30 dezembro 2024

Tempus fugit


Foto de Ernest Haas

 

Uma imagem recorrente sobressai de minhas recordações. A jovem garota de longos e ondulados cabelos castanhos, sorridente, ladeada por dois outros jovens que eu conhecia de vista das salas de aula. Caminhavam em meu sentido, pelo corredor das classes de pós-graduação. Logo tomaram a direita, dirigiram-se ao balcão da lanchonete, pediram seus cafés e se acomodaram em uma mesinha à esquerda onde eu estava com meu livro e minha timidez. Pensei: que linda mulher! mas logo em seguida, como uma condição inseparável dessa conclusão, Jamais conseguiria me aproximar de tanta beleza e inteligência juntas! Sim, porque ela conduzia a conversa com os dois rapazes, de um modo leve, altaneiro. O sorriso da bela jovem me marcou profundamente, cintila diante de mim até hoje, com suas reconstituições imaginárias, que naturalmente borram, revisam, iluminam partes do cenário, de acordo com meus desejos. E sempre amei aquele jeito descontraído, impossível de proporcionar indiferença. Sempre comento para Jessica que aquele foi o primeiro lampejo de maravilhamento que nos levou a uma aproximação metódica, contínua, dez anos antes de nos conhecermos. Naquele momento fiz o que me era possível, acompanhar seus gestos e vê-la partir com seus amigos de volta à sala de aula. O tempo se incumbiu, por caminhos inesperados, em conceder o reencontro nas circunstâncias da vida que sedimentaram uma apaixonada união. Ela costuma rir dessa minha predestinada lembrança e apenas confirma que naquele momento não teríamos ficado juntos. Concordo, o tempo foi generoso nesse sentido. Hoje ela está ali, docemente acomodada no sofá, em meio a sua leitura, a cabeleireira linda como sempre, os óculos inseparáveis que lhe dão mais charme. A bem dizer, o tempo não passou para o nosso amor, permanece edificando possibilidades para nossos sonhos comuns.



26 dezembro 2024

Uma recatada cabeleireira


Foto de Saul Leiter

Descobri esta recatada cabeleireira na galeria, em frente ao meu prédio. Já adquiro uma série de serviços nesse agradável espaço, em que possui bancos de praça, pequenas lojinhas, chão de caquinhos de cerâmica. Por ali circulam dezenas, às vezes centenas de pessoas dependendo do horário, que entram por um lado e saem por outro, observando as vitrinas, conversando com os proprietários, consumindo algum produto. No meu caso, gosto de frequentar o café Alma, logo na entrada de baixo, levar meus sapatos para o seu Canuto, exímio sapateiro, e minhas roupas para Vanda, minha costureira de anos. Lugares e pessoas bons de se visitar. Hoje, dia seguinte ao Natal, muito pouca gente. Elza, a cabeleireira, está aberta, aproveito e faço meu cabelo, um corte simples, só para aparar os excessos. Ela vem do interior de Goiás, tem o acento característico de quem se originou, como dizia Antônio Cândido, no território da Paulistânia - um espaço que inclui partes de Minas, do Mato Grosso do Sul, de Goiás, do Paraná e claro, do interior de São Paulo. Trata-se do sertanejo caipira, com seu jeito simples, acolhedor, desconfiado. Elza usa sua tesoura com capricho, enquanto me conta animadamente as coisas de sua vida, sua luta, seu passado, seus anseios. Tem tatuagens nos braços, o cabelo curto em um estilo punk, um sorriso permanente, mesmo quanto relata seus temores por andar pela cidade grande. Por isso apoia a polícia, odeia os vagabundos e tem uma definição não muito incomum: eles são os que estão nas ruas, não importa se desempregados ou bandidos, claro que não concordo e digo - minha única fala - que a miséria é uma construção social. Ela não entende, ou não quer entender, muda de assunto, ou não, quando se entusiasma ao falar de sua coragem, que não deixa de enfrentar sozinha os dilemas e as ameaças da vida. Se diz uma guerreira e bem denoto em sua expressão facial, através do espelho, o olhar da gata acuada prestes a saltar. Comprou a lojinha há pouco e os clientes marcam horário. Eu tive a sorte de passar em frente em um dia esvaziado. Conta dos irmãos que trabalham com a terra, no sul do Pará, mas não quer voltar. Conta da vida pacata que foi em Porangatu, das frustrações, das chateações, está lendo um livro de autoajuda sobre como se comunicar. As tesouradas são lentas, precisas. Gosta de assistir filmes do velho oeste e diz que vivemos a mesma realidade, e que vive com medo. Andar pela cidade, só com a luz do dia. Certamente contaria outros segredos se um cliente aleatório não chegasse para fazer a barba. 



22 dezembro 2024

Derradeiros passos encharcados


Foto de Harold Feinstein, 1969

Negociou com um Zé-ninguém a execução, um sujeito que mora num bairro distante. Sai para ver à distância o crime, um longínquo sentimento de amor e ódio o conduzem. Encontra na emoção forte – o assassinato que irá presenciar e a relação com a sra. Gubrech – o elixir para desencantar sua narrativa (e não sua vida - confusão entre realidade e ficção).

O dia chuvoso do crime. O sr. Martinez se emociona ao se preparar para ir ao local. Ônibus para a Paulista. Chuva forte, a água que alaga as calçadas e escoa como cachoeira pelas ruas transversais. O trânsito. Protela ao máximo, faltam duas horas, quer chegar antes e observar por alguns minutos o homem que desconhece seu destino.  

Pensa: Como serão os derradeiros passos encharcados do desconhecido? Afinal, por que esse pobre homem foi o escolhido? Não faz ideia. Certa vez, o viu em uma banca de livros na rua. Vestia uma camisa vermelha e como não gosta de vermelho, pronto, decidiu. Desloca-se então e encontra o sujeito, em sua brutal insignificância, no lugar de sempre. Está a poucos metros dele, sente asco. Desiste, não quer ver o desenlace contratado. 

Agora se exaspera: é o matador que não cumprirá o trato. Torce por isso. Tenta avaliar um contraplano que impeça o avanço da engrenagem. Circula pela Paulista. A água sendo retirada por rodos pelos empregados. Caos, desaba o mundo em água, foi uma péssima ideia se refugiar no Conjunto Nacional. O nível de água sobe, sufoca, desfalece, não sabe nadar, submerge aos poucos, sem que encontre alguma ajuda redentora.



10 dezembro 2024

Novas e nem tão frescas aragens




No domingo, houve a queda do governo Bachar al Assad, na Síria. As informações são desencontradas, embora tendam a aliviar as análises do grupo que tomou o poder, outrora um braço da Al Qaeda. Divulgam-se as notícias de que o ogro foi derrotado, amparadas por depoimentos de populares que temiam o ditador. A verdade é que a Síria deverá permanecer fragmentada, mais ou menos como ocorreu na Líbia, onde não foi possível (ou não foi permitida) até hoje a reconstrução da nação. 

Neste mundo de controle e segurança os velhos déspotas podem cair, mas o que se sucede é o fracasso da unidade política e a consequente fragmentação dos interesses, cada qual sustentado pela geopolítica redigida pelas potências militares, os novos déspotas. Há pouco lia uma matéria que apresenta o conceito tecnofeudalismo, do economista grego Yanis Varoufakis, onde, de modo rápido e simplista, "a extração de valor tem se deslocado cada vez mais dos mercados e para plataformas digitais, que operam como feudos ou propriedades privadas". O tema não vem ao caso, talvez discutirei em outra ocasião, já estou cansado disso. Do meu ponto de vista, a manu militari com suas ogivas e foguetes apenas comparece para corroborar o poder do capitalismo e dessa sua nova roupagem, basta que vejamos, por exemplo, como Elon Musk dá as cartas a partir de seus interesses.  

Nada parece satisfazer a alguém, e ao mesmo tempo todos permanecem felizes com esses desmembramentos das nações, ou com o poder das plataformas digitais. No primeiro caso, anula-se a presença política anterior, enquanto se escancara as portas da exploração das riquezas naturais; no segundo caso, amplia-se a sensação de liberdade pelo direito ao consumo, com a subsequente preservação das relações capitalistas e tecnofeudai). Nações desmembradas não têm como influir em seus destinos: por mais que as populações demonstrem alívio, a verdade é que elas permanecerão em um estado de subalternidade, com um ganho desprezível de liberdade individual. E padecerão cada vez mais pobres, vide a Argentina de Milei, um sucesso para o chamado mercado, uma agonia para o grosso da população. 

Esse prolongado enfraquecimento da voz social deseja se confundir com a difusão dos direitos individuais. Mas o silêncio permanece, estressa, segrega, e se manifesta no fim das contas como um ensinamento covarde para a sobrevivência.