30 abril 2024

Narrativas


Última cena, 1958

Sinto-me (...) iluminado pela jornada, onde prevaleceram as conversações com meu pai. Não há mais como manter qualquer enfrentamento, querida, e disso já me dei conta há algum tempo; sinto-me muito melhor ouvindo-o em seus relatos, que me trazem o conhecimento de minha própria origem. Olhares sofridos, de coragem, de dor, de afeto, e de uma longa trajetória de vida, onde sem dúvida prevaleceu a reprodução de um cotidiano muitas vezes sem graça, repetitivo, mas de onde surgem relatos pungentes, como se me fizesse personagem de uma outra narrativa mítica, forjada em disputas, amor, conquistas, em grande medida, por desesperança superada pela persistência. Novos e velhos personagens relidos por novas interpretações, em alguns casos pelas descrições mais serenas e prolongadas, em outros, pela memória que, sem ser a mesma, não confirma as mesmas lembranças de outras narrações. Aproveitei, assim, o tempo bondoso junto ao meu pai. 

A ceia trouxe, para mim, essas superposições da vida, passado que projetou o futuro e nos oferece o presente, todos ali, com as certezas que podemos ter, com as ausências que não podemos evitar. Como se cumpríssemos uma nova etapa de renovação, como você cita em sua fala, preparando-nos para mais um ciclo de vida, com todas suas boas e desagradáveis surpresas. Nosso tempo cronológico sempre 'zerado' com as festas de final de ano, a partir do congraçamento, das reflexões. Somos fortes e imaginosos, e competentes o suficiente para, nos momentos de mudança, sabermos como improvisar e descobrir novos 'caminhos epistêmicos' para a vida. Tenho sentido já há algum tempo nas falas de meu pai uma concordância com a verdade suprema, e talvez por isso sua leitura da vida surge tão límpida e tranquila. Repassa assim os passos erráticos do pai, a perdição de uma mãe tuberculosa peregrinando solitária rumo a Campos do Jordão, os episódios com os primos-irmãos, as peculiaridades de sua aproximação com o mundo de minha mãe, histórias, que bem vejo, também me pertencem...

(...)



Sobre o nefasto que nos atribula


O mar quebrado

 

Há que se ter força e determinação para enfrentar as hostes de um conservadorismo bronco que se esparramam ameaçadoras, por todas as partes. Em sintonia com outras épocas históricas, surgem amparadas por interesses econômicos poderosos, tornando o embate muito desigual. Apenas ir para a rua não parece a solução adequada, essa direita ressurge obscena, fútil, despreocupada com as consequências de uma esquerda mobilizada. Em sua luta pelo poder, desprezam seus adversários, tratando-os como inimigos, promovendo cruzadas sucessivas, ao preço que for, contra os novos infiéis. 

Não lhes falta dinheiro e disposição para a farsa, haja vista o que ocorreu recentemente com o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sanchez, atacado de maneira vil por um flanco inesperado, a integridade de sua esposa, Begoña Gómez. Inicialmente disposto a renunciar ao cargo (felizmente desistiu de fazê-lo), Sanchez declarou que “não vale a pena” caso “mentiras mais grosserias substituam o debate respeitoso e racional baseado em evidências”. Essa direita ressurgida na farsa acintosa e movida pela corrupção moral, não parece dar sinais de compreensão da dignidade e do respeito ao próximo.

Não resta outro modo de agir à essa direita senão a mentira e a violência. A primeira é um bólido substituível por outros bólidos, mais possantes, a segunda se perpetua na carne e no imaginário. A primeira se realiza através da reprodução maciça orientada por uma pulsão de morte, que transborda silenciosa os espaços digitais e se cala no coração dos incautos. A outra é uma consequência da primeira, trata de reavivar a alma perecida com a energia irascível da intolerância, do ódio, da ignorância, os três espectros que se movem nas charnecas do ser e o fazem silenciar ante todas as evidências do gesto insano, agora cometido com naturalidade e presteza. 



22 abril 2024

Pétalo Nauseabundo, crônicas


O novo livro de crônicas

E eis que já se encontra em pré-venda, junto à Ópera Editorial, e com 20% de desconto, meu segundo volume de crônicas, Pétalo Nauseabundo, no endereço https://operaeditorial.com.br/produto/petalo-nauseabundo/.

Este livro compõe o segundo volume de crônicas, que dá continuidade a O que aparentemente nos resta (Kotter, 2022). Os relatos aqui presentes abordam o período 2020-2021, e a imagem de capa, de meu arquivo pessoal, remete a uma cena urbana de Puerto Vallarta, em minhas andanças pelo México, em 1997. 

No total, são 36 crônicas, com uma apresentação e um posfácio, que sinalizam um período sinistro e devastador para a população brasileira. Tal como descrito em uma delas, "Passamos por um momento tenebroso e muito triste (...) com as políticas de aniquilamento das redes de proteção social, dos direitos trabalhistas, da educação pública". Foi o tempo em que a Covid-19 avançou e ceifou quase 700 mil vidas, sob o olhar condescendente de um desgoverno hipócrita, "que em sua irresponsabilidade cognitiva condenou uma nação ao opróbrio". 

Mas nem sempre prevaleceu o horror: ao longo do livro, desvela-se aqui e ali um olhar mais auspicioso, presente em reflexões sobre o cinema, sobre a literatura, sobre a educação, enfim, sobre a esperança da vida, tal como ela pode e deve ser.

Abaixo, destaco um fragmento de uma crônica:

A noite se faz mais escura que de costume, pois a vejo diante de mim, absoluta, quebrada por um punhado de luzinhas tremeluzentes ao longe. O silêncio da cidade desconhecida não me assusta, não estou cansado ou mesmo deslocado. Não me sinto no meu lugar, e não me esforço em torná-lo, após a superação do estranhamento, simpático. Na verdade, não sei o que faço aqui. Nas inúmeras viagens que realizei por tantas partes, o momento mais ingrato sempre foi a chegada, e o mais triste, a partida, e assim foi em todos os lugares, pequenos, grandes, confusos, atraentes, feios, bonitos. É difícil superar o inesperado na chegada e a amargura da partida. Desta feita, o estranhamento não se desfaz e prolonga-se já como amargura. Sentimentos muito sutis, que vão e veem, sem se incomodar comigo. (...) Há uma brisa que se esgueira pelo quarto, deixando-me serenamente acolhido, absorto em meus pensamentos, isso é um bom sinal. Foi muito fácil chegar até aqui, mas será muito complicado sair, haverá um tempo de espera que parecerá eterno, sem ser ameaçador ou ingrato, como um passeio em torno de uma ratoeira de mentira, que simboliza, despreocupada, o fim de qualquer ilusão, o que também pode ser uma mentira. O lusco-fusco da tarde se acentua, há uma chance de que se possa compreender esse tempo nebuloso e seguir adiante. É isso, estar aqui não me confirma a realidade nem a ficção, não é possível fazer mais do que acreditar, para saber se o que vai acontecer será bom ou meramente desnecessário...



03 abril 2024

Eduardo Galeano, Las palabras andantes

 

Serigrafia, J.Borges


Janela sobre a cidade (I)


Sob os portais da praça, um faquir tragou umas tantas colheres e está engulindo uma mangueira de regar jardins, enquanto suas mulheres tocam flautas e pandeiros e algumas pessoas atira moedas.

Perdido em um canto, alguém move os dedos no ar. Os dedos dançam, como se tocassem a trombeta. Da trombeta invisivel nasce uma música triste.

Uma velha envolta em farrapos anuncia sua poção mágica contra a pobreza, o melhor presente de Natal, a cem, a cem, o frasquinho, quem comprou se salvou, quem duvidou se ferrou. Ninguém a escuta. A mil, a mil, anuncia um profeta a iminente visita do Messias, e a multidão clama:

- Je-sus!

Junto ao profeta, um leão ruge. Cada vez que ele move o rabo, ruge. A mil, a mil, oferece o profeta, vão passando, senhores, os eleitos o verão, o escutarão, a mil, vão passando.

- Forte aplauso que já vem! Já está baixando! Já está chegando!

- Je-sus! Je-sus! vocifera a praça, e os rugidos do leão acompanham os gritos e os aplausos da gente que bate palmas com os pescoços virados para o céu.

O céu, mascarado pelos gases dos motores, não pode ver a multidão que o vê.


(do original Ventana sobre la ciudad (I), em Las Palabras Andantes, de Eduardo Galeano, Siglo Veintiuno, Buenos Aires, 1993)