23 setembro 2024

Um bom amigo

 

O Spree

Caminhamos longamente, eu e Florian, pelos meandros de Mitte; ele me levou a um centro labiríntico de pequenas lojas e cafés, um conjunto moldurado por simpáticos jardins e cafés. Almoçamos ali mesmo, em uma cantina com jovens atendentes. O que nos atendeu falava o espanhol, conversamos rapidamente sobre o cardápio e sobre Madri, sua cidade. Quando se retirou, eu e Florian fixamos os olhares pelos recantos surpreendentes do lugar, em completa introspecção. Estávamos em uma cantina encravada no piso inferior de um pátio aberto. Tratava-se de um ambiente em terreno irregular e cuidadosamente adornado por árvores esguias, com densa folhagem. A semana em Berlim me deixara com os pés estropiados, sem condições de marchar adequadamente no ritmo de Florian. Pensava nas coisas boas e nos lugares pitorescos que tinha visitado sem forçar a caminhada, e agora com Florian, as coisas mudavam um pouco. Atendia-me nas solicitações insistentes, Nous ne pouvons pas marcher si vite... ou então, On doit réposer un peu... Vez ou outra despertávamos da letargia para falar sobre os muitos encontros no passado. Em certos momentos, como aquele, compreendíamos a importância de desfrutar um pouco de silêncio, para não fazer nada mesmo. Nunca alimentamos a necessidade de preenchermos o tempo com a exigência de uma conversa. Desde o início, sabíamos instintivamente da importância em permanecer calados, em tranquila introspecção. Le jour est très agréable... comentei, antes de referir-me à visita que certa vez lhe fiz, ao longo de uma única jornada. Buscou-me na estação de Frankfurt ainda de madrugada e fomos para sua cidadezinha. É provável que tenha vivido mais intensamente esse dia do que muitas semanas da minha vida. Foi nessa ocasião que, juntamente com Mildred, sua companheira na época, singramos de barco pelo Neckar até desembarcarmos em um pequeno Café solitário, no sopé de uma montanha, para descobrirmos que se tratava de um recanto brasileiro, pela música com Jorge Benjor e pela proprietária carioca, que nos recebeu alegremente alternando o alemão e o português. Desta feita, ali estávamos em Berlim, cidade que por incrível que pareça, conheço melhor que ele. Guardava minha quietude pelos pequenos prazeres do momento, e pela fortuna em poder contar com um bom amigo que em outra língua, era capaz de me ouvir e fazer seus comentários. Sim, desta vez em Berlim, eu esperando Mônica, Florian solitário, pois Kim estaria em um congresso de turismo em algum lugar da Alemanha. Pergunto sobre seu pai, ele me responde, oh, ça va, ça va... um mês após a festa dos noventa anos, que preparou juntamente com seu irmão e seus filhos.

(atualizado em 05.11.2024)



09 setembro 2024

O legado de Milei


by Gregory Crewds


Milei é o projeto mais bem-acabado da injúria humana. Para as corporações, ele representa um avanço na sociopatia empresarial, uma simpática forma de sociopatia, sempre almejada e, por razões óbvias, sempre postergada. Pois o novo tempo nas relações do trabalho chegou, com Milei sendo seu mais importante porta-voz. Para esclarecer devidamente: ele elabora a canalhice, alcançando um limite que descarta retorno, e por essa razão, é aplaudido freneticamente nesses encontros restritos à casta dominante. Diz o que pensa, a partir do mantra secreto das maldades de quem manda. Sua política não propõe nada, a não ser o esgarçamento dos limites que regem o comportamento humano. Como se fosse um híbrido de humano com máquina, seu objetivo é devastar, tal como uma motosserra devasta a floresta para o pasto do agronegócio. 

Ao defender o livre mercado, na verdade Milei emite sinais claros para o mundo corporativo, é como se dissesse do modo mais claro e miserável, Desatem suas amarras, ajam livremente para alcançar os melhores resultados com mais lucros e menos custos, e dane-se o resto. Milei ascende ao proscênio para garantir procedimentos técnicos de destruição, não importa a dimensão da fome e da desesperança. Tem liberdade de ação, garantida pelo cartel midiático-financeiro. Seu papel, guardadas as devidas cicunstâncias de cada momento histórico, tem procedência na subserviência arrogante de um Quisling: o que um fez para destruir uma democracia, o outro faz para destruir as relações humanas sensíveis. 



08 setembro 2024

A invisibilidade do poder real


A última ceia em Gaza, por Mohammad Sanobari


Ontem completou 11 meses do massacre contínuo das FDI contra o povo palestino de Gaza, sem que o mundo tome qualquer providência. Que força misteriosa desse poder invisível, que garroteia a mídia internacional e os políticos das nações. Em qualquer circunstância semelhante, haveria uma condenação irrestrita ao governo israelense, seguida de sanções econômicas. Exceto em algumas situações pontuais, nada ocorre. É como se essa região do planeta não existisse, indiferente aos movimentos massivos da população, forçada a se deslocar de um lado para o outro, segundo as determinações das FDI, antes de realizarem seus bombardeios chamados de "cirúrgicos", mas que matam dezenas de pessoas inocentes. Por muito menos, condena-se moralmente e sanciona-se economicamente a Venezuela, depois das eleições no país. 

A cada semana que passa a figura de Milei se assemelha mais a um marionete: seus movimentos e sua fala são produzidos por outras mãos e outras vozes, tão poderosas quanto ocultas. Suas constantes aparições públicas sinalizam duas certezas, com as quais lida sob esse apoio sinistro: a destruição da cultura argentina e a preservação dos privilégios dos grandes grupos econômicos. Por cultura argentina, incluo os hábitos e costumes da população mais pobre, condenando de modo gradativo mais porções sociais à vala comum. A classe média corroída, vai se dissolvendo em uma massa de indigência. O quadro a curto prazo é de fome e desesperança, e ainda não é possível dizer até onde o massacre da serra elétrica irá prosseguir. Some-se a isso a violência policial contra as manifestações, quaisquer manifestações, em um contraponto bizarro da alardeada liberdade. Recentemente a polícia de Bullrich atacou os aposentados em marcha nas ruas - e o silêncio tumular da classe política dá mostras de companhar, como que anestesiada, as diatribes do presidente. 

Enquanto isso, temos uma profusão de torneios e campeonatos de futebol, que se sobrepõem avidamente, como um entretenimento eficiente ao sofrimento do mundo. O pior de tudo são as mesas de análises táticas, mas deixemos esse aspecto para outra hora. Não bastam mais os campeonatos nacionais de clubes, cada vez com mais ganância intercalam os torneios internacionais sem fim, expandidos ao sabor da ambição política e financeira. Não há mais limites para os novos formatos, para as novas disputas, os cifrões se acumulam, tudo sincronizado a uma grande roleta de apostas, amparada por tabelas estatísticas que sinalizam os desempenhos. Nada permanece, tudo se transforma. Atletas transformados em índices de rendimento, torcedores tranformados em massa de manobra, espetáculos cada vez menos populares e mais elitistas. O Capital multiplica seu investimento construindo novas modalidades de controle, com garantia plena de retorno, a banca que não perde. E o mundo civilizado, submetido à roleta que não para de girar, faz do cidadão o convidado à mesa para sangrar e perder. A carnificina não parece ter fim, e se insinua cada vez mais invisível, sorrateira, diante da parvoíce da maioria.

(atualizado em 09.09.2024)



03 setembro 2024

As duas mortes de meu tio


Tiergarten, 2024

Meu tio Edson morreu na sexta-feira passada. Nunca mais o vi desde a morte de minha avó, há 25 anos. Naquela ocasião, também a última que estive em Cambé, ao desembarcar na rodoviária, em meio a uma madrugada suave e agradável, me esperavam ele e meu pai: eram as únicas almas vivas do lugar, cena que descrevo com detalhes em um de meus contos. 

Mas o que queria dizer é que essa foi a segunda morte de meu tio. A primeira ocorreu quando eu tinha meus seis ou sete anos e brincava na rua quando vi encostar uma kombi com dois sujeitos, que desceram e apertaram a campainha de casa. Quando se retiraram, minha mãe me chamou, Vamos viajar para Cambé, seu tio Edson morreu. Não tínhamos telefone, de modo que um conhecido da família que viria para São Paulo se incumbiu de trazer a notícia. Meu pai chegou em seguida, para o almoço, e mamãe lhe comunicou o fatídico. Lembro-me que ela sugeriu passar um rádio para Cambé, anunciando nossa viagem.

À tarde já estávamos na estrada em nosso fusca, com seis pessoas: meus pais, meus pequenos irmãos, eu e minha avó materna, que nos fazia uma visita. Ao longo da viagem, vovó não afastou a mão do rosto, em um claro sinal de desconsolo. Chegamos à noite e fomos avisados que não tinha sido meu tio que falecera, mas seu filho e meu primo de dois anos, Antonio Carlos. Lembro-me também de meu avô relatando, para nós, o drama dos últimos momentos da criança, minha tia saindo aflita para a santa casa, enquanto ele pedia para esperar, enquanto amarrava os sapatos.

O certo é que foi com alívio que constatei que meu tio estava vivo. Sempre gostei dele, de sua maneira extrovertida de ser, do jeito alegre de lidar com a vida e com as situações humanas. Visitava-nos com frequência dirigindo seu caminhão, e nos recebia em sua casa contando histórias divertidas. Lamentei, ao longo da vida, não ter experimentado uma viagem ao seu lado, na boleia de um caminhão, e sentir o dia a dia de uma viagem pelas estradas do Brasil. 

Sobreviveu sessenta anos desde sua "primeira morte", para ao final sucumbir velho, pobre e esquecido, na simples companhia de sua esposa, minha tia Maria Inês. A juventude da família naqueles verdes anos propiciou rapidamente o imediato reencontro de todos, diferente de agora, em que a velhice que nos alcança impede a possibilidade da última despedida

Esse episódio da comunicação equivocada serviu para que decidíssemos comprar o primeiro telefone de casa, e em seguida, um para meus avós. Ficaríamos, por fim, conectados de maneira direta, de tal modo que nem mesmo a morte ousaria nos surpreender.