30 maio 2017

O que sabemos de cada dia

Diego Rivera, La noche de los pobres

O que sei é que não temos a menor ideia do que acontece por aí, no entorno da nossa realidade social. Sei também que estava ultimando algumas anotações referentes ao curso, no final da noite. Foi quando C. adentrou a sala de aula com seu jeito informal, pedi para que se sentasse e começamos uma conversa tímida, que de algum modo envolvia nossas aulas no semestre, mas ia além, passou a descrever outras impressões, mais pessoais, com muito cuidado com a narrativa, principalmente ao envolver outras pessoas. Antecipei-me em meu primeiro comentário, dizendo-lhe da virtude daquele comportamento respeitoso, C. concordou olhando para um ponto no chão e enquanto durou sua fala, encarou-me fortuitamente, aproveitando minhas poucas intervenções. Logo de início percebi que minha função ali seria ouvir, apenas ouvir a fala que também era um desabafo sereno, já que seu tom nunca ultrapassou os limites ponderados de uma arguição amistosa. Também percebi que se fizesse comentários, deveriam estimular a fala-prospecção, deveriam apoiar a fala-testemunho, deveriam cingir-se a gestos na fala-reconhecimento. 

Passou a descrever o pai militar com seus movimentos incertos, da imposição de vídeos do quartel onde se pregava medalhas direto na pele à surra homérica pela descoberta da homossexualidade do filho. O parceiro expulso de casa, os dois anos sem palavra com o pai, que a retoma dizendo que para reconhecer o filho, só quando C. merecesse, ou seja, ficasse rico. Nenhuma palavra de revolta escapa em sua narrativa, mas a profunda vontade de compreender ou de perdoar, ou talvez as duas coisas, pois no final das contas, sentia-se bem em descobrir sua liberdade, e essa liberdade prescindia do pai - e da mãe, mulher negra, que ausente desde o primeiro momento de sua vida, voltava de quando em quando, arrependida pelo abandono. Não me disse do espaço do seu lar, mas passei a imaginá-lo em sua tacanhez nas dimensões e nas horas compartilhadas. A irmã, sim, havia a irmã, de início não concordava com nada, de princípio não era boa interlocutora, mas desde que entrou na faculdade de letras, rompendo com o desejo do pai para que fizesse direito, coincidiam mais nas ideias, ainda que em certas conversas insistisse para que C. procurasse o pastor. A avó, bem, ela não entendia muitas das suas coisas, mas oferecia a ternura de toda avó. C. não morava perto dos seus prazeres ou das suas obrigações, precisava tomar metrô, trem e ônibus, e mentalmente imaginei as agruras dos deslocamentos, cumpridas com disposição ou sujeição. 

A faculdade tornava-se o manancial de sua liberdade. E que o modelo desse esforço bem-sucedido era o pai, o mesmo pai intolerante, pois ele era analfabeto até os 20 anos e venceu com muito esforço, primeiro vendendo balas nos trens, ato moralmente condenável pois é prática proibida pelas autoridades, mas que permitiu os recursos para mantê-los, então como condenar, Quem sou eu para condenar, dizia-me com o mesmo olhar baixo, sem dor ou compaixão, mas apenas a necessidade de dizer o relato, esse relato barroco, generoso, bem de acordo com as falas de nosso povo. A liberdade conquistada seguiu o caminho da vitória do pai, e a ultrapassou pois agora estuda com bolsa, ainda é aprendiz, mas acredita que este ano haverá de ser efetivado, e assumiu sua sexualidade. Ela veio com as primeiras baladas, no final do ano passado, quando conheceu gente diferente, que o ensinou muitas coisas, e em seguida, a faculdade, o aprendizado das aulas, novos conhecimentos, a ruptura para novas descobertas. Para C., uma surpresa tudo isso, pois imaginava que o mundo se resumisse ao espaço de sua casa, a companhia de seu pai e de sua irmã, e de vez em quando de sua avó.


14 maio 2017

Morrer e viver sob o neoliberalismo

Simbólico desse governo golpista: a imagem do ritual fúnebre


Não se vislumbra qualquer saída política por parte das hostes que empreenderam o golpe empresarial-midiático-judiciário de 2016, e a não ser que disponham na manga de seus paletós soturnos um plano alternativo, ou como diria o Leão da Montanha, uma saída pela esquerda, darão com os seus burros na água, muito antes do próprio sistema concorrencial em que apoiam suas medidas econômicas, o neoliberalismo. Este, tal como ocorreu com o laissez-faire há cem anos, declinará por sua incapacidade de uma leitura social apropriada, e consequentemente, pela inaplicabilidade de seus fundamentos em privilegiar a "vitória dos mais aptos" em um período de profunda crise econômica. 

Não está no horizonte dos eventos a retomada do comunismo, mas as tensões sociais serão levadas ao limite, de tal modo que essa espécie de retomada do utilitarismo a la Spencer é uma crônica anunciada do esgotamento de uma política sem projeto econômico. O que se anuncia, porém, são anos de dura e contínua luta, que irão por fim demarcar até para os neoliberais mais ufanistas, a impossibilidade desse capitalismo devotado à subjetivização contábil e financeira. No mínimo, o retorno de uma nova fórmula keynesiana, a retomada de um Estado atuante como regulador e redistribuidor, a necessária solidariedade ante a razzia da racionalidade neoliberal.

(modificado em 20.05.2017)


01 maio 2017

Ressonâncias da Greve Geral

Detalhe de Cangaceiro (1958), Cândido Portinari


Uma bonita manhã de sol neste Primeiro de Maio, friazinha e aconchegante como costuma ser as manhãs de outono. Escrevo em uma pequena boulangerie na esquina de casa. Aqui não acertam nunca o volume do som ambiente, uma desnecessidade dessas casas que atraem pelas características de abrigo e distração. A música em volume desproporcional incomoda e afugenta, e por vezes já pensei ser uma técnica desse pós-capitalismo mambembe, que pensa grandes coisas para fazer dinheiro, mas se equivoca nas mais simples e por isso segue fracassando nas substanciosas transformações.

Nada mais apropriado pensar no capitalismo que se instala de maneira insultuosa, o que não significa de maneira vigorosa, em especial no Brasil. Aqui, seguem os desmontes sociais e trabalhistas conduzido por uma plêiade de velhos incompetentes e corruptos até a medula, que a cada passo demonstram serem títeres de forças mais poderosas e se acobertam nas sombras, sejam elas midiáticas, do poder judiciário ou do capital financeiro, não importa, em algum lugar ou momento se encontram para a articulação contra a sociedade civil.

Saímos na sexta-feira de uma Greve Geral exitosa, que paralisou fortemente os serviços, cuja narrativa foi construída tanto pela mídia corporativa e patronal, de acordo com interesses políticos em conjunção com o empresariado e com a casta golpista do congresso que votará as mudanças na legislação; como também pelas chamadas mídias digitais, que se desdobraram para relatar os acontecimentos em tempo real, com muitas imagens e reflexão crítica.

Neste último caso, o que ocorre é que as postagens de sites independentes de jornalismo, como Jornalistas Livres e Mídia Ninja, se apoiam na transmissão em tempo real, em fotos e vídeos, mas com pouco texto crítico, ao contrário das corporações, que não cansam de “contextualizar” os fatos de acordo com seus interesses. O que ocorre é que uma legião de simpatizantes dissemina as postagens provocando uma enxurrada de imagens nas redes, picadas isoladas de um formidável enxame.

O impacto emocional persiste ao lado das mídias corporativas, especialmente rádio e TV, que ainda dispõem de capital cultural suficiente para fazer prevalecer suas estratégias políticas. As grandes transformações comunicacionais dos últimos anos não contagiaram os fiéis ouvintes e espectadores, que por conforto intelectual, prosseguem ligados a essa poderosa narrativa, talvez acreditando que elas não poderiam estar “do lado errado”.

Com o desvirtuamento crasso do relato dos acontecimentos ocorridos nesta ampla Greve Geral, mais o apoio descarado às mudanças trabalhistas a favor de uma elite endinheirada, é de se acreditar que a confiança nesse tipo de narrativa sofra inevitáveis desgastes, pois não é possível construir uma ficção que prevaleça sobre a dura realidade. Será a persistência dessas pequenas, porém contínuas picadas, a contraposição narrativa fundamental para questionar a mentira, a farsa comunicacional.

Já não estou mais entre os que acreditam no fim dessa mídia corporativa, até porque agora ela se redesenha camaleonicamente e se posiciona como um sistema de divulgação dos interesses do capital financeiro, formatando-se como um componente precioso para a disseminação desse discurso. A nova roupagem aprofunda a desfaçatez, própria desse neoliberalismo ainda mais brutal que o de vinte anos atrás. É a constituição de um poder não eleito – financeiro, judicial e midiático – que passa a controlar o poder eleito – legislativo e executivo – à custa do povo. Será preciso ver até onde isso vai e como acaba.