18 março 2018

As certezas de Jeremias

Los Olvidados, Luís Buñuel

De tempos em tempos sou surpreendido em sala de aula pela mesma circunstância, a teoria e suas obrigações com a realidade cotidiana. Desta vez foi Jeremias quem me provocou com as agruras da vida, justamente quando develava algo das ideias de Rousseau, em um de seus aspectos menos conhecidos para aqueles alunos de Ciência Política, a educação. 

Interpretávamos livremente um trecho destacado por Comparato em seu ótimo livro Ética, "É a educação que deve dar às almas a força nacional e dirigir de tal maneira as opiniões e seus gostos, que elas sejam patriotas por inclinação, por paixão, por necessidade", quando Jeremias abandonou o silêncio convencional e interrompeu, "como entender tudo isso de modo que a dona F., já uma senhora idosa e cansada, lá do fundão da leste, consiga comer com dignidade?" 

Essa foi a parte objetiva de seu longo e trôpego arrazoado, que em meio à timidez, elaborou seu pensamento sinuoso e bastante lógico sobre o desalento atávico das gentes das periferias, marcado pela luta sem fim, pelos privilégios concentrados, pela escola distanciada da realidade social. Em suma, de que valia conhecer mais um conjunto de ideias, mais um autor, se a vida seguiria provocando suas tragédias.

Contou sobre sua mãe, que cansou da política e resolveu acomodar-se diante da televisão, "como condenar esta escolha?". Pensei uma vez mais na luta dos direitos burgueses que a esquerda esclarecida procura oferecer como suporte para as transformações sociais. Pensei uma vez mais no buraco da formação educacional provoca na percepção da cidadania, pensei no professor Milton Santos denunciando o aprendizado acadêmico encerrado nos muros da universidade. 

Estávamos com Rousseau, e de algum modo pudemos dialogar abertamente sobre os problemas levantados por Jeremias. Procurei frisar a importância do conhecimento como ferramenta de ação social, e que a alienação, por mais sedutora que pudesse ser, não nos faria melhores. Por mais que fracassássemos na luta pelos direitos, ela não podia ser abandonada, e não se tratava de uma luta individual, mas social, daí a importância dos movimentos e coletivos.

Ainda uma vez me veio a iluminação dos poetas periféricos, do Sérgio Vaz e seu trabalho de formiguinha sobre a leitura nas escolas públicas. Mas esse brilho de atitudes comprometidas por muitas razões não conseguia se contrapor ao sentimento doloroso do abandono, da profunda opacidade da vida cotidiana dos esquecidos. 

Minhas certezas não eram mais conclusivas que as de Jeremias.  


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