31 maio 2015

Sobre Culturas Juvenis




Um belíssimo lançamento, com diversos olhares sobre a Cena Cosplay, organizado com muita competência pela querida Mônica Nunes, do qual tenho a satisfação de participar com um texto, "Espaço urbano, performance e memória: a poética do corpo na poesia marginal e na cena cosplay". Procurei desenvolver e ampliar uma discussão elaborada em congressos, e que se origina em minha dissertação de doutorado, aqui ganhando novas leituras com o acréscimo da cena cosplay. No ensaio, procuro tratar da presença das culturas juvenis no espaço urbano, em especial os poetas marginais e os cosplayers, suas formas de representação social, seus exercícios de sociabilidade. Procurei destacar a narrativa do corpo performático, aspecto fundamental em ambas as práticas culturais.  

No sítio da editora Sulina há um bom resumo sobre a temática discutida no livro:

'Com base em pesquisa de campo em eventos de animes nas capitais da região Sudeste do Brasil, os dez artigos que integram este livro abordam a cena cosplay em seu engendramento e suas articulações com outras cenas urbanas, como a poesia marginal; com o jogo e a cognição; com a moda e as paisagens sonoras geradas; com o universo dos games e das coleções de objetos pop.'

###


Destaco abaixo pequenos trechos do meu texto. O convite para o lançamento será divulgado oportunamente:

"(...) Vimos nas ocorrências dos rolezinhos, em junho de 2013, a busca por espaços estruturados de entretenimento e de consumo ainda faltantes nas periferias. Os cidadãos das periferias – e muitos dos que participam dos circuitos dos saraus poéticos e da cena cosplay – percorrem necessariamente os circuitos globalizados, desejando e consumindo seus produtos. Movimentam-se em busca do que há de mais contemporâneo, a resposta aos estímulos formulados pelos brilhos faiscantes dos centros de consumo. Considerando a matriz de bloqueios, ou mesmo a segregação social (os baixos acessos aos bens públicos), há que se compreender melhor essa vertente de buscas. Ainda que os equipamentos de consumo e seus circuitos se expandam pela cidade, não significa dizer que essa possibilidade de encantamento seja a norma exclusiva a ser alcançada. É importante verificar as práticas culturais como opções interessantes de consumo cultural, como é o caso aqui analisado dos cosplayers e dos poetas marginais. 

De todo modo, esse entramado de linhas que se cruzam e entrelaçam caracterizando a fruição social no espaço urbano é regido por um poderoso setor, denominado por Flávio Villaça de quadrante sudoeste. Para ele, existe um padrão de desenvolvimento intraurbano das metrópoles brasileiras, que seguem uma estruturação definida pelos interesses históricos da classe média. No caso de São Paulo, a centralidade original da cidade, definida pelo sítio original na região da Sé, sofre um deslocamento espacial no sentido sudoeste, alcançando a região da avenida Paulista e mais recentemente a região da avenida Luis Berrini. Trata-se de uma expansão estimulada pelo capital imobiliário, proporcionando uma área de segregação que atrai os equipamentos urbanos e estabelece uma dominação sobre o espaço intraurbano como um todo. Segundo Villaça, “a segregação é um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole”.

Tal concentração não ocorre de modo homogêneo, exclusivo. Um exemplo é o bairro de Paraisópolis, um enclave de renda baixa no valorizado bairro do Morumbi; assim como na expansão do quadrante sudoeste, os ricos formam seus enclaves ao se aproximar dos bairros de populações mais pobres. Por isso a presença crescente dos muros com arames eletrificados, estabelecendo os limites fronteiriços das áreas de poder político e econômico das classes de alta renda. Ainda Villaça: “As burguesias produzem para si um espaço urbano tal que otimiza suas condições de deslocamento (grifo meu). Ao fazê-lo, tornam-se piores as condições de deslocamento das demais classes”. A apropriação dessa centralidade oferece um controle pulverizado das classes de alta renda, trazendo para mais próximo dela os equipamentos de controle da sociedade, seus empregos, seus serviços, adaptando a cidade a seu modo preferencial de locomoção, o automóvel. (...)

(...) Ao longo das etnografias realizadas com os cosplayers, um aspecto que modificou minha maneira de compreendê-los foi observar como não se incomodavam em incorporar suas personagens em pleno no espaço público, a caminho dos eventos. A expressão é bem essa, incorporar, dar forma corpórea a uma representação, da maneira mais natural possível, “quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna” (Moscovici...). Significa dizer que, a personagem do cosplay está naturalmente presente, a representação passa a ser incorporada no cotidiano, para além dos eventos e das relações compartilhadas com outros cosplayers, e guardadas as devidas proporções, “cessa de ser efêmero, mutável e mortal e torna-se, em vez disso, duradouro, permanente, quase imortal” (Moreira...). A criação da representação se dá de maneira intensa, enquanto dura, havendo certa restrição nas circunstâncias em que existe o risco de manifestações preconceituosas, como veremos adiante. Vestir o cosplay escolhido é um ritual que se constrói desde a confecção material e termina em meio aos eventos, na companhia dos amigos e do público participante. Em muitos casos, o corpo assume a fantasia do ídolo antes da cena cosplay, no trajeto de casa até o lugar do evento (...).

(...) Temos também a violência como um elemento constitutivo da vida cotidiana das periferias. Se excluirmos aquela regularmente praticada pelos órgãos de segurança pública, que possuem um caráter desagregador, podemos pensar sua função estruturadora “de novas expressões do social (...) e no plano da linguagem e das representações, como enunciação genuína e, às vezes, legítima de conflitos vivenciados no dia a dia da vida social” (Pereira et al...). De modo que integrantes de uma prática cultural de resistência esforçam-se por desafiar a desigualdade social ao exercitarem em alto e bom som a voz não ouvida, afirmando uma identidade, a da quebrada, aquela legitimada por suas atitudes. Em suas manifestações performáticas, as poesias incorporam esse discurso, o corpo do poeta está nu, no sentido figurativo, pronto para gerar o seu tema na performance de cada verso declamado. (...)

(...) Uma vez estabelecidos os contornos da espacialidade intraurbana, transitamos em seus meandros e em suas interpretações a partir das narrativas de práticas culturais distintas – a escritura marginal e o cosplay – com leituras peculiares de comportamento social. Ainda que o entramado do espaço urbano seja percorrido por trajetórias que delineiam uma rede de circuitos sociais, persiste a estrutura física da cidade de muros, a exclusividade e o predomínio econômico de um setor associado à centralidade econômico-política denominado quadrante sudoeste. Persiste a desigualdade social, cartografada com ilhas de bem-estar por um lado e de espaços de precariedade de outro, imbricados e amalgamados nos interstícios da cidade. Se por um lado as vozes dos poetas periféricos preservam o tom da contestação e da resistência, por outro os jovens cosplayers desfrutam do prazer da cena, sem de alguma forma desconsiderar as relações sociais. Em ambos, a representação performática se mostra como um suporte semântico de múltiplos significados, definidos por heróis e enredos memoriais, que os impulsiona para novos desejos, para novas experiências coletivas, a partir de um crescente acesso aos bens de consumo. (...)"

Cena Cosplay: Comunicação, Consumo, Memória nas Culturas Juvenis. 
Mônica Rebecca F. Nunes (org.), Editora Sulina, 344p., 2015.


24 maio 2015

Dino Buzzati, um conto




Sinto de tempos em tempos a necessidade de retornar àquela literatura que um dia me cativou, marcando-me pela surpresa, pela precisão da narrativa. Normalmente são os contos, leitura concisa que nos permite retomar a intensidade da história em poucos minutos. Quando se trata de romances, busco partes específicas indicadas ao longo das anotações, nas margens, para reviver uma passagem marcante. Alguns autores tornaram-se uma espécie de guias espirituais, Cortázar, Sábato, Benedetti, Bowles, Márquez, Graciliano... Ressurgem de maneira casual e suas palavras recompõem a descrição que deslumbra e inspira em seus múltiplos significados. 

Desta vez foi Dino Buzzati, seus contos mágicos contidos no livrinho da Alianza Editorial, Los Siete Mensajeros. A literatura tem esse dom de nos comover em meio ao imaginário das coisas, dos lugares, de personagens que dialogam com nossa vida cotidiana. A magia da memória literária é esse vírus que nos acomete uma vez e não mais nos abandona, tomando-nos livremente, ao sabor do imponderável, e uma vez renovados pelas recordações de páginas e mais páginas narradas, acolhemos ainda uma vez o prazer de novo arrebatamento.

Acabei por me envolver na tarefa de traduzir o conto que nomeia o volume, Los Siete Mensajeros. Para realizá-la, utilizei-me de uma versão intermediária, em espanhol. Na medida do possível, realizei o cotejamento com o texto original, em italiano, principalmente nas partes onde permaneciam dúvidas sobre 'as faixas semânticas' mais adequadas, e o resultado me pareceu satisfatório. Seja como for, trata-se de um trabalho que contou com o cuidado em preservar o estilo do autor, o qual prioriza uma descrição objetiva dos fatos, com um desenvolvimento linear, sem um fraseado rebuscado. Gostaria de compartilhar os resultados obtidos, divulgando o texto a seguir. 

Antes, porém, considero importante destacar que os elementos da narrativa, como os mensageiros em seu distanciamento infindável, a própria determinação em cumprir suas tarefas, se submetem a uma sofisticada metáfora temporal. Seguindo esta linha, sem considerar as interferências dos acasos da vida, podemos desvelar cada situação de acordo com a proposta sensível do autor, qual seja, um presente desprovido de subterfúgios, tensionado inicialmente pela nostalgia do passado e mais ao final da narrativa, pelo desafio do futuro. Temos assim a resultante implacável de nossa condição de ser-aí, consciente de sua fragilidade e impossibilitado em fugir da construção de seu destino. 

Nas primeiras indicações do limite natural da aventura, o tempo exerce seu papel e aprofunda a finitude do corpo. A narrativa revela um dos eixos de sua metáfora, a vida em sua irrevogável incompletude. A descrição do supremo esforço do mensageiro Domenico no terreno a ser vencido e no tempo que irá levar com as mensagens se inscreve no lamento da perda definitiva do contato com o mundo que ficou para trás. O fenecimento do corpo é acompanhado pelas derradeiras lembranças, que cada vez mais se opõem aos horizontes vindouros da caminhada sem fim.

O segundo eixo desta bela narrativa de Buzzati é a meu ver, a dimensão temporal que a trespassa. Uma vez estabelecida a ruptura com o espaço-tempo de um passado que se esvai - a experiência vivida - a memória se incorpora às expectativas das fronteiras do reino, não mais que o futuro - o tempo a ser vivido. As novas missões dos mensageiros serão a de abrir caminho para o avanço às terras ignotas. 


Os sete mensageiros 
(Dino Buzzati)

Saí a explorar o reino de meu pai, porém dia a dia distancio-me da cidade e as notícias que me chegam são cada vez mais escassas. Comecei a viagem ao completar trinta anos e mais de oito se passaram, precisamente oito anos, seis meses e quinze dias de ininterrupta marcha. 

Quando parti, acreditava que em poucas semanas alcançaria com facilidade os confins do reino; entretanto, não deixei de encontrar novos lugares e pessoas, e em todas as partes homens que falavam a minha língua, que diziam serem meus súditos.

Por vezes penso que a bússola de meu geógrafo ficou maluca e que, convencidos de nos dirigir sempre para o norte, em realidade estejamos dando voltas ao redor de nós mesmos, sem aumentar a distância que nos separa da capital. Isso poderia explicar porque ainda não alcançamos a última fronteira.

Aos poucos, porém, atormenta-me a dúvida de que este confim não exista, de que o reino se estenda indefinidamente e de que, por mais que avance, nunca poderei chegar ao seu fim.

Dei início à tarefa quando tinha mais de trinta anos, talvez demasiado tarde. Meus amigos, meus próprios familiares, troçaram de meu projeto como sendo um desperdício dos melhores anos da vida. Na realidade, poucos dos que eram de minha confiança aceitaram me acompanhar. Embora despreocupado - muito mais do que estou agora - imaginei um modo de comunicar-me durante a viagem com as pessoas mais próximas e, dentre os cavaleiros da minha escolta, escolhi os sete melhores para que servissem de mensageiros.

Acreditava de maneira equivocada que dispor de sete mensageiros era mesmo um exagero. Com o correr do tempo observei que, ao contrário do que pensava, eram ridiculamente poucos, e isso sem considerar que algum deles caísse enfermo, ou fosse surpreendido por bandidos, ou esgotasse alguma montaria. Os sete mensageiros me serviram com uma tenacidade e uma devoção que dificilmente poderei recompensar.

Para distingui-los mais facilmente, eu os nomeei com as iniciais da ordem alfabética: Alessandro, Bartolomeo, Caio, Domenico, Ettore, Federico e Gregorio. Pouco habituado a distanciar-me de casa, enviei o primeiro, Alessandro, na noite do segundo dia de viagem, quando tínhamos percorrido umas oitenta léguas.

Para assegurar a continuidade das comunicações, na noite seguinte enviei o segundo, e em seguida o terceiro, o quarto, e assim sucessivamente até a oitava noite de viagem, quando partiu Gregório. O primeiro ainda não havia regressado.

Este nos alcançou na décima noite, enquanto montávamos o acampamento para pernoitar, em um vale desabitado. Soube por Alessandro que sua rapidez estava inferior ao previsto; tinha pensado que, viajando a sós e montando um magnífico corcel, poderia percorrer em um mesmo tempo o dobro da distância que faríamos, entretanto, somente pode cobrir o equivalente a uma vez e meia; em uma jornada, enquanto avançávamos quarenta léguas, ele devorava sessenta, não mais.

O mesmo ocorreu com os outros. Bartolomeo, que tomou o destino da cidade na terceira noite de viagem, retornou na décima quinta; Caio, que partiu na quarta, não regressou antes da vigésima. Logo constatei que bastava multiplicar por cinco os dias empregados por cada cavaleiro para saber quando nos alcançaria.

Como cada vez nos distanciávamos mais da capital, o itinerário dos mensageiros aumentava proporcionalmente. Transcorridos cinquenta dias de marcha, o intervalo entre a chegada de um mensageiro e o de outro começou a espaçar sensivelmente; enquanto que antes se via regressar ao acampamento um a cada cinco dias, o intervalo passou a ser de vinte e cinco. Desse modo, a voz de minha cidade se fazia cada vez mais débil; passavam semanas inteiras sem que tivesse qualquer notícia.

Passados seis meses - já havíamos atravessado os montes Fasano - o intervalo entre uma chegada e outra aumentou para quatro meses. Agora me traziam notícias distantes; os envelopes chegavam amassados, por vezes com manchas de umidade em razão das noites passadas ao relento pelo mensageiro.

Seguimos avançando. Em vão procurava me persuadir de que as nuvens que se formavam acima de mim eram parecidas com as de minha infância, de que o céu da cidade distante não era diferente da cúpula azul que pendia sobre mim, de que o ar era o mesmo, da mesma forma que o sopro do vento, o canto dos pássaros. As nuvens, o céu, o ar, os ventos, os pássaros, eram vistos por mim como coisas novas e diferentes; e eu me sentia um estrangeiro.

Adiante, adiante! Vagabundos que encontrávamos pelas planícies diziam-me que os confins não estavam distantes. Eu incitava meus homens a não descansar, sufocava as expressões de desalento que brotavam em seus lábios. Eram passados quatro anos desde a minha partida, que esforço mais prolongado! A capital, minha casa, meu pai, tornavam-se estranhamente remotos, vagamente reais. Vinte longos meses de silêncio e de solidão transcorriam agora entre as sucessivas chegadas dos mensageiros. Traziam-me curiosas cartas amareladas pelo tempo e nelas encontrava nomes esquecidos, formas de expressão insólitas, sentimentos que não conseguia compreender.

Na manhã seguinte, depois de uma breve noite de descanso, quando retomamos o caminho, o mensageiro partia na direção oposta, levando para a cidade as cartas que por um longo tempo eu havia preparado.

Transcorreram mais oito anos e meio. Esta noite eu jantava solitário em minha tenda, quando entrou Domenico, que esgotado pelo cansaço, ainda conseguiu sorrir. Havia quase sete anos que não o via. Durante todo esse longuíssimo período não fez outra coisa senão correr através dos prados, bosques e desertos, trocando quem sabe quantas vezes de cavalgadura para trazer-me esse maço de envelopes que ainda não tive vontade de abrir. Domenico já se retirou para descansar e partirá amanhã ao alvorecer.

Marchará pela última vez. Calculei em minhas anotações que, se tudo correr bem, eu prosseguindo em meu caminho como tenho feito até aqui e ele percorrer o seu, não verei Domenico antes de trinta e quatro anos. A essa altura estarei com setenta e dois anos. Mas começo a sentir-me cansado e é provável que a morte me leve antes. Desse modo, é provável que não mais o veja.

Dentro de trinta e quatro anos (como seria bom que fosse antes) Domenico vislumbrará de forma inesperada as fogueiras do meu acampamento e se perguntará por que percorri tão pouco caminho. Nessa mesma noite, o bondoso mensageiro entrará em minha tenda com as cartas amarelecidas pelos anos, cheias de absurdas notícias de um tempo já sepultado; se deterá sob o umbral, vendo-me imóvel, estendido sobre o leito, com dois soldados flanqueando-me com suas tochas, morto.

Ainda assim, segue, Domenico, e não me digas que sou cruel! Leva minha derradeira saudação à cidade onde nasci. Tu és o vínculo sobrevivente com o mundo que outrora foi também o meu. As últimas mensagens me fazem saber que muitas coisas mudaram, que meu pai morreu, que a coroa foi passada ao meu irmão mais velho, que me deram por perdido, que no lugar onde antes se encontravam os carvalhos sob os quais costumava brincar, construíram altos palácios de pedra. De todo modo, continua sendo a minha pátria.

Tu és o último vínculo com eles, Domenico. O quinto mensageiro, Ettore, que me alcançará, se Deus quiser, dentro de um ano e oito meses, não poderá partir porque não lhe daria tempo de regressar. Depois de ti, Domenico, o silêncio, a não ser que eu encontre, por fim, os esperados confins. Todavia, quanto mais avanço, mais me convenço de que não existe fronteira.

Não existe, suspeito eu, fronteira, ao menos no sentido em que estamos acostumados a pensar. Não há muralhas que separem, nem vales que dividam, nem montanhas que impeçam a passagem. Provavelmente cruzarei o limite sem me dar conta e, desconhecendo-o, continuarei a avançar. 

Por esta razão pretendo que, quando me alcançarem novamente, Ettore e os outros mensageiros que o seguem não partam de volta à capital, mas que cavalguem avante, precedendo-me, para que eu possa saber com antecedência aquilo que me aguarda.

Desde há um tempo, me desperta em plena noite uma agitação insólita, e não se trata de saudades das alegrias abandonadas, como ocorria nos primeiros tempos de viagem, mas uma impaciência em conhecer as terras ignotas às quais me dirijo.

Dia a dia, à medida que avanço para esse objetivo incerto, noto - e até aqui não o confessei a ninguém - como o céu resplandece uma luz insólita, jamais vista sequer em sonhos, e como as plantas, os montes, os rios que atravessamos, parecem feitos de uma essência distinta daquela de nossa terra, e o ar traz presságios que não sei expressar. 

A cada manhã uma nova esperança me arrasta para frente, para essas montanhas inexploradas que as sombras da noite ocultam. Uma vez mais levantarei acampamento, enquanto do outro lado Domenico desaparece no horizonte, portando para a remotíssima cidade minha inútil mensagem.



As marcas da divisão social




Equivocam-se as vozes que afirmam de modo peremptório e tendencioso que o atual governo dirigido pelo PT promoveu o acirramento social entre classes e mesmo a xenofobia e preconceito. Ontem mesmo li o depoimento de um deputado da oposição afirmando isso. Nosso país nasce sob a égide que licenciou ao longo de cinco séculos as profundas marcas da desigualdade, não sou eu quem digo, mas mestres do calibre de Caio Prado Jr, Sérgio Buarque de Holanda, para ficarmos por aí. De outra parte, a luta para a preservação das culturas originárias sempre se processou com enormes dificuldades, sob intensa e calada luta. No insuspeito comentário de Darcy Ribeiro, "(...) mesmo submetidos a todos os flagelos da enfermidade, da escravidão, da compressão do fanatismo missionário, governamental, ou de qualquer índole, esses grupos permanecem (ainda hoje) eles mesmos enquanto podem, conservam um mínimo de seus membros que partilham da mesma identidade étnica (...)". Isso, como se vê, no que diz respeito às culturas indígenas. No que tange à população negra, Florestan Fernandes, profundo estudioso do tema, observa que "as transformações da estrutura da sociedade, apesar da extinção da escravidão e da universalização do trabalho livre, não afetaram de modo intenso, contínuo e extenso o padrão tradicionalista de acomodação racial e a ordem racial que (o brasileiro) presumia". 

De um modo geral, nos últimos doze anos, assistimos a um avanço relativamente bem sucedido de programas sociais inclusivos, que permitiram maior acesso às camadas menos favorecidas da população, dentre as quais, os negros e mulatos. A percepção da inserção social estão bem definidos nos estudos econômicos de Marcio Pochmann, e não entrarei aqui em detalhes, mas posso citar uma importante referência bibliográfica, "O mito da grande classe média" (Boitempo, 2010), em que, de modo didático, expõe a relevância das políticas públicas aplicadas nestes anos.

Da minha experiência pessoal, poderia destacar inúmeros testemunhos vivenciados em São Paulo, que expressaram a intolerância atávica de nossas classes mais favorecidas, no que diz respeito aos direitos de cidadania. Pior ainda, ao desconhecimento profundo de conceitos políticos e da realidade desigual de nossa sociedade. Na disputa eleitoral de 1989, polarizada entre Collor e Lula, foi possível identificar o forte embate entre os interesses classistas. Vivíamos o recente evento da queda do muro de Berlim, que iria marcar a economia de nosso país nos anos seguintes, tornando descartável, para não dizer proibitivo, o discurso baseado no bem estar social. A profunda divisão de nossa sociedade ali dava mais um longo suspiro, e o que acompanhamos foi a entrada triunfante do que se denomina neoliberalismo, cujo conceito abandonou as páginas das publicações de administração e economia para ganhar força nas decisões governamentais. E não podemos dizer que saímos melhor dessa dolorosa experiência, marcada pela dependência, pelo ideário privatista, pela redução do emprego. 

Alguns anos antes desse turning point que formatou os desígnios da realidade político-econômica do Brasil ao longo de mais de dez anos, recordo-me de uma situação limite que define o ódio classista da nossa elite contra aquilo que considera uma ameaça ao seu status. Fui convidado por meus pais a um jantar no apartamento de uma família amiga deles, no exclusivo bairro do Morumbi. Confesso que aceitei a contragosto, porque de fato não tinha a menor afinidade com ela. O homem, chamarei aqui de Rodolfo, fazia parte do staff da diretoria de um poderoso banco, e embora fosse uma possibilidade de realizar uma 'experiência de campo', na verdade não saberia o que dizer, como me expressar num ambiente de pessoas que ascendiam vertiginosamente ao poder e à riqueza. Não foi preciso dizer nada, logo ao entrar no apartamento, fui conduzido pelo braço por Rodolfo até seu quarto, onde apontou para um fuzil pendurado na parede. "Está vendo ali, Marco, é com aquilo que receberei o seu pessoal". Por 'seu pessoal', esse modo tosco de se referir a um grupo de pessoas, ficou claro que já se tratava da incômoda ascensão do PT na política brasileira. Considero este um exemplo acabado de que nossas elites sempre se esconderam atrás do que Florestan denominou 'o preconceito de não ter preconceito'.



04 maio 2015

Vozes de uma brutalidade sem rumo

"Quando descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados"


Nada parece mais lamentável do que a ação tresloucada da polícia militar contra os professores, em Curitiba, nesta quarta-feira. Já se mostravam desoladoras as negociações com o estado, e tal como aqui em São Paulo, sem resultados promissores. 

Lá como cá, governos comandados pelo maior partido de oposição, que busca por todas as vias governar o país. Por mais que se esforce, não consegue se aproximar do objetivo. Perdeu lidimamente as eleições de outubro passado, mas sua voz prossegue em desafortunado lamento de desestabilização constitucional. O que pode conseguir com isso? Adesões que demonstram ter um propósito, não consistência. O jogo político se arrastava para um xeque perpétuo contra o governo, mas as vozes estridentes da oposição já não possuem a iniciativa vista até aqui. 

As mídias corporativas prosseguirão em seu clamor insinuante, edição após edição, até as próximas eleições, mas nem isso parece ser suficiente. Há as conhecidas parcelas do judiciário e do legislativo com seus factóides espetaculosos, seja na acomodação com as velhas estruturas de poder, seja na incessante busca da manchete a qualquer preço, a inspirar futuras manifestações em verde e amarelo, a nossa sábia burguesia com repisadas e desconcertadas palavras de ordem. Haverá todo esse esforço repetitivo, chato, paralisante, que por certo fornecerá combustível para novas indignações de Aécio.

Mas aí está o fato decisivo, Curitiba torna-se o divisor de águas, o ponto de inflexão das insinuações que essas vozes infundiram na organização social de nosso país, nos últimos seis meses. O governo tem sua chance de retomar as rédeas e dentro da ação constitucional, mostrar que a charlatanice do discurso da oposição, com suas promessas sedutoras e com suas verdades ocultas - agora bem visíveis - não passam de vozes a serviço de uma brutalidade sem rumo.

Nota: a legenda da foto foi sacada de uma crônica de Graciliano Ramos, Lampião, publicada no livro Cangaços. O período completo é "O que nos consola é a ideia de que nos interior existem bandidos como Lampião. Quando descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados". Nada mais adequado como complemento do texto acima.