Diego Rivera, La noche de los pobres
O que sei é que não temos a menor ideia do que acontece por aí, no entorno da nossa realidade social. Sei também que estava ultimando algumas anotações referentes ao curso, no final da noite. Foi quando C. adentrou a sala de aula com seu jeito informal, pedi para que se sentasse e começamos uma conversa tímida, que de algum modo envolvia nossas aulas no semestre, mas ia além, passou a descrever outras impressões, mais pessoais, com muito cuidado com a narrativa, principalmente ao envolver outras pessoas. Antecipei-me em meu primeiro comentário, dizendo-lhe da virtude daquele comportamento respeitoso, C. concordou olhando para um ponto no chão e enquanto durou sua fala, encarou-me fortuitamente, aproveitando minhas poucas intervenções. Logo de início percebi que minha função ali seria ouvir, apenas ouvir a fala que também era um desabafo sereno, já que seu tom nunca ultrapassou os limites ponderados de uma arguição amistosa. Também percebi que se fizesse comentários, deveriam estimular a fala-prospecção, deveriam apoiar a fala-testemunho, deveriam cingir-se a gestos na fala-reconhecimento.
Passou a descrever o pai militar com seus movimentos incertos, da imposição de vídeos do quartel onde se pregava medalhas direto na pele à surra homérica pela descoberta da homossexualidade do filho. O parceiro expulso de casa, os dois anos sem palavra com o pai, que a retoma dizendo que para reconhecer o filho, só quando C. merecesse, ou seja, ficasse rico. Nenhuma palavra de revolta escapa em sua narrativa, mas a profunda vontade de compreender ou de perdoar, ou talvez as duas coisas, pois no final das contas, sentia-se bem em descobrir sua liberdade, e essa liberdade prescindia do pai - e da mãe, mulher negra, que ausente desde o primeiro momento de sua vida, voltava de quando em quando, arrependida pelo abandono. Não me disse do espaço do seu lar, mas passei a imaginá-lo em sua tacanhez nas dimensões e nas horas compartilhadas. A irmã, sim, havia a irmã, de início não concordava com nada, de princípio não era boa interlocutora, mas desde que entrou na faculdade de letras, rompendo com o desejo do pai para que fizesse direito, coincidiam mais nas ideias, ainda que em certas conversas insistisse para que C. procurasse o pastor. A avó, bem, ela não entendia muitas das suas coisas, mas oferecia a ternura de toda avó. C. não morava perto dos seus prazeres ou das suas obrigações, precisava tomar metrô, trem e ônibus, e mentalmente imaginei as agruras dos deslocamentos, cumpridas com disposição ou sujeição.
A faculdade tornava-se o manancial de sua liberdade. E que o modelo desse esforço bem-sucedido era o pai, o mesmo pai intolerante, pois ele era analfabeto até os 20 anos e venceu com muito esforço, primeiro vendendo balas nos trens, ato moralmente condenável pois é prática proibida pelas autoridades, mas que permitiu os recursos para mantê-los, então como condenar, Quem sou eu para condenar, dizia-me com o mesmo olhar baixo, sem dor ou compaixão, mas apenas a necessidade de dizer o relato, esse relato barroco, generoso, bem de acordo com as falas de nosso povo. A liberdade conquistada seguiu o caminho da vitória do pai, e a ultrapassou pois agora estuda com bolsa, ainda é aprendiz, mas acredita que este ano haverá de ser efetivado, e assumiu sua sexualidade. Ela veio com as primeiras baladas, no final do ano passado, quando conheceu gente diferente, que o ensinou muitas coisas, e em seguida, a faculdade, o aprendizado das aulas, novos conhecimentos, a ruptura para novas descobertas. Para C., uma surpresa tudo isso, pois imaginava que o mundo se resumisse ao espaço de sua casa, a companhia de seu pai e de sua irmã, e de vez em quando de sua avó.
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