16 fevereiro 2014

Sublime experimentação


Os alunos sabem apreciar uma aula expositiva. A palavra que se apresenta generosamente e seduz o ouvinte, o convida a interagir com o conteúdo apresentado, seus propósitos, sua importância. A construção da narrativa pedagógica incorpora assim a arguição aprimorada, cuidadosa, amparada pelo gestual envolvente, a refletir o prazer do educador com o tema. Em outras palavras, a performance corporal em completa sintonia com a fala. 

Minhas aulas deste semestre caminham cada vez mais neste espírito, em um contínuo convite à intervenção do aluno. Não vejo outro caminho para superarmos juntos as deficiências estruturais. As leituras são feitas e refeitas com antecipação, articuladas mentalmente e reproduzidas em tópicos. Em sala, os tópicos funcionam como ideias para uma argumentação mais densa, exposta de modo pausado, entremeado por espaços para a participação do aluno. Por alguma razão, talvez pela afinidade com a disciplina, pelo próprio comportamento ativo e interessado dos educandos, a satisfação do educador é imensa. 

Com a performance corporal, procuro conduzir a classe para o tempo histórico da discussão social. Ao falar com todos, não deixo de dirigir o olhar a cada um, não como forma de controle, mas como um convocação para interagirem com a narrativa em seus detalhes, seus deleites, suas dificuldades. Desta forma, os prazeres da viagem se prolongam por toda a aula, sem nos preocuparmos com o seu fim. Trago neste processo, sem dúvida, a experimentação que adquiri no acompanhamento dos saraus periféricos, no aprendizado com Paul Zumthor, a manifestação performática, dentre outras virtudes, promovida abertamente como fonte de eficácia textual.

Compartilho com eles a minha confiança, disseminando uma expectativa em especial, aquela de que poderão eles mesmos se apropriar da narrativa, ao tempo que desejarem. Não falham! Animamo-nos com a plasticidade dos fatos analisados, com o desenrolar das ideias e as interpretações possíveis. Não tenho dúvida em afirmar que a cada aula nos conscientizamos do valor de nossas discussões, que no final das contas, se incorporam efetivamente como parte de nossas vidas.

  

08 fevereiro 2014

relações estreitamente vinculadas

Sin pan y sin trabajo (Ernesto de la Cárcova)

'Em presença dos outros, o indivíduo geralmente inclui em sua atividade sinais que acentuam e configuram de modo impressionante fatos confirmatórios que, sem isso, poderiam permanecer despercebidos ou obscuros'.
Erving Goffman


comem a comida macia, sem exalar suspiros ou ruídos, tempo de recomposição das energias despendidas nos altos negócios. regozijam com o silêncio, justa pausa nas ávidas tensões. irmanam-se em torno do mesmo ideal, por um momento não se deixam fisgar pelo ritual dos movimentos de chegada e partida, de quem senta ou quem levanta. ou talvez sim, um bom tapinha nas costas de uma boa oportunidade de negócio, que esteja rolando ao lado da mesa, um 'curtir' facebookiano indispensável para não perder o prestígio. é hora de se alimentar, é hora de retomar as habilidades das mãos e das mandíbulas. uma procissão de gestos, os guardanapos a circundar metodicamente os lábios, as vozes amenas, o tilintar espaçado dos talheres na porcelana, as crianças disciplinadas em suas cadeiras especiais. apreensões imagéticas e sensoriais que se perderão para todo o sempre, mas que não deixarão de se reproduzir com o mesmo zelo, ou seja, nada se perde, tudo se recria. os sorrisos entediados dão lugar à seriedade do próximo ataque do garfo, ali o coq au vin, acolá o salmão poché, o profiterole como sobremesa. a senhora dos cortes demorados, o homem das garfadas compassadas, a jovem que rompe a sinfonia dos gestuais para silenciar a estridência do celular. foi o tempo certo para retomar as atividades, acaba de comer e os assuntos profissionais voltam a procurá-la. entre goles de café, insiste para que demitam a novata, aproveitem que ela perdeu a criança e volte a engravidar. A fala é macia, como a comida ingerida, pausada como os suspiros dos iguais, que simulam a naturalidade entediante dos que compreendem que ganhar dinheiro é, afinal, a resultante do bom gerenciamento em face das difíceis decisões...  


03 fevereiro 2014

Todos os esforços para deter o cidadão Silva


Hohe Strasse, 2010


Foi a primeira decisão das férias, pagar as contas em atraso no Centro Comercial. As festas de fim de ano cobravam, enfim, seu preço, de modo que lá se foi Gualberto Silva, uma caminhada até o ponto, cinquenta minutos no coletivo e mais um trecho do metrô. Desceu no calçadão e em poucos minutos (teria chegado mais rápido se não houvesse tanta gente aproveitando as liquidações de começo de ano) alcançou o destino. Poderia escolher uma de três entradas, optou pela principal, ao seu juízo mais ampla e acolhedora, e qual não foi sua surpresa quando logo foi detido. O segurança afirmou que não poderia permitir sua entrada. Gualberto Silva observou o homem, bem mais alto e forte, mas sem um argumento razoável para contê-lo. Em situações de tensão não conseguia exprimir-se, balbuciava sílabas, pedaços de frases, a gagueira o tolhia. Então sacou as três prestações do bolso e as brandiu próximo das narinas do sujeito. O intercomunicador ligado transmitia mensagens codificadas, QAP, prossiga...; informar o QTI... vozes espaçadas por um forte chiado. Permaneceram por alguns instantes um diante do outro, Gualberto Silva tentou pela direita, pela esquerda, foi contido. O segurança estava bem treinado, movia-se sem acrescentar uma palavra sequer ao já dito, não pode passar. Os gestos dos dois despertou a curiosidade da multidão que passava, até que um outro segurança, mais baixo e com um colete especial se acercou, e antes que fosse colocado a par do problema, informou a Gualberto Silva para que os acompanhasse. Mas que papo é esse?... e o mais baixo prontamente imobilizou, com toda a discrição, ao pobre Silva. Dirigiram-se a um trecho menos movimentado, um corredor de um branco imaculado, em que as paredes se confundiam com o piso e o teto. Ao final, uma porta, entraram e pediram para que Gualberto Silva se acomodasse. A mobília da sala era um conjunto de cadeiras, além de uma mesa de madeira. Pela porta oposta, atrás da mesinha, adentrou recinto um homem gordo, calvície avançada. Sentou-se diante de Gualberto Silva, olhou para os seguranças com uma expressão cansada e sem graça. Sem pressa, tirou do bolso um maço de cigarros, escolheu um, acendeu, deu uma longa tragada e ao final, mirou o elemento detido. É proibido fumar aqui, mas hoje me deu vontade... Outra longa tragada. O dia vai ser longo, mas que saco... Deu uma risadinha ridícula e olhou para Gualberto Silva, que por sua vez começava a se preocupar, atento aos movimentos ao redor. Estava isolado em um ambiente neutro, cercado por três sujeitos desconhecidos, que representavam a segurança do Centro Comercial e o fato, o tinham detido. Quis argumentar e balbuciou nervosamente, palavras entrecortadas que ampliavam a suspeita, fosse qual fosse. Quando percebeu, estava a dois passos do gordo, capturado e recolhido de volta ao banco pelos dois seguranças. É o seguinte, que porra você veio fazer aqui, cara? Cadê sua turma? Qual é o esquema?... A presunção dos gestos o indicava como chefe, Gualberto Silva por fim conseguiu mostrar as três prestações, Estou aqui para pagar estas... justamente quando o gordo as tomou, forjando analisá-las com seriedade. Retornou para trás da mesa, sacou o intercomunicador da cintura e chamou alguém pelo rádio. Em meio ao diálogo, disparou já sem paciência, Faça-me o favor, este é um caso 32-B, não é comigo, levem o elemento pro Xavier... O Xavier tá de folga, falou aos poucos o mais alto, Então vai lá pro Tobias, caralho... Gualberto Silva foi erguido e bem que se esforçou por argumentar algo, quando o segurança mais baixo o imobilizou e o grande, com seu jeito legal, acrescentou, Não, não fale... Aguardaram mais dois chegarem, um de óculos e outro careca, e todos os quatro mais Gualberto Silva, imobilizado, saíram silenciosos rumo à sala do Tobias. Tiveram de tomar os caminhos menos frequentados pelos clientes, o Centro Comercial estava cheio, era o primeiro fim de semana depois do rolezinho que conduziu mais de cinquenta jovens para o mesmo passeio restrito. O ar que se respirava era de desejo por compras, normal como sempre fora, nem uma referência a qualquer tipo de problema que só a direção perscrutava, deixando a segurança em prontidão máxima. Gualberto Silva deu azar de ser jovem, negro e estar muito à vontade quando entrou naquele templo do consumo. Agora caminhavam os cinco pelos caminhos interiores, novamente os corredores imaculados, entraram por uma porta estreita e Gualberto Silva foi despejado em uma sala maior que a anterior, com pelo menos outros quinze cidadãos de aparência suspeita retidos para averiguação. Havia mais seguranças, e lá na frente, o Tobias. O tempo escoou gota a gota, Gualberto Silva ainda imobilizado por uma correia de plástico tentava se indignar, mas era sempre lembrado pelo mais alto, Não, não fale... e posteriormente, Não, não se mexa... Parecia haver neste aviso um sinal de solidariedade, mas a frieza do comentário pareceu-lhe de fato uma construção de meses de treinamento. Um a um os suspeitos retirados de circulação foram trazidos ao Tobias, o interrogatório variava de acordo com a disposição do detido. A fila foi andando, os caras eram encaminhados para a mesma porta aos fundos, outros foram chegando, a sala não dispunha de ar condicionado, o cheiro de tensão e sofrimento percorria as narinas de seguranças e detidos, até que chegou a vez de Gualberto Silva. Tobias checou o documento de identidade, fez as perguntas olhando nos olhos do rapaz, que contido, desconfortável, vigiado, esgotado, respondia com a indignação possível. Por fim, sem que fosse necessário, Gualberto Silva exalou um derradeiro e perigoso comentário, Minha mulher e minha filha estão me esperando... como se isso pudesse acelerar a burocracia da detenção. O rádio do Tobias não parava, parecia que um verdadeiro sistema de segurança funcionava a pleno vapor, com várias instâncias sendo consultadas. Tobias avaliou as prestações, não queria dizer o que disse, Bom meu chapa é o seguinte, o Gileno, esse sujeito que está do teu lado - que era o mais alto - vai te conduzir quietinho até o Adamastor e lá ele resolve a situação... Gualberto Silva esperou pelo brinco colado na orelha que alguns antes receberam, mas era um eleito, safou-se na boa, foi erguido e conduzido por uma outra porta pelo Gileno, mais alto, mais ambíguo e mais sem graça, rumo ao Adamastor. Mais corredores, um trecho do terceiro andar do Centro Comercial, por um momento Gualberto Silva sentiu-se cidadão e compartilhou em seu deslocamento forçado com famílias que circulavam na praça de alimentação, momento de inesperado alívio, uma fresta de sagrado direito em que pode observar os casais de mãos dadas conversando, olhando para as vitrinas, crianças correndo, muitos jovens à vontade, sorrindo, passeando, namorando sem serem incomodados. A sala que entraram era quase exclusiva, Gileno despejou Gualberto Silva diante do Adamastor, nem cadeira para se acomodar. Havia uma pequena conferência, eram ao todo três, uma conferência de supervisores, chefetes da segurança, quando Silva chegou. O Adamastor se antecipou e tomou as prestações que o detido lhe mostrou. Na boa, parece que está tudo bem por aqui, não é mesmo?, ao que Gualberto Silva, já bem fatigado, concordou. Coisas do sistema, temos de separar o joio do trigo, nem sempre as coisas são o que são... e prosseguiu repetindo sobre as coisas, tentando convencer Gualberto Silva que as coisas, bem, que a sociedade de consumo não previa tamanhas transformações, que ali estava a prova de um espaço de insondável penúria no sistema capitalista, que era necessário entender que tudo continuaria sendo pensado naquela estrutura cautelosa e preconceituosa. Adamastor não pretendia que Gualberto Silva entendesse, e talvez nem soubesse explicar, ficava mais fácil assimilar que ele e sua equipe estavam apenas cumprindo ordens superiores. Liberado para, enfim, pagar suas prestações, Gualberto Silva foi acompanhado pelo Gileno, que era tão negro e das margens quanto ele. Gualberto Silva arriscou dizer algo quando foi liberado da correia, e mais uma vez e de modo mais suave o segurança lhe pediu, Não, não fale... dont speak!, de acordo com o aprendizado visando a Copa. Tomaram o elevador dos fundos, desceram, desceram e diante de um novo corredor, menos brilhante como os anteriores, o cidadão Gualberto Silva estava livre para se encaminhar à única porta disponível e que uma vez atravessada, se viu inopinadamente banhado pelo sol supremo de um lindo dia. Estava de volta à rua.