílias. 

Mas a sombra do golpismo permanece à espreita, e não sabemos o que teremos nas eleições de 2026, que se aproximam com rapidez. Ainda não vejo uma força popular, democrática, que se apresente de maneira consistente e convincente para a sociedade. O nome de Lula é o único que aparece, mas não vejo como possa lançar mais uma candidatura sem criar forte resistência à direita. Há uma triste impressão de que as atitudes necessárias para impedir uma nova versão da patuscada de 2022 não foram tomadas. Ainda se percebe que esse tumulto brancaleonico encontra respaldo em significativas parcelas da população, haja vista as provocações a respeito do filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, um sucesso nacional com mais de 3 milhões de espectadores, que conta de maneira muito delicada o que foi a violência do estado de excessão da ditadura, e mesmo assim produzindo detratores. 

O que veremos em 2026, que tipo de candidatura, uma vertente trumpista, um fantoche das elites ao estilo Milei? A se considerar o lamentável episódio Pablo Marçal, nas eleições paulistanas, podemos ter dolorosas surpresas. A democracia terá força para redigir um programa de governo capaz de vencer não apenas a eleição majoritária, mas de fazer maioria no legislativo?



06 janeiro 2025

O abominável


Foto de Saul Leiter

 

Há momentos em que me aproximo um pouco mais das lembranças de minhas atuações políticas, claramente mobilizadas pelos embates sindicais e pelo ímpeto de solidariedade, que por um tempo abraçõu a tantos jovens. Mas a era amarga do liberalismo, conectada com outras forças ideológicas mesquinhas, abreviaram e sepultaram os mais rudimentares desejos de engajamento. No português mais claro, demos com os burros na água. Tenho belas passagens parcialmente registradas, o que me permite ainda recuperar algumas lembranças. Os episódios ficam mais visíveis do que as fisionomias, ou seja, as boas disputas políticas do passado estão menos apagadas do que aqueles que estiveram ao meu lado, codo a codo en las calles. 

Há aspectos que consigo preservar com boa lucidez, os autores e a literatura que estudei. Mais do que ler, aprofundei-me em meia dúzia deles pelo prazer, pela beleza, pelo encanto narrativo e talvez isso faça diferença, o frescor das palavras que persistem presentes. E justamente o exercício imaginativo da literatura me faz recordar situações das minhas experiências políticas, de muito antes das aventuras sindicais, que já não sei discernir se fazem parte da realidade ou da ficção. 

Na época do ginásio, de um dia para o outro surgiu um professor cuja única fidelidade com a educação era o indispensável jaleco branco, que vestia quando entrava na sala de aula, esbaforido, já atrasado. Sua expressão emanava um vazio profundo naquilo que queria dizer, provavelmente porque sempre estava atrás do que as pessoas tinham a dizer. Muito se contou depois que fazia parte das catacumbas frias do regime de exceção, onde utilizava o seu vigor físico para arrancar informações de prisioneiros. E que havia sido posto ali para intimidar professores com seus modos bruscos. Quanto a nós, jovens alunos, tínhamos mesmo um desprezo por ele, que se consolidou quando Jocilei, o mais camarada da classe, perguntou por que o jaleco, naquela tarde, estava tão manchado de sangue.