Realizei há
algum tempo uma triagem dos arquivos e documentos guardados por meu pai, papéis
que um dia representaram comprovantes de operações contábeis, que se
acumulavam sem qualquer serventia. Os estratos e memorandos bancários eram de
uma monotonia a toda prova, reproduzindo o olor amaldiçoado desses espaços
recheados de dinheiro e ambição, as agências bancárias em que trabalhou. Hoje em dia meu pobre pai ainda se vê refém das imposições
administrativas dessa ambiência que tomou 35 anos de sua vida, ao se preparar para compromissos com clientes imaginários, ao reviver as tensões das demandas cotidianas, expressas em números, metas, saldos bancários. Um horror de poder e controle
contábil, que como um vírus, desorganiza a lucidez de seu pensamento.
De
seu trabalho não sobrou reconhecimento ou presteza. Cumpriu as tarefas
impostas com abnegação, pois sabia que se não o fizesse, outro faria. Tal abnegação significou abjurar da diversão, do lazer, da política, da reflexão. Em seu
raciocínio, valeria a pena construir uma carreira que lhe daria respeito e um
bom pé-de-meia, ainda que rodeado por gente medíocre, que o rodeou sem qualquer imaginação. Valeria a
pena enfurnar-se 10, às vezes 12 horas por dia em seu trabalho, apenas para
mostrar que era confiável aos seus patrões, e que seu trabalho resultava da entrega incondicional reiterada a cada dia, como uma oração suicida, ou como os termos de uma nefasta mensagem a Garcia, alardeada institucionalmente em forma de folheto
panfletário, que sugeria o respeito hierárquico, a plena submissão no cumprimento das tarefas.
Em
poucas palavras, eis o significado de uma existência bancária. Ainda existem
muitos papéis arquivados nas estantes, que não expressam mais nada a não ser
tédio - e a vigarice de quem os criou. Meu pai foi um mero executor, de
reconhecida competência. Aprendeu a cumprir as ordens comparecendo todas as
manhãs no local de trabalho, bem barbeado, terno e gravata, exarando disposição que verdadeira ou falsa, seria sugada no correr da jornada. A ele foi vedado contribuir para a solidariedade do mundo, até porque os empréstimos que aprovou foram em grande parte sorvidos por uma burguesia voraz, que cresceu, se multiplicou e hoje se arrasta à deriva. A
acumulação de capital para a instituição privada à qual vendeu sua força de
trabalho foi proporcional ao seu comportamento de cabresto, e todos os números aí
envolvidos traduziram nada além de um redundante desperdício.
Em
outras palavras, nenhum valor que se forjasse na chama das próprias entranhas como um brado altivo escapou à sanha da hierarquia canina. Jamais a mais primária indignação floresceu, por mínima que fosse. Pleno foi a conivência de se esvaziar, em nome de um propósito tão opaco como sedutor. E hoje, mesmo os fartos rendimentos auferidos ao longo de tantos anos, dissipou-se como água na água. Assim a narrativa da
história pessoal fundiu-se com a avidez do projeto de uma sociedade anônima, a reproduzir o olor
diáfano de dinheiro e ambição. De toda essa leitura fatídica que
inesperadamente retomo, emerge por similaridade a ideologia do governo que nos
desgoverna, em nome do renovado poder invisível do capital financeiro,
insuperável abstração do modo bancário de ser.
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