07 junho 2022

O estado da política




Há três anos, quando amargávamos a terrível experiência do desgoverno atual, que avançava paulatina e criminosamente, sobre os fundamentos do estado democrático de direito que ainda sobreviviam, na Argentina vivia-se a graça da reconquista do poder e a esperança de um governo de reconstrução social. Emulava-se o espírito de uma vitória decisiva, em que as virtudes do projeto nacional sepultaria os pequenos neoliberais a mando do mundo financeiro, com suas garras e seu oportunismo. Os anos se passaram e agora vivemos por aqui na antecâmara desse estado de euforia libertadora, que mais além da alegria vivenciada no país vizinho, promete trazer os efeitos similares ao orgulho da vitória dos franceses em 1944 contra o nazismo. De outra parte, a esquerda argentina, ou melhor dito, o peronismo autêntico mais claramente representado hoje pelo kirchnerismo, vive um momento de impasse político, para não dizer de relativa turbulência, ao constatar que as conquistas foram muito tímidas, sob o comando de Alberto Fernandez, abrindo um enorme flanco para que as forças conservadoras se reorganizem e, malgrado sua política de terra arrasada (para os trabalhadores e as classes menos favorecidas) ameacem fortemente vencer as eleições do próximo ano.

Essa gangorra de altos e baixos, que resulta em sucessivas perdas (jamais recuperadas) para o Estado do bem-estar social, expõe suas limitações quando atua no poder - seus representantes eleitos parecem aceitar o mantra liberal da imperiosa necessidade em flertar com os grandes grupos privados, para mais tarde propor oferecer um "grande acordo", traduzido por algumas migalhas como conquistas sociais. Nossa América Latina alimenta esse mantra, do Peru ao Chile, do Uruguai à Argentina. Quando houve alguma recusa nesse comportamento, como nos casos do Equador, Bolívia, Venezuela, a reação dessa burguesia multinacional (e ignara, quanto aos desígnios de uma nação) é brutal. No Brasil, se considerarmos o período da chamada "redemocratização", a partir de 1985, não é difícil perceber como as classes menos favorecidas foram extorquidas com o passar dos anos, com um delicado interregno no período dos governos do PT. Agora, o estado da política nos sugere que recuperaremos - em alguma medida - o poder decisório a partir de outubro, ou novembro, o que poderá ser alvissareiro não apenas para lambermos com mais cuidados e recursos as feridas abertas, como para enviar uma mensagem ao mundo. Ela será mais alta, clara e altiva quanto mais hegemônico for nosso poder.

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Abaixo, um pequeno painel do momento político na Argentina, representado pela estranha ascensão de Milei, um desses políticos que emergem no lodo liberal, e muito bem descrito. O trecho foi retirado do texto de José Luiz Lanao que merece ser lido na íntegra, En la cama con Milei. Neofacismo y sexualidad, publicado na Revista Tecla Eñe, maio de 2022.

(...)
La relación entre fascismo histórico y misoginia explícita, demuestra que las ideas sobre la inferioridad natural de las mujeres es una de las bases de sustentación del pensamiento autoritario y del fascismo social. Se necesita inferiorizar para dominar, porque la justificación de superioridad de ciertos seres humanos sobre otros, se hace en base a características supuestamente naturales. El desprecio a la mujer justifica y legitima su subordinación, subyace a toda forma de dominio, y en parte legitima la violencia como recurso para imponer un orden social imaginario. Para que la cultura del odio progrese es necesario colocar a las personas contra las personas, distorsionar los hechos, atacar la solidaridad, declarar los movimientos de emancipación social como amenazas. 

Así, en la política argentina nos encontramos, sorprendentemente, con un fascismo sin fascistas. Almas que habitan otros cuerpos, que van y vienen, antes de regresar al suyo. Palabras que se han diluido, que han dejado de ser. Eufemismos semánticos que consiguen enmascarar ambientes de lo más “fascistoide”, de enorme pureza, sin que lo parezcan. Así es como Milei se presenta como un chico “libertario”, algo travieso, empecinado en peinarse detrás de una turbina, con unos dientes de leche que hace tiempo que se le han caído. Quien domina el lenguaje domina la realidad. Vamos a pagar muy caro estas vilezas semánticas adornadas de serena frivolidad. Este neofascismo de pandereta se puede convertir en esa gran ola que se gesta lejos de la orilla, donde no alcanza la vista, en medio del mar, y que minutos después acaba por romper en la roca bajo nuestros pies.
(...)


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