30 outubro 2024

Psicopatia política


por Enrico Natale


Para se assumir uma função de destaque na diplomacia, há que se ter sangue de toureiro, e estar preparado para muitas noites insones. Para se assumir uma posição na diplomacia que esteja contra o mundo, há que se comportar como um psicopata, ou em outras palavras, ter um desprezo pelo mundo. Mais uma vez foi votada na ONU, de maneira inequívoca, a condenação pelo bloqueio que os EUA impõem contra Cuba. Foram 187 votos pela resolução, uma abstenção (?) vinda da Moldávia, e os dois solitários votos contrários, Estados Unidos e Israel. Nada muda: a posição do governo estadunidense prossegue férrea, não apenas mantendo o embargo econômico, comercial e financeiro, como estabelecendo sanções contra as empresas que o rompem. Nada muda, o isolamento, a deterioração econômica, o sofrimento da população cubana prosseguem, como se ainda estivéssemos nos tempos da Guerra Fria, como se Cuba, de fato, representasse uma ameaça à segurança e à existência dos EUA. 

Em uma inesperada resolução diplomática, a Argentina votou contra o embargo, na Assembleia da ONU. Terá sido uma decisão à revelia do ministério de Relações Exteriores? Como consequência, Milei exonerou a chanceler Diana Mondino. Em comunicado oficial, o escritório da presidência declara que "iniciará uma auditoria do pessoal de carreira da Chancelaria, com o objetivo de identificar os impulsionadores de agendas inimigas da liberdade". Ou seja, a perseguição macartista (e não a liberdade) avança.

Enquanto isso, o novo objetivo atacado pelas forças de Israel no Líbano foi Baalbek, cidade designada como Patrimônio Mundial da ONU para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) em 1984. Existem exemplares bem preservados de templos romanos, alguns datados de 3.000 anos. Como em outras situações, em outras partes da Palestina e do Líbano, a população é obrigada a se deslocar, em razão dos ataques preparados contra alvos do Hezbollah.  


23 outubro 2024

Estesia noturna




O que me desperta a atenção não é apenas o silêncio que se instala repentinamente, mas a absoluta ausência de ação. De um tempo para cá, o início das madrugadas se passam semelhantes, umas vezes mais, outras menos: vou até a janela da sala e fico sob a luz mortiça da noite, observando a não-presença de pessoas, de carros, de animais, de vento, de ruído, em uma rua que durante o dia tem o porte e o volume de uma avenida. Em frente, a faculdade absorve para depois despejar centenas de estudantes. Ao redor, bares e restaurantes carregados de clientes, de conversas. Nas galerias, o clima convidativo da primavera leva as pessoas a sentarem nos bancos públicos na companhia de seus cães. É interessante morar em uma centralidade com escritórios e apartamentos residenciais. Ao lado, o cinema com as sessões regulares e seus habitués, principalmente nesse período de Mostra Internacional. As calçadas estreitas revelam, pela manhã, um fluxo para um lado, e à tardezinha, para o outro, no sentido do metrô. Só os indigentes não têm movimento determinado e ficam pelos caminhos. À essa altura da madrugada, suas queixas também serenam, sob seus cobertores encardidos. Então, lanço meu olhar para dentro da sala e vislumbro outra classe de apaziguamento, a quietude de meu amor. Ela, com seus cabelos longos e cacheados, ocupa a mesa de trabalho, e lê, redige, estuda. E me encanta. De tudo, agora, ouço apenas o rumor da chuva, não se pode dizer que foi repentina, as chuvas, como a peste, o amor e as palavras, se anunciam de alguma forma. Talvez seja ela a razão pela quietude profunda de hoje. Não tenho sono, e sob o aroma aprazível da noite, me aproximo da grande mesa e me acomodo silencioso, ao seu lado.   


07 outubro 2024

Gaza, Argentina, São Paulo


A obra de Netanyahu


Hoje completa 12 meses, um ano, de combates e destruição em Gaza. São contabilizados 42.000 mortos, sendo 16.750 crianças e 10.000 desaparecidos, números que mesmo Kanafani ou Said teriam dificuldades em imaginar. Pouco ou nada sobrou do pequeno território palestino de 360 quilômetros quadrados. E não há previsão no horizonte de expectativas de paz duradoura. A propósito, não vejo mais a chance de que, depois dos ataques recentes ao Líbano e Síria, seja possível algum tipo de acordo fechado em uma mesa de negociações. Ela, quando vier, será estipulada pelos Estados Unidos e União Europeia, de acordo com os propósitos estipulados pelo governo Netanyahu. Simples assim. Se não existe qualquer confiança do governo israelense para com os palestinos, agora mais do que nunca são os palestinos que não têm qualquer confiança em um acordo equânime com Israel. E nem pensar no Hezbolah e no Irã. Qualquer cessar-fogo duradouro parece ter ficado absolutamente impossível neste ano que passou. Ainda não há notícias sobre os 97 reféns restantes nas mãos do Hamas, o que parece incrível depois de uma ocupação minuciosa de Gaza. A eliminação de Nasrallah e de praticamente todo o comando do Hezbolah, os bombardeios contínuos no Líbano fazem com que Netanyahu não se detenha em sua sanha sanguinária, até o ponto de restaurar à sua maneira alguma paz na região. O forte ataque do Irã há uma semana mantém pendente uma retaliação israelense, que não se sabe como nem quando ocorrerá, mas que em todas as hipóteses, ampliará dramaticamente o cenário de destruição e morte.

Depois das marchas dos aposentados e, na semana passada, das universidades, o governo Milei sentiu mais uma vez a voz das ruas. A grande questão que fica é, até que ponto esse ruído afeta um presidente que dá mostras de não se incomodar nem um pouco com o bem-estar da população. Nos dois casos, vetou o aumento de verbas para ambas as categorias, sob a patética desculpa de não comprometer o equilíbrio das contas públicas. Balela! O impacto no orçamento não passaria de 0,14% do PIB argentino, o que, mesmo para quem diz que no hay plata, o valor é irrisório. Considerando que a inflação prevista para este ano estará em torno de 150%, praticamente sem reposição salarial, com perdas acumuladas do poder aquisitivo, o cenário de pobreza, atualmente em 52,9% da população, só tenderá a aumentar. 

Guilherme Boulos (PSOL) e Ricardo Nunes (MDB), o atual prefeito, disputam o segundo turno em São Paulo, ficando de fora o candidato surpresa destas eleições, Pablo Marçal. Um outsider sem qualquer profundidade intelectual, e que ficou menos de 1% atrás de Boulos (56 mil votos), o segundo colocado. O mais absurdo foi que, durante uma hora, das 17h35 às 18h39, o segundo turno indicava Nunes e Marçal! A grande pergunta: quem é capaz de ser seduzido pelas "ideias" de Marçal? O fato é que, ainda que o PT tenha feito a maior bancada de vereadores, 8 no total, ela é irrisória diante da frente de partidos conservadores e de direita, que deverão controlar a Câmara. No total, os partidos progressistas, incluindo o PT, não soma 20 das 55 cadeiras, prometendo problemas em um eventual governo Boulos - o que me parece muito difícil de acontecer. No Brasil também prevaleceu uma onda conservadora, que deixa as perspectivas para as eleições de 2026 bem sombrias.