Papai respira pausadamente, com a força de um passarinho. Passo a mão em sua cabeça fria e ao tocar a testa, há uma reação dos olhos que imagino de proteção instintiva. Nada mais do que um gesto vago da região ocular. Está com a expressão mais tranquila que ontem, como se já visitasse a dimensão sem limites. Ou como se tivesse acertado tudo por aqui e aguardasse o chamado. O modo sereno que impregnou-me ao longo da vida, mesmo agora, não se exalta; ou se não há mais consciência, mesmo agora, seu corpo se aquieta, encontrando uma paz quase absoluta. A minha voz interior se agita e pergunta, Sente dor? E mais outra vez, Sente alguma dor? A mesma voz responde, Pergunte a ele, e me responde, Como pode sentir dor, veja como guarda sua mansidão. Já não se trata da dignidade mantida ao longo de uma vida, mas esse desejo único de retirar-se em silêncio. Uma retirada que poupa os olhos afoitos das especulações, não quer isso, nunca quis, sempre soube avaliar os momentos com orgulho e a disposição renovada de amar. Não precisou frequentar templos para aprender sobre o perdão. Quando me narrou que aos quatro anos acompanhou a retirada do corpo inerte de sua mãe, da janela de cima da casa em que vivia, perguntei se não tinha guardado mágoa ou rancor. E para quê? Eles não conseguiram retirá-la de meu lado, e assim a amo até hoje, e para todo o sempre.
Esse é um breve
relato sobre a situação social e econômica da Argentina, sob o governo Milei,
conforme informe da octava ronda, produzido pela Unicef Argentina.
Seguem os dados:
- um milhão de
crianças dormem sem jantar;
- 1,5 milhão de
crianças deixam de se alimentar em alguma refeição durante o dia porque seus
pais não têm recursos para comprar;
- 54,9% da
população (mais da metade) é pobre;
- 20,3% da
população, uma pessoa em cada cinco, é indigente (abaixo da linha de pobreza);
- 70% das
crianças vivem em situação de pobreza;
- 30% das
crianças vivem em pobreza extrema;
- 9% das
famílias resolveram dar baixa nos planos de saúde;
- 4,5 milhões de
adultos deixam de comer alguma refeição durante o dia para poder dar de comer
aos filhos;
- ao menos 10
milhões de crianças ingerem menos carnes e lácteos porque a renda da família não
é suficiente;
- em 2024, 15%
dos que sustentam as famílias perderam seus empregos.
Enquanto isso, Milei
se jacta de seu governo promover superávit fiscal no semestre (o primeiro desde
2008), ao mesmo tempo que anuncia a baixa da inflação (4% em julho!). Serve a
quem tais informes? Ao grande capital financeiro, que redimensiona seus
interesses. Eis a face do chamado capitalismo libertário. Com grandes sacrifícios, extrai-se os números positivos de uma
economia moribunda em um país cuja população, a médio prazo, começará a chiar.
Fome, redução de
consumo de bens e serviços, tarifaços, queda da produção industrial, encerramento
de atividades no comércio, fim dos subsídios (como no transporte), privatizações
no horizonte das reformas econômicas, anunciadas quando há um desinteresse
generalizado do mercado internacional por investimentos na Argentina... Milei
não se preocupa com nada, a não ser os números de mercado.
Há um desconsolo
completo, quase uma apatia generalizada, que imobiliza a população em sua
rotina diária. Os informes chegam dos canais de comunicação não hegemônicos, a partir de registros e entrevistas nas ruas, com lideranças políticas locais ou mesmo com o cidadão
comum que perambula desacorçoado rumo a seus afazeres.
Ao reduzir o poder aquisitivo dos trabalhadores, sobrevém as
consequências indeterminadas sobre a desesperança em relação ao futuro. Retomemos
a fome, registrada nos dados acima, por um organismo idôneo como a Unesco, como a mais
terrível dos tenazes a forjar o sofrimento sem fim nas camadas mais
populares.