Imagem do filme A Árvore de Gernika, de Fernando Arrabal
Eram quatro e meia da tarde, os camponeses chegavam com suas
carroças para a feira a céu aberto, quando a chegada do primeiro Heinkel 111
alemão foi anunciada pelos sinos da igreja. Logo em seguida outro Heinkel
apareceu para despejar suas bombas de 22,5 quilos. Quando as pessoas deixavam
os abrigos, quinze minutos depois, um troar de Junkers 52 foi ouvido a leste,
cerca de 50 deles, que lançaram bombas de 22,5 e 45 quilos, além dos bastões de
termita para potencializar o incêndio, o fogo de Prometeu. Foram ondas
sucessivas de ataques, a cada vinte minutos, que impedia o deslocamento dos
habitantes para fora da cidade. Quando não eram as bombas, era a metralha dos
caças que varria indistintamente o que se movesse pelas ruas. Às 7h45, depois
de três horas, o último avião nazista desapareceu no horizonte, deixando apenas
o "crepitar nervoso da conflagração criminosa em toda a cidade".
Gernika havia acabado.
Casa das Juntas, Gernika, 1989 (foto: autor)
Sem dúvida o filme de
Fernando Arrabal, A Árvore de
Guernica, visto no início dos anos 1980, acabou por me conduzir à pequena cidade basca, em agosto de 1989.
Sua narrativa alegórica e marcada pela luta republicana na Guerra Civil me
comoveu de modo definitivo. Uma das sequências inesquecíveis é a encenação de
uma corrida de touros pelos falangistas, depois da tomada da fictícia Villa Romero,
assistida por representantes da burguesia e pelo clero local. Carrinhos de mão são conduzidos com anões amarrados, condenados a morrer na arena por um franquista que faz as vezes de toureiro. Sob
o silêncio completo, interrompidos pelos aplausos forçados da claque burguesa, o 'toureiro' completa sua performance ao projetar a espada no peito do anão. Por fim, um plano geral de uma enorme bandeira espanhola estendida na arena, acolhendo os vários anões assassinados na sessão, sob o hino espanhol.
Fac-símile da capa A Árvore de Gernika
Poucos dias mais tarde, em visita ao Prado, em Madri, detive-me longamente diante do quadro de Pablo Picasso, Guernica, inspirado pelo texto do jornalista George L. Steer que relatou de modo contundente o antes, o durante e o depois da tragédia basca. A propósito, que maravilhosa cobertura jornalística desse cidadão inglês, que não poupou esforços pessoais para transformar sua presença no território basco sitiado em contundente testemunho da brutalidade franquista. Leio-o aos bocados, os capítulos se sucedem fora da ordem cronológica, que me relatam o isolamento e a fome em Bilbao, os brutais ataques aéreos alemães, a mentira dos informes oficiais franquistas e a contrapartida, o esforço por uma cobertura mais equânime dos jornalistas estrangeiros, dentre eles, Steer. No Prado, distante da aura marcante da cultura basca, apreciei os diversos esboços da obra de Picasso, então expostos no corredor que conduzia ao grande salão em que repousava o quadro final.
No momento em que escrevia o primeiro parágrafo deste texto, cumpria-se exatamente oitenta anos do ataque realizado por um misto de aviões alemães e italianos. Realizado entre as 16h30 e as 19h45 do dia 26 de abril de 1937, o bombardeio ceifou a vida de três centenas de pessoas, de uma população aproximada de 6.000 habitantes, acrescida por cerca de 3.000 camponeses que participavam da feira a céu aberto. Dois dias mais tarde, segundo a descrição de Steer, "o governo de Salamanca foi claramente desonesto" ao passar para a opinião pública que a destruição de Gernika fora obra dos Vermelhos. A má-fé das versões fascistas - haveria mais de uma em um breve lapso de dias - foram encampadas por parte da imprensa estrangeira, havendo o caso de um correspondente francês que, quando da queda da cidade, "acabou liberado (pelos franquistas) e escreveu artigos favoráveis ao generalíssimo".
Gernika após o ataque aéreo franquista, em 26.04.1937
Para mim, as impressões que obtenho com a leitura ainda não finalizada de A Árvore de Gernika, de George Steer, são de um qualificado registro jornalístico, sob as condições mais duras, onde se destaca uma elegância sensível no estilo narrativo, que nos posiciona com clareza diante dos fatos descritos. Particularmente gosto de sua isenção comprometida, simpática aos bascos, mas sem ser "incapaz de detectar suas deficiências". E aprecio sua declaração espontânea ao bom jornalismo, que escreve como que num impulso, ao final do capítulo 16, cansado pelas farsas publicadas em relação ao suposto bloqueio de Bilbao pela marinha franquista, que na ocasião quase sacrifica a causa basca:
“Um
jornalista não é mero fornecedor de notícias, sejam sensacionais ou
controversas, bem ou mal escritas, ou apenas engraçadas. Ele é um historiador
dos eventos cotidianos, e tem um dever para com o público. Se lhe impedem o acesso
a esse público, cabe a ele recorrer a outros métodos; pois, como historiador em
ponto menor, ele pertence à mais honrada profissão do mundo, precisa estar
tomado do apego mais passional e crítico pela verdade, e por isso o jornalista
deve, com o enorme poder que detém, cuidar para que prevaleça a verdade”.
Penso que esta declaração sirva perfeitamente aos propósitos atuais de como deve atuar um verdadeiro jornalista.
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