Diego Rivera, Sueño de una tarde dominical en la Alameda Central
A velha loja de sapatos de meu avô
se transformara em uma confeitaria, em aconchegante estilo rústico, pintado em
cores amenas, com pequenas mesas de madeira sólida e cadeiras de buinho
entrelaçado no assento e no costado, convidativas para um viajante fatigado. Marcavam-me
as dimensões mais amplas do ambiente outrora escuro e cheio de esconderijos por
entre os balcões enegrecidos pelo tempo, e que agora se expunha de maneira
explícita e sem graça. O salão ficou mais arejado pelas duas grandes entradas e
pela pintura verde água, sutil como a poeira roxa que ainda gostava de recobrir
as superfícies. O que me pareceu ser o proprietário logo surgiu, os cabelos
penteados por trás dos óculos mal-ajeitados, os gestos melífluos de quem quer
agradar novos clientes. Fiz a opção por uma mesa próxima a uma das entradas, a
que se abria para a esplanada de asfalto, na bifurcação da avenida Britânia e o
início da praça da fonte. Deixei a mochila no chão e sentei-me sem pressa. O
alvoroço das falas e das marteladas me despertavam a atenção, avançava-se na
montagem do palanque, que mais tarde acolheria o evento político. Ruídos mansos
e repetidos que me agradavam, anestesiavam os sentidos, faziam com que espairecesse
para outros pensamentos. O sujeito acercou-me oferecendo seus préstimos,
‘Um café por favor’...
‘Mais alguma coisa’?
‘Não... só um café preto’.
Do mesmo modo que se aproximou,
retornou para trás dos balcões, agora outros balcões. Passei a recordar-me dos
antigos, envidraçados, de boa madeira, envelhecidos como a pintura esmaecida das paredes, que pareciam se erguer ao infinito, a escorar estantes repletas de caixas de sapatos. Muito
tempo depois descobriria que se tratava de um truque de meu pobre avô, impressionar a clientela
indicando uma carga enorme de sapatos, na verdade inexistentes. O homem prontamente
retornou com uma bela taça de café e um pratinho com paçoca.
Ao redor, apenas
mais duas mesinhas vazias e o calor que adentrava pelas amplas portas,
juntamente com a claridade da tarde. Não se tratava de um lugar maldito, como
pensava ser em sua tenra infância, sob a influência das zangas, dos sinais de
torpor, da mesmice da triste clientela de seu avô. Estar de volta não
representava qualquer espécie de resgate emocional, mas um necessário acerto de
contas. O destino deixava de encarnar as histórias mal contadas de
desesperança, para recuperar as coisas como agora estavam, sem o avô, sem a
família. Cambeville surpreendia pela absoluta indiferença, como se não se
incomodasse com seu passado familiar de tantas situações vivenciadas e
narrativas geracionais ouvidas. Agora tudo aparentava artificial e arranjado,
tal como o estabelecimento em que punha os pés.
Voltei-me para a paisagem externa,
para os trabalhadores martelando, serrando, pintando, arrumando faixas, o ritmo
das pessoas de acordo com o ritual urbano que se transformava, preservando suas
características, Poderia ficar mais
trinta anos fora e encontraria a mesma essência simples e esquecida... sob
a serenidade da tarde nublada. Menos cavalos, mais automóveis, mais gente, mais
caras fechadas, menos dor na alma. Não perdia cada gesto, cada atitude,
vislumbrava o antanho mesclado com o tempo presente e ambos se fundiam no
déjà-vécu. Permaneci por longo tempo, observando sem me preocupar e sem desejar
outra coisa além de uma merecida pausa para amenizar o cansaço da viagem, antes
de seguir para a casa de minha avó, Ruth
querida, como estará depois de tantos anos?... Meus olhos inquiriam sem a
mesma destreza, ou quem sabe sem o mesmo interesse do início e essa imobilidade
benfazeja conduzia a outras ideias, a outros sons, a novas imagens, os passantes,
bem diante de si, na calçada, mulheres com seus filhotes, homens bem vestidos
subindo a Britânia, em direção à igreja, jovens em grupos, uma bela de
tornozelos largos, caminhando, que logo deixou seu campo de visão, descendo
para o outro lado, rumo à praça. Essa visão me inspirou, de pronto retirei da
mochila caneta e um caderno de anotações e redigi, embalado pelas impressões
frescas,
A bela caminhando
os olhares arredios
balouçando a cintura
esboçando um sorriso
louvando o céu escuro
(as nuvens plúmbeas)
A bela caminhando
feliz
os pelos do corpo eretos
toda a emoção
evidenciada pelos largos tornozelos
O chão úmido
as árvores docilmente inclinadas, indiferentes
as paredes frias espreitam
o vento fino abstrai a alma
e desperta a consciência
Os homens silenciosos, evadidos
os carros imóveis, também mortos
o sol distante que não se espraia
mas o gato no telhado atento acompanha
a bela caminhando.
...
Vagamente passei a discernir um
bolero muito suave, e cuja letra podia compreender e quase antecipá-la em seus
versos amargurados. Relembrei, por estímulo da música, da voz aveludada,
longínqua e ao mesmo tempo íntima... em um salto temporal, a recordação dos
movimentos insinuantes de Marta... Sólo
la penumbra me acompaña hoy/ Perdido tu amor/ no podré disfrutar de felicidad...
Os trabalhadores já não faziam mais nenhum sentido em toda a sua balbúrdia, permaneci
imóvel à mercê da evolução dos registros passados e fragmentariamente
recuperados. A melodia sussurrava das frestas daquele espaço cheirando a
pintura nova, Nunca a convenci sobre o jazz... preferia Compay a Coltraine,
bongos e maracas ao sax tenor, os negros do caribe aos negros do Harlem... Na
ausência de Marta submetia-me docemente à invasão morna de Ferrer e pensei em
Roquentin... a música o afastava da angústia que o ameaçava, Mas Roquentin
não teve a presença de Marta... o que parecia fazer diferença naquele
momento, a lembrança ao alcance das mãos e dos lábios, toda a volúpia
estremecendo sob os acordes de Naima, a magia dos acordes do sax tenor, por
alguma razão sobreveio as sonoridades com Marta, trepar com Marta ouvindo
Coltraine, ambos a cortejar o presente em meio a estímulos e segredos, e toda
imaginação discernia como um som distante e fugidio o Ferrer do
presente, com seu bolero encantado, "... Recordaré tu mirar, tu sentir/ No lo puedo evitar/ Y sufriré añorando
el ayer/ no te puedo olvidar..., não mais Coltraine, mas o cubano e sua
trupe do Buena Vista que poderiam despontar nas vagas e tão presentes
recordações, mágicas como os acordes distantes, que conduziam as tramas do desejo, no toque do corpo e na iminência do gozo, suscetibilidades
vivenciadas intensamente...
Foi a vez do proprietário
reaparecer, tendo nas mãos uma xícara de café, substituindo a que estava sobre
a mesa. Por conta da casa, disse. Foi
o ruído do pires na mesa que rompeu com o fluxo de seus pensamentos, mas ao
contrário de uma reação intempestiva, moveu os lábios num espasmo de
agradecimento e acompanhou o homem de volta para trás do balcão frigorífico.
Não foi possível retomar os momentos com Marta e no lugar sobreveio a presença de
um vazio incômodo, como se flutuasse de um lado para outro, prestes a
esboroar-me na próxima vaga... Já não havia mais o aconchego que acalentava e
dos impulsos que me alcançavam, desejei retornar para a rua,
deixando para trás aquele lugar que um dia fora uma loja de sapatos e o
espectro de meu avô circulando junto à caixa registradora, fazendo botões,
organizando com minúcias os recibos das compras, a contabilizar os recursos empenhados no arroz e no feijão de cada refeição. Mas acima de tudo abandonava o lugar, que me parecia tão mais amplo, e que me acolhia generosamente, em seu profundo silêncio. Abandonava mais uma vez meu pobre avô, sua
imagem nebulosa imóvel por trás do antigo balcão de madeira, tal como o
capitão Drogo a esperar pelos tártaros, com a expressão serena de um derrotado
em contínua luta pela sobrevivência.
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