03 junho 2018

A condição bancária

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Realizei há algum tempo uma triagem dos arquivos e documentos guardados por meu pai, papéis que um dia representaram comprovantes de operações contábeis, que se acumulavam sem qualquer serventia. Os estratos e memorandos bancários eram de uma monotonia a toda prova, reproduzindo o olor amaldiçoado desses espaços recheados de dinheiro e ambição, as agências bancárias em que trabalhou. Hoje em dia meu pobre pai ainda se vê refém das imposições administrativas dessa ambiência que tomou 35 anos de sua vida, ao se preparar para compromissos com clientes imaginários, ao reviver as tensões das demandas cotidianas, expressas em números, metas, saldos bancários. Um horror de poder e controle contábil, que como um vírus, desorganiza a lucidez de seu pensamento.

De seu trabalho não sobrou reconhecimento ou presteza. Cumpriu as tarefas impostas com abnegação, pois sabia que se não o fizesse, outro faria. Tal abnegação significou abjurar da diversão, do lazer, da política, da reflexão. Em seu raciocínio, valeria a pena construir uma carreira que lhe daria respeito e um bom pé-de-meia, ainda que rodeado por gente medíocre, que o rodeou sem qualquer imaginação. Valeria a pena enfurnar-se 10, às vezes 12 horas por dia em seu trabalho, apenas para mostrar que era confiável aos seus patrões, e que seu trabalho resultava da entrega incondicional reiterada a cada dia, como uma oração suicida, ou como os termos de uma nefasta mensagem a Garcia, alardeada institucionalmente em forma de folheto panfletário, que sugeria o respeito hierárquico, a plena submissão no cumprimento das tarefas. 

Em poucas palavras, eis o significado de uma existência bancária. Ainda existem muitos papéis arquivados nas estantes, que não expressam mais nada a não ser tédio - e a vigarice de quem os criou. Meu pai foi um mero executor, de reconhecida competência. Aprendeu a cumprir as ordens comparecendo todas as manhãs no local de trabalho, bem barbeado, terno e gravata, exarando disposição que verdadeira ou falsa, seria sugada no correr da jornada. A ele foi vedado contribuir para a solidariedade do mundo, até porque os empréstimos que aprovou foram em grande parte sorvidos por uma burguesia voraz, que cresceu, se multiplicou e hoje se arrasta à deriva. A acumulação de capital para a instituição privada à qual vendeu sua força de trabalho foi proporcional ao seu comportamento de cabresto, e todos os números aí envolvidos traduziram nada além de um redundante desperdício. 

Em outras palavras, nenhum valor que se forjasse na chama das próprias entranhas como um brado altivo escapou à sanha da hierarquia canina. Jamais a mais primária indignação floresceu, por mínima que fosse. Pleno foi a conivência de se esvaziar, em nome de um propósito tão opaco como sedutor. E hoje, mesmo os fartos rendimentos auferidos ao longo de tantos anos, dissipou-se como água na água. Assim a narrativa da história pessoal fundiu-se com a avidez do projeto de uma sociedade anônima, a reproduzir o olor diáfano de dinheiro e ambição. De toda essa leitura fatídica que inesperadamente retomo, emerge por similaridade a ideologia do governo que nos desgoverna, em nome do renovado poder invisível do capital financeiro, insuperável abstração do modo bancário de ser.


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