Desta vez foi Dino Buzzati, seus contos mágicos contidos no livrinho da Alianza Editorial, Los Siete Mensajeros. A literatura tem esse dom de nos comover em meio ao imaginário das coisas, dos lugares, de personagens que dialogam com nossa vida cotidiana. A magia da memória literária é esse vírus que nos acomete uma vez e não mais nos abandona, tomando-nos livremente, ao sabor do imponderável, e uma vez renovados pelas recordações de páginas e mais páginas narradas, acolhemos ainda uma vez o prazer de novo arrebatamento.
Acabei por me envolver na tarefa de traduzir o conto que nomeia o volume, Los Siete Mensajeros. Para realizá-la, utilizei-me de uma versão
intermediária, em espanhol. Na medida do possível,
realizei o cotejamento com o texto original, em italiano, principalmente nas partes onde
permaneciam dúvidas sobre 'as faixas semânticas' mais adequadas, e o resultado me
pareceu satisfatório. Seja como for, trata-se de um trabalho que
contou com o cuidado em preservar o estilo do autor, o qual prioriza uma descrição
objetiva dos fatos, com um desenvolvimento linear, sem um fraseado rebuscado. Gostaria de compartilhar os resultados obtidos, divulgando o texto a seguir.
Antes, porém, considero importante destacar que os elementos da narrativa, como os mensageiros em seu distanciamento infindável, a própria determinação em cumprir suas tarefas, se submetem a uma sofisticada metáfora temporal. Seguindo esta linha, sem considerar as interferências dos acasos da vida, podemos desvelar cada situação de acordo com a proposta sensível do autor, qual seja, um presente desprovido de subterfúgios, tensionado inicialmente pela nostalgia do passado e mais ao final da narrativa, pelo desafio do futuro. Temos assim a resultante implacável de nossa condição de ser-aí, consciente de sua fragilidade e impossibilitado em fugir da construção de seu destino.
Nas primeiras indicações do limite natural da aventura, o tempo exerce seu papel e aprofunda a finitude do corpo. A narrativa revela um dos eixos de sua metáfora, a vida em sua irrevogável incompletude. A descrição do supremo esforço do mensageiro Domenico no terreno a ser vencido e no tempo que irá levar com as mensagens se inscreve no lamento da perda definitiva do contato com o mundo que ficou para trás. O fenecimento do corpo é acompanhado pelas derradeiras lembranças, que cada vez mais se opõem aos horizontes vindouros da caminhada sem fim.
O segundo eixo desta bela narrativa de Buzzati é a meu ver, a dimensão temporal que a trespassa. Uma vez estabelecida a ruptura com o espaço-tempo de um passado que se esvai - a experiência vivida - a memória se incorpora às expectativas das fronteiras do reino, não mais que o futuro - o tempo a ser vivido. As novas missões dos mensageiros serão a de abrir caminho para o avanço às terras ignotas.
Os sete mensageiros
(Dino Buzzati)
Saí a explorar o reino de meu pai,
porém dia a dia distancio-me da cidade e as notícias que me chegam são cada vez
mais escassas. Comecei a viagem ao completar trinta anos e mais de oito se
passaram, precisamente oito anos, seis meses e quinze dias de ininterrupta
marcha.
Quando parti, acreditava que em poucas semanas alcançaria com facilidade os confins do reino; entretanto, não deixei de encontrar novos lugares e pessoas, e em todas as partes homens que falavam a minha língua, que diziam serem meus súditos.
Por vezes penso que a bússola de meu geógrafo ficou maluca e que, convencidos de nos dirigir sempre para o norte, em realidade estejamos dando voltas ao redor de nós mesmos, sem aumentar a distância que nos separa da capital. Isso poderia explicar porque ainda não alcançamos a última fronteira.
Aos poucos, porém, atormenta-me a dúvida de que este confim não exista, de que o reino se estenda indefinidamente e de que, por mais que avance, nunca poderei chegar ao seu fim.
Dei início à tarefa quando tinha mais de trinta anos, talvez demasiado tarde. Meus amigos, meus próprios familiares, troçaram de meu projeto como sendo um desperdício dos melhores anos da vida. Na realidade, poucos dos que eram de minha confiança aceitaram me acompanhar. Embora despreocupado - muito mais do que estou agora - imaginei um modo de comunicar-me durante a viagem com as pessoas mais próximas e, dentre os cavaleiros da minha escolta, escolhi os sete melhores para que servissem de mensageiros.
Acreditava de maneira equivocada que dispor de sete mensageiros era mesmo um exagero. Com o correr do tempo observei que, ao contrário do que pensava, eram ridiculamente poucos, e isso sem considerar que algum deles caísse enfermo, ou fosse surpreendido por bandidos, ou esgotasse alguma montaria. Os sete mensageiros me serviram com uma tenacidade e uma devoção que dificilmente poderei recompensar.
Para distingui-los mais facilmente, eu os nomeei com as iniciais da ordem alfabética: Alessandro, Bartolomeo, Caio, Domenico, Ettore, Federico e Gregorio. Pouco habituado a distanciar-me de casa, enviei o primeiro, Alessandro, na noite do segundo dia de viagem, quando tínhamos percorrido umas oitenta léguas.
Para assegurar a continuidade das comunicações, na noite seguinte enviei o segundo, e em seguida o terceiro, o quarto, e assim sucessivamente até a oitava noite de viagem, quando partiu Gregório. O primeiro ainda não havia regressado.
Este nos alcançou na décima noite, enquanto montávamos o acampamento para pernoitar, em um vale desabitado. Soube por Alessandro que sua rapidez estava inferior ao previsto; tinha pensado que, viajando a sós e montando um magnífico corcel, poderia percorrer em um mesmo tempo o dobro da distância que faríamos, entretanto, somente pode cobrir o equivalente a uma vez e meia; em uma jornada, enquanto avançávamos quarenta léguas, ele devorava sessenta, não mais.
O mesmo ocorreu com os outros. Bartolomeo, que tomou o destino da cidade na terceira noite de viagem, retornou na décima quinta; Caio, que partiu na quarta, não regressou antes da vigésima. Logo constatei que bastava multiplicar por cinco os dias empregados por cada cavaleiro para saber quando nos alcançaria.
Como cada vez nos distanciávamos mais da capital, o itinerário dos mensageiros aumentava proporcionalmente. Transcorridos cinquenta dias de marcha, o intervalo entre a chegada de um mensageiro e o de outro começou a espaçar sensivelmente; enquanto que antes se via regressar ao acampamento um a cada cinco dias, o intervalo passou a ser de vinte e cinco. Desse modo, a voz de minha cidade se fazia cada vez mais débil; passavam semanas inteiras sem que tivesse qualquer notícia.
Passados seis meses - já havíamos atravessado os montes Fasano - o intervalo entre uma chegada e outra aumentou para quatro meses. Agora me traziam notícias distantes; os envelopes chegavam amassados, por vezes com manchas de umidade em razão das noites passadas ao relento pelo mensageiro.
Seguimos avançando. Em vão procurava me persuadir de que as nuvens que se formavam acima de mim eram parecidas com as de minha infância, de que o céu da cidade distante não era diferente da cúpula azul que pendia sobre mim, de que o ar era o mesmo, da mesma forma que o sopro do vento, o canto dos pássaros. As nuvens, o céu, o ar, os ventos, os pássaros, eram vistos por mim como coisas novas e diferentes; e eu me sentia um estrangeiro.
Adiante, adiante! Vagabundos que encontrávamos pelas planícies diziam-me que os confins não estavam distantes. Eu incitava meus homens a não descansar, sufocava as expressões de desalento que brotavam em seus lábios. Eram passados quatro anos desde a minha partida, que esforço mais prolongado! A capital, minha casa, meu pai, tornavam-se estranhamente remotos, vagamente reais. Vinte longos meses de silêncio e de solidão transcorriam agora entre as sucessivas chegadas dos mensageiros. Traziam-me curiosas cartas amareladas pelo tempo e nelas encontrava nomes esquecidos, formas de expressão insólitas, sentimentos que não conseguia compreender.
Na manhã seguinte, depois de uma breve noite de descanso, quando retomamos o caminho, o mensageiro partia na direção oposta, levando para a cidade as cartas que por um longo tempo eu havia preparado.
Transcorreram mais oito anos e meio. Esta noite eu jantava solitário em minha tenda, quando entrou Domenico, que esgotado pelo cansaço, ainda conseguiu sorrir. Havia quase sete anos que não o via. Durante todo esse longuíssimo período não fez outra coisa senão correr através dos prados, bosques e desertos, trocando quem sabe quantas vezes de cavalgadura para trazer-me esse maço de envelopes que ainda não tive vontade de abrir. Domenico já se retirou para descansar e partirá amanhã ao alvorecer.
Marchará pela última vez. Calculei em minhas anotações que, se tudo correr bem, eu prosseguindo em meu caminho como tenho feito até aqui e ele percorrer o seu, não verei Domenico antes de trinta e quatro anos. A essa altura estarei com setenta e dois anos. Mas começo a sentir-me cansado e é provável que a morte me leve antes. Desse modo, é provável que não mais o veja.
Dentro de trinta e quatro anos (como seria bom que fosse antes) Domenico vislumbrará de forma inesperada as fogueiras do meu acampamento e se perguntará por que percorri tão pouco caminho. Nessa mesma noite, o bondoso mensageiro entrará em minha tenda com as cartas amarelecidas pelos anos, cheias de absurdas notícias de um tempo já sepultado; se deterá sob o umbral, vendo-me imóvel, estendido sobre o leito, com dois soldados flanqueando-me com suas tochas, morto.
Ainda assim, segue, Domenico, e não me digas que sou cruel! Leva minha derradeira saudação à cidade onde nasci. Tu és o vínculo sobrevivente com o mundo que outrora foi também o meu. As últimas mensagens me fazem saber que muitas coisas mudaram, que meu pai morreu, que a coroa foi passada ao meu irmão mais velho, que me deram por perdido, que no lugar onde antes se encontravam os carvalhos sob os quais costumava brincar, construíram altos palácios de pedra. De todo modo, continua sendo a minha pátria.
Tu és o último vínculo com eles, Domenico. O quinto mensageiro, Ettore, que me alcançará, se Deus quiser, dentro de um ano e oito meses, não poderá partir porque não lhe daria tempo de regressar. Depois de ti, Domenico, o silêncio, a não ser que eu encontre, por fim, os esperados confins. Todavia, quanto mais avanço, mais me convenço de que não existe fronteira.
Não existe, suspeito eu, fronteira, ao menos no sentido em que estamos acostumados a pensar. Não há muralhas que separem, nem vales que dividam, nem montanhas que impeçam a passagem. Provavelmente cruzarei o limite sem me dar conta e, desconhecendo-o, continuarei a avançar.
Por esta razão pretendo que, quando me
alcançarem novamente, Ettore e os outros mensageiros que o seguem não partam
de volta à capital, mas que cavalguem avante, precedendo-me, para que eu possa
saber com antecedência aquilo que me aguarda.
Desde há um tempo, me desperta em plena noite uma agitação insólita, e não se trata de saudades das alegrias abandonadas, como ocorria nos primeiros tempos de viagem, mas uma impaciência em conhecer as terras ignotas às quais me dirijo.
Dia a dia, à medida que avanço para esse objetivo incerto, noto - e até aqui não o confessei a ninguém - como o céu resplandece uma luz insólita, jamais vista sequer em sonhos, e como as plantas, os montes, os rios que atravessamos, parecem feitos de uma essência distinta daquela de nossa terra, e o ar traz presságios que não sei expressar.
A cada manhã uma nova esperança me arrasta para frente, para essas montanhas inexploradas que as sombras da noite ocultam. Uma vez mais levantarei acampamento, enquanto do outro lado Domenico desaparece no horizonte, portando para a remotíssima cidade minha inútil mensagem.
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