26 dezembro 2015

Ainda Chico!



Esse grito insolente de uma direita que não faz a menor ideia de qual caminho tomar, que não tem a menor ideia da complexidade social de seu país. Em seu regurgito que já renasce condenado, não tem feito mais do que inflar o ódio e a intolerância, com ações truculentas, que se amparam no pior dos momentos de nossa história moderna. É preciso nomearmos cada um, os que vinculam a esperança de uma nação ao golpe constitucional, os que agridem sem disposição para uma pauta de diálogo, os que fazem de seu gesto nada mais do que o prolongamento de seu miserável individualismo.

Como disse Darcy Ribeiro, "o golpe militar de 1964 foi uma interrupção abrupta do fluxo histórico brasileiro e reverteu seu sentido natural, com efeitos indeléveis sobre a economia e a soberania nacional, e também sobre a cidadania, a sociedade e a cultura brasileiras". Será sempre tempo de debatermos verdadeiramente os desígnios de nossa nação, mas sob as normas constitucionais vigentes. Não cabem mais aventuras, ainda mais as patrocinadas por indivíduos que não medem as consequências de seus atos, alimentados por ilusões forâneas. 

Por isso não posso deixar de oferecer a música que me marcou profundamente naquele verdadeiro momento de retomada, arrebatando-nos para o que então se apresentava como as mais importantes tarefas, a luta pela justiça social e pelo restabelecimento pleno do estado de direito.





24 dezembro 2015

Chico e os ruídos da pós-modernidade




Acabo de ler sobre um dos marmanjos justiceiros que interpelaram o nosso Chico Buarque no espaço público do Rio. No momento em que estava acompanhado por outros coatores, pareceu valente em criticar o músico pelo simples fato de ser simpatizante do PT, de novo a mesma fórmula, uma espécie de indignação cívica que perpassa esses tipos, como se o PT fosse a causa fulcral de todos os males da nação. A cena foi gravada, as agressões são audíveis, porque são palavras iradas, que se movem pela intolerância, que pretendem impregnar e jamais aceitar um contraditório. Já as respostas de Chico são esparsas, compreende-se uma ou outra frase. Agora o sujeito, um tal de Alvarinho, não se faz de rogado ao dizer que "xingar o senhor Chico foi um erro", e apresenta os sintomas naturais de covardia que demonstram todos os agressores proto-fascistas, tentando livrar a cara para não permanecer a marca pesada da ignorância. 

O episódio não difere em seu formato dos ataques verbais ocorridos anteriormente, no mesmo feitio, quando grupos de corajosos defensores da democracia lançam invectivas de péssima qualidade, contra personalidades do PT. Assim foi com Mantega, então ministro da Fazenda, em um restaurante, assim foi com Haddad, nosso prefeito de São Paulo, em pleno debate na livraria Cultura. Chegamos ao tempo da miséria do argumento, que não se envergonha em mostrar sua cretinice no espaço público. Isso me faz agora lembrar de uma sequência de O Gordo e o Magro, em que a esposa de Oliver Hardy lhe pede para não se esforçar em ser mais idiota do que ele já mostrava ser. Bem, isso era engraçado, as trapalhadas de Oliver Hardy com seu amigo Stan Laurel incorporavam inocência e diversão, e por isso saborosas.

Destaco o argumento de David Harvey sobre a pós-modernidade, "a ação só pode ser concebida e decidida nos limites de algum determinismo local, de alguma comunidade interpretativa, e os seus sentidos tencionados e efeitos antecipados estão fadados a entrar em colapso quando retirados desses domínios isolados, mesmo quando coerentes com eles", o que nos parece claro o gesto fragmentado desde sua origem e pouco propício a ganhar consenso político nas massas. Assim, o relativismo idiota exercitado em praça pública torna-se o must dos garotões sarados dos Jardins, e para isso não é necessário nenhum recurso intelectual, basta um babaca para comandar o espetáculo de incontinência verbal e um iphone para registrar o fato. 

Nos anos 1960, os brucutus do CCC assumiam uma postura ideológica claramente de direita e se uniam a paramilitares para cometer suas agressões públicas, mas raramente eram identificados. O projeto da violência política alinhava-se com uma proposta vencedora, que formularia as leis de segurança nacional, em defesa dos ideais de um sistema de exceção. Hoje, o estado de direito predomina, não há o que temer neste sentido. Resta o vago discurso contra a corrupção, pautado pelas manchetes da mídia corporativa, que se expande pelas plataformas digitais em sua vertente agressiva. Quando mais os atores abjetos assumem a orientação desse discurso, mais o espetáculo se faz incivilizado, mais ele se torna uma farsa. 

Alvarinho, como os demais agressores, teve seus breves minutos de fama, e agora não sabe o que fazer com isso. Pior, mostra a mesma covardia desse proto-fascismo sem consistência, que na hora de se revelar com mais força, sucumbe e pede arrego. Eis as consequências: "Fui ao shopping comprar presentes de Natal e fui xingado. Também recebi uma ligação anônima com ameaças. Acho muito desagradável tudo isso bem na hora do Ano-Novo. Se meus pais decidirem, terei que voltar (a Londres)"[1]. 

Uma vez filhote de papai, sempre um. Diluído em seu próprio discurso, não consegue encontrar forças para sustentar uma posição que justifique minimamente sua agressão. Optará pelo mais fácil, retornar ao seu exílio luxuoso de Londres, onde por certo não ousará tomar atitude semelhante contra uma autoridade pública de lá. 

Torna-se difícil entender os objetivos dessas manifestações impulsivas e criminosas: não carreiam adesões e se perdem na própria covardia dos atores, que ao contrário de permanecerem ativos, escondem-se da forma mais conveniente. O gesto suicida não encontra a mínima sustentação epistemológica, como disse acima, é a continuidade indefinida de um arremedo de pequenas bravatas contra a corrupção do PT, mancomunadas com notícias de capa da revista Veja e alguma fala assimilada dos âncoras de telejornais. Mais nada. Não se dão ao esforço de aprofundar seu ódio em argumentos do conservadorismo pós-moderno, que encontra em T.Darlymple, R.Kirk ou T.Sowell alguns de seus representantes. 

De modo que fico com a imagem serena e contemplativa de Chico, com a história de seus engajamentos, ao som de sua obra exuberante, que nos contempla como cidadãos brasileiros. Ele nos tem a dizer muito mais coisas do que as razzias fúteis, frágeis, fenecidas, proporcionadas pelos mesmos sujeitos históricos a serviço de frívolos interesses.





[1] http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/210833/Alvarinho-diz-que-%E2%80%9Cxingar-o-sr-Chico-foi-um-erro%E2%80%9D.htm, acesso em 23/12/2015.


08 dezembro 2015

A nossa negritude



E tive uma experiência que mobilizou meu imaginário de tal forma, que por momentos acreditava estar diante de sucessivas etapas da memória coletiva e histórica de nosso país, algo sem um recorte específico, tudo no plano das emoções e de um apanhado mental que envolve os conhecimentos acumulados sobre a nossa cultura. 

Claro que estava sugestionado pela ótima leitura do texto do Alberto da Costa e Silva, mais um sobre a formação do Brasil, População e Sociedade. Enquanto avançava no texto, via o Brasil metonímico diante de mim, pequenos grupos de jovens reunidos em torno de seus murmúrios, discutindo as questões sobre Euclides da Cunha, Paulo Freire, Caio Prado Jr...

Por momentos, não era apenas o bulício das falas e as reflexões sobre as hipóteses sociais, políticas e culturais que construíam, mas a naturalidade das consultas entre os grupos, movidos por dúvidas, não interferi, optei por observar e imaginar os matizes variados, os jogos das cores e das origens, a miscelânea das ocupações profissionais, as esperanças por voos imprecisos, os anseios por consolidar novas realizações.

Ali estava o corre das ruas no Rio colonial, as vozes dos mercados e das casas, escravos de pé no chão, ex-escravos na viração, calça comprida e camisa de algodão rústico, carregadores, pedreiros, sapateiros (havia muitos), bem como amas de leite, vendedoras ambulantes, as falas de variadas origens africanas, mas que no final prevalecia o português "para o entendimento entre si - uma África já crioulizada, abrasileirada", as mulheres brancas já não mais escondidas no quarto, mas com confiança para frequentar as confeitarias e casas de chá, e as cores dos panos e xales de Cabo Verde, os vestidos pregueados à moda europeia, quizomba divertida e incontrolável, marca de um país que ao contrário da difundida perdição, por suas elites, sempre se reinventa na beleza e dureza de sua diversidade.

Eu vi tudo isso naqueles corpos performáticos, à minha frente, e encerro porque é preciso encerrar, com uma breve descrição do último grupo que deixou a sala, quase à última hora: três jovens negros muito falantes, que perdiam o tempo da prova para inserir lembranças e falas da casa, da mãe e da avó sempre às voltas com os afazeres domésticos, e logo as sonoras risadas, que podiam ser do entretenimento da rua do Brasil Colônia, em alguma casinhola de sopapo, taipa de mão, no breu da noite, à espera do novo dia de labuta intensa... mas logo recobravam a discussão do texto Procissões, Hip Hop e Cosplay, representações da negritude em teatralidades públicas, escrito por mim e Mônica Nunes, no afã de descrever o protagonismo do negro em nossa cultura. 

O que significava aquilo tudo? Sabiam que havia uma sutil continuidade, um deles levanta a mão e se dirige de forma assertiva para mim, "seria legal retomarmos aquele assunto novamente, professor"... E por fim terminam um tanto extasiados pela discussão do tema, entregam a prova ainda conversando entre si, e o mesmo rapaz acrescenta, "professor, quanta coisa importante para pensar...".