Eduardo Galeano |
Quando adquiri meu primeiro livro de Galeano, As Veias Abertas da América Latina - não saberei dizer se adquiri ou se expropriei de uma livraria de um centro comercial - confesso que não sabia praticamente nada deste maravilhoso autor, que nas décadas seguintes, lentamente, ganharia minha profunda admiração. Ainda não havia conhecido o Uruguai, mal relacionava os problemas políticos que, então, açodavam o Cone Sul com a distinção mais cruel dos regimes ditatoriais, a tortura e a remoção de pessoas para não mais serem encontradas. Estávamos no último ano da década de 1970 e muita coisa ainda haveria de ocorrer até tomar consciência do drama de nuestra América Latina.
Em um certo sentido o texto de As Veias Abertas... foi a porta de entrada para um primeiro contato. Passei a estudar o período, em seguida viriam minhas primeiras viagens ao Uruguai e Argentina, e então estava maduro para autores como Benedetti, Cortázar, Márquez. Só mesmo na primeira década deste século foi que mergulhei de maneira profunda e arrebatada nas aventuras do realismo maravilhoso latino-americano, pois ele pressupõe todos os elementos contraditórios que compõem nossa realidade. E não demorou para que agregasse a minha pequena biblioteca, novos autores de nosso continente espoliado, Onetti, Roa Bastos, Fuentes, Dario, Storni, Rulfo, e não só os literatos, como os sociólogos, historiadores, políticos, Rama, Mariátegui, Romero, além daqueles que representam a síntese de nossa tragédia barroca, Carpentier, Lezama Lima.
Fiz muito pouco com tantos autores maravilhosos, que de algum modo ajudam a compreender minhas raízes, minha relação com este continente antropofágico e mestiço. Foram leituras limitadas até aqui, e míseras linhas escritas sobre o que somos, como começamos e para onde enveredamos. Mas certamente Eduardo Galeano tem sido um bom companheiro de meus pensamentos nestes dez últimos anos. Nestes dias de confinamento pelo vírus, agrupo seus livros que disponho para declamar seus escritos para minha tão amada Moniquinha, em nossa rádio Balmaceda, em nosso programa diário La Noche con Poesia. Declamá-lo, assim como outros autores e autores em na língua espanhola nos acalenta, além de adormecer lindamente meu amor.
Abaixo, uma de suas pequenas peças em
prosa, dedicada a outro admirado autor, que conheci em minhas andanças por
Buenos Aires, o poeta Juan Gelman.
GELMAN
O poeta Juan Gelman escreve
elevando-se sobre suas próprias ruínas, sobre sua poeira e seu lixo.
Os militares argentinos, cujas
atrocidades teriam provocado em Hitler um incurável complexo de inferioridade,
o pegaram onde mais dói. Em 1976, sequestraram aos seus filhos. Levaram-nos em
lugar dele. Torturaram a sua filha Nora e a soltaram. Ao filho, Marcelo, e a
sua companheira que estava grávida, assassinaram e os fizeram desaparecer.
No lugar dele, levaram seus filhos porque ele não estava. Como se faz para sobreviver a uma tragédia assim? Digo: para sobreviver sem que se apague sua alma. Muitas vezes me fiz essa pergunta, nestes anos. Muitas vezes imaginei essa horrível sensação de vida usurpada, esse pesadelo do pai que sente que está roubando ao filho o ar que respira, o pai que no meio da noite desperta banhado em suor: Eu não te matei, eu não te matei. E tenho me perguntado: se Deus existe, por que passa despercebido? Não será ateu, Deus?
(Extraído do texto original, El libro de los Abrazos, Catálogos Editorial, BsAs., 2007).
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