26 junho 2021

Xeque-mate!

Na Síria, 500 mil mortos em dez anos de guerra civil

Foi preciso chegarmos na sessão de ontem da CPI da Covid, no Senado, para que se desmascarasse, de modo conclusivo, o caráter do desgoverno do ex-capitão. Foi um xeque-mate, propiciado pelo depoimento de um deputado de sua própria base parlamentar. Sem discussão. O choro do sujeito, sem entrar no mérito de seus motivos, foi patético, de alguém que ainda se esforçava por acreditar nas intenções do ex-capitão. Xeque-mate! Fim de jogo! Desabou a cara de pau de um desgoverno que se sustentava em um falso discurso de honestidade. A denúncia do deputado envolve a omissão criminosa desse sujeito que ocupa a cadeira da presidência de nosso país. Não sobrou nada, não havia nada, só seus seguidores empedernidos se recusavam a crer! Até aqui o ex-capitão só cumpriu o que prometeu no primeiro mês de seu governo: destruir, para depois construir. Destruiu a base da civilização brasileira, e construiu o edifício de seus interesses e de seus apaniguados. 

Nos 28 anos de sua desqualificada presença no Congresso, trabalhou em causa própria e de sua família. Isso apenas sinaliza a tragédia de sua eleição. Sobre os escombros da ruína que produziu na saúde, na educação, na pesquisa científica, na cultura, no emprego, na indústria, na Amazônia, repousam os corpos de mais de 500.000 mortos pela pandemia. No lugar de um combate eficiente ao vírus, com vacinas, com distanciamento, com uma política que envolvesse as esferas públicas do país e a conscientização de toda a população, optou por brincar diante da fogueira e se limitou a divulgar medicamentos inúteis. Optou também pela indiferença diante da insuficiência de equipamentos hospitalares. Nesse ínterim, passeou de moto, desafiou jornalistas, alimentou com carne de suas vítimas as hidras alucinadas que o tomam por mito e adoram ouvi-lo, tal como um Macbeth desvairado, "Mas fartei-me/ De horrores: o terror, já acostumado/ Com os meus pensamentos homicidas/ Não me surpreende mais".  

Agora não há mais para onde correr, para onde fugir, o rei está nu, derrotado em todas as linhas, xeque-mate! Resta abandonar o tabuleiro e desaparecer. Poderá, quanto muito, prorrogar sua desfaçatez, explorando ainda mais o que sempre teve à disposição, violência verbal e corrupção.



23 junho 2021

Fadwa Tuqan فدوي طوقان

 

Ruined Landscape, de Tagreed Darghouth


Pouco ou nada sei ainda sobre a poeta Fadwa Tuqan. Pelos raros sítios na internet que divulgam informações a seu respeito, nasceu em Nablus, na Palestina, em 1917 e lá faleceu em dezembro de 2003, quando sua terra se desintegrava sob a ocupação israelense. O que já aprendi de sua lírica de amor e resistência me entusiasma a utilizar seus poemas patrióticos em minha peça, Terra Devastada, de maneira peculiar, declamado como um sopro que sussurra ao público a luta e o sofrimento de seu povo. 

Abaixo, um fragmento do poema (traduzido para o português) que antecede a ação dramatúrgica do primeiro ato. 

  

A previsão do oráculo نبوءة العرافةة (fragmento)

1.

Quando alcancei meus 20 anos

Uma antiga vidente me disse:

"Os ventos em seus sopros me contaram sobre ti

Disseram:

Os encantamentos do mal penetrante estão aqui

Em sua casa, a fraqueza e a destruição

Permanecem e continuam entrelaçadas

Até que chegue o cavaleiro consagrado escolhido

Os ventos em seus sopros me informaram

Que o cavaleiro vem

E não é fraco nem indolente

 

Os ventos me disseram que ele vem

por um caminho aberto

por trovões e relâmpagos"

 

Por que não perguntou a eles por mim

Ó vidente dos ventos

Quando vem o cavaleiro consagrado?

"Quando a recusa se tornar

Em eco e holocausto

As entranhas desta terra o expulsarem

De seu corpo com horror

Mas os ventos em seus sopros

avisaram: Tenha cuidado

Com seus sete irmãos

Avisaram: Cuidado

com seus sete irmãos!"

Sob as fissuras de meu teto rachado

Parei na varanda aos pedaços

Sonhando com o vir a ser

Esperando pelo porvir

Ouvindo a pulsação da semente enterrada

Que agita o útero da terra

Amamenta o coração no invólucro

Ó química de vida e morte...

Quando a recusa se tornar

Em eco e holocausto!

(...)

 

(tradução: Renata Parpolov Costa)



18 junho 2021

Kusadasi, 1994

 

Kusadasi ao fundo

Utilizei-me do serviço desses pequenos ônibus chamados de dolmus diversas vezes, já que eram mais baratos e mais frequentes do que táxi ou carona, por exemplo. (...) É curioso, pois não temos a noção exata de onde são as estações rodoviárias (Otobus) ou as paradas desses dolmus (Otopark). Em Kusadasi (Kushadasi) eu tinha o mapa da cidade nas mãos (e a indicação clara de um Otopark) e uma vez no lugar, não havia nada, nenhuma construção (...) que indicasse ser uma estação. O que havia era uma movimentação de peruas Peugeot diante de dois ou três toldos e uma pequena fila sob cada um deles. Arturo, o amigo americano, perguntou em inglês onde se tomava a condução para Ephesus e alguém apontou um dos toldos. O terminal de dolmus em Kusadasi não passa de um ponto, onde as peruas chegam, param por poucos minutos, recolhem os passageiros e partem ao seu destino. Não há demora exagerada, 15 minutos se tanto, seja para a localidade que for. 

Para Ephesus, tomamos o carro que ia para Selçuk (Seltchuc), ao norte. Teríamos de parar no caminho e fazer uma caminhada de uns 500m. Eu e Arturo fomos os últimos a embarcar, sentamo-nos em um banco lateral, ao lado da porta traseira. Éramos um grupo de treze ao todo, e havia estrangeiros, sendo um casal de australianos de meia idade e outro casal de língua inglesa. A perua iniciou seu percurso, para nós que iríamos a Ephesus, uns 16 km, serpenteando pelas montanhas cobertas por vegetação rala, que irrompiam de um terreno visualmente áspero e seco, sem que meus precários conhecimentos de geologia ajudassem a definir sua natureza. O motor 1.500 rosnava sob o sol aberto e nas subidas, não passávamos de 40 km/h.

Estabeleceu-se o silêncio, os de língua inglesa mal trocavam umas palavras entre si, de quando em quando um breve comentário de uma efêmera impressão; os turcos, estes se compenetravam no percurso. Uma mescla de atenção e desligamento, em que o corpo e a mente se deixa levar enquanto repousa em pensamentos passageiros. Havia sido assim nas viagens anteriores nessas conduções, uma serenidade atenciosa, olhavam fixos para frente, como se este comportamento fosse parte de um costume secular arraigado em seus espíritos. 

De minha posição, vendo-os de perfil, podia observá-los longamente, era como se nem desconfiassem de minha presença. Os da terceira fileira denotavam um ar de bondade intensa nas faces vincadas. Os homens vestiam o infalível terno em tons acinzentados, no rosto a eterna barba por fazer e bigodes. Eu insistia em meu olhar perscrutador, provocante, queria arrancar-lhes um gesto, um movimento facial, uma rusga de descontentamento, mas nada, seguiam determinados a observar, calados. Moviam as cabeças quando o movimento do carro assim lhes exigia para equilibrar o corpo, uma questão meramente física de ação e reação. (...) 

O dolmus de tempos em tempos, parava e então desciam ou subiam passageiros. Os que iam descer pronunciavam algo e se estavam na parte traseira do veículo, faziam o dinheiro da passagem chegar ao motorista de mão em mão. E assim íamos, cada qual em busca de seus destinos: eu, Arturo e os de língua inglesa, em busca de novas referências históricas (...), e nossos impassíveis companheiros turcos cumprir seus afazeres diários. Um encontro ao acaso que corria sem trocas. 

Mundos paralelos que se espremiam em uma van, com propósitos completamente distintos. A certa altura passei a observar a paisagem despojada e imaginar o que aquelas montanhas já não haviam presenciado, quantas legiões já não haviam trilhado seus caminhos sinuosos em outras épocas, igualmente em busca de um objetivo. (...) 

(atualizado em 19.06.2021)



01 junho 2021

Ernest Hemingway

 

Ernest Hemingway

Foi por um desses dias de outono que constatei já ter vivido mais do que Hemingway, o que me deixou surpreso e reflexivo por uns momentos. Que coisa mais louca: naqueles anos em que descobri sua literatura e o lia com alguma regularidade, pensava em sua figura envelhecida aos sessenta anos. Admirava a riqueza de suas narrativas curtas e a beleza singela da novela, O Velho e o Mar. Festejou a Paris do entre guerras, lutou na Espanha contra Franco, viveu em Cuba a tempo de encontrar Fidel. Parecia-me incansável, ao mesmo tempo que insatisfeito com a vida e com sua literatura. Separava-nos quarenta anos, ele era como um avô rebelde, que no final aceitara dar cabo à vida em um recanto de Idaho. Tenho empilhados aqui na estante de meu quarto uma dúzia de seus livros, boa parte a serem lidos algum dia. Hoje eu seria um irmão mais velho e confesso, não saberia lhe dar um bom conselho.