Kanafani |
Lula retoma as rédeas do poder e isso me deixa feliz. Basta saber que ele está de volta, com seu governo democrático, para dar um sossego e uma esperança. É como se voltássemos a cuidar dos assuntos da oficina, sem ter de lidar com as borrascas que ameaçam inundar a oficina. Que dê as suas cabeçadas, ou antes, que fale as coisas atropelando as espectativas midiáticas, dane-se, ele dá de dez a zero no banana que ocupou a cadeira da presidência nos quatro anos anteriores. Ao menos sei que as reservas indígenas, a educação, a saúde, o emprego, a justiça, as pessoas menos favorecidas, voltam a ter atenção de um governo. Hoje, é difícil dizer o que será no futuro, mas o país volta a ficar apaziguado, momentaneamente.
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Comprei os dois volumes de Ghassan Kanafani publicados pela Tabla, Homens ao sol e Umm Saad, que se juntam aos já devorados Contos da Palestina, publicado pela saudosa Brasiliense, em 1986. Ainda não os li, só bisbilhotei algumas páginas de cada um, nada pude apreender além da delicadeza e do bem escrito: "Acordara naquela manhã. O funcionário do hotel tinha levado a cama até o terraço, pois dormir no quarto naquele calor úmido era impossível. Assim que o sol nasceu, ele abriu os olhos. O tempo estava lindo e calmo, e o céu ainda estava azul, com pombas pretas voando baixo. Ele podia ouvir as asas batendo quando as aves sobrevoavam o hotel num círculo amplo. O silêncio era total (...)".
Dá gosto de seguir com a leitura de Kanafani, ela nos oferece um compartimento secreto, em que desvendamos suavemente um mundo que pode ser acolhedor e gentil, de pessoas fortes, de uma terra sábia. Sua escrita me atrai, e é uma penas saber que alguém tão valoroso não pôde oferecer mais por sua terra tão sofrida, a não ser o poema escrito, a luta sofrida e o sangue de sua morte. Tenho orgulho de tê-lo acrescentado como personagem em minha peça, quando ele debate a questão palestina com Said. Está claro que poderia ser algo mais extenso e intenso, mas o desenho da peça se completa com sua breve e momentânea presença.
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O outono tem sido muito generoso, pelo menos até o sábado passado, com sol aberto ao longo do dia, elevando gradualmente a temperatura das madrugadas, que giravam em torno dos 13 ou 14º.C. Foram semanas que considerei agradáveis, porque com o passar dos anos suporto menos o frio paulistano, e sem uma chuvarada sequer. No domingo, a transformação prevista pelos institutos de climatologia: tempo fechado com chuvas esparsas, e desde ontem, as chuvas prosseguem intermitentes, acompanhadas pela queda da temperatura. Carlos Pachamé deixou a casa de seus pais como de costume, na segunda-feira pela manhã, um pouco mais tarde que de costume por ter ajudado seu pai a levantar-se da beira da cama. Estava quase pronto em seu quarto quando a mãe bateu à porta, chamando-lhe respeitosamente.
Ela o conduziu ao quarto do casal e lá estava o pai de joelhos, sem conseguir se erguer para a cama. Perdeu já há um bom tempo a autonomia para os movimentos que exigem mais energia. Queria ir ao banheiro e por alguma razão perdeu o equilíbrio e ficou ajoelhado. Foi uma tarefa difícil reconduzi-lo à cama para em seguida sair com as pernas e caminhar até o banheiro. Pachamé permaneceu um tempo com eles, do banheiro regressaram ao quarto e por fim ajeitou o pai na cama para descansar o restante da manhã. Antes, Carlos colocou a mão na cabeça do pai e fez perguntas breves, coloquiais, está bem agora?, vai dormir um pouquinho?, juízo, vou para a minha casa, nos vemos em breve, um beijo... ao que ele balbuciou frases desconexas, entremeando um sorriso débil e sincero. Carlos Pachamé não os verá por duas semanas, tempo que lhe parece cada vez mais longo e avassalador.
(atualizado em 31.05.2023)
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