16 setembro 2012

Sabra e Chatila


"As forças libanesas de Haddad, com o apoio do exército israelense, entraram em Sabra e Chatila – acampamentos palestinos situados em Beirute ocidental – em 16 de setembro, menos de um mês após a retirada de todos os combatentes palestinos (fedayins) para Tunis e outras localidades árabes, e três meses e meio após o início do cerco imposto a Beirute ocidental por tropas israelenses.

A retirada tanto dos combatentes como dos dirigentes palestinos fazia parte de um acordo patrocinado pelo governo dos EUA, visando a suspensão do bloqueio de Beirute. As forças de interposição da ONU abandonam a cidade dia 13, dez dias antes do prazo estabelecido, e no mesmo dia em que os israelenses e seus aliados entram na parte ocidental.

      Tendo início na quinta-feira, dia 16, o massacre nos dois acampamentos durou até a manhã do sábado, 18 de setembro, quarenta horas ininterruptas. Segundo estimativas de agências internacionais, foram cometidos cerca de 2.000 assassinatos, em uma população de 20.000 palestinos. As vítimas, constituídas em sua maior parte por idosos, mulheres e crianças, estiveram expostas à sanha de Haddad, Hobeika, Sharon... 

       A intenção desta peça é reconstituir o drama vivido por uma hipotética família palestina nos campos de Sabra e Chatila, na noite do dia 17 de setembro. Os nomes das personagens foram escolhidos aleatoriamente, dentre as vítimas deste episódio hediondo". 

(Introdução do texto Chatila, escrito pouco depois da chacina nos acampamentos palestinos, em setembro de 1982).


14 setembro 2012

Los que tienen bosque y agua




Testamento de Otoño
(fragmento)


Al odio le dejaré 
mis herraduras de caballo,
mi camiseta de navío,
mis zapatos de caminante,
mi corazón de carpintero,

todo lo que supe hacer
y lo que me ayudó a sufrir,
lo que tuve de duro y puro,
de indisoluble y emigrante,

para que se aprenda en el mundo
que los que tienen bosque y agua
pueden cortar y navegar,
pueden ir y pueden volver,

pueden padecer y amar,
pueden temer y trabajar,
pueden ser y pueden seguir,
pueden florecer y morir,

pueden ser sencillos y oscuros,
pueden no tener orejas,
pueden aguantar la desdicha,
pueden esperar una flor,

en fin, podemos existir,
aunque no acepten nuestras vidas
unos cuantos hijos de puta.


(Pablo Neruda)



10 setembro 2012

Allende por las calles

Allende faz o que seu sucessor golpista jamais teve coragem:
caminhar pelas ruas com o povo


Gosto desta imagem de Allende, tomada logo após sua vitória. Caminha pelas ruas, acompanhado por uma multidão que deseja estar ao seu lado. Gosto dos sorrisos dos protagonistas, compostos por diversas faixas etárias, provavelmente após ouvir algum chiste do presidente. Gosto dessa leveza de um presidente que, sabendo-se respeitado por seu povo, não titubeia em ganhar as ruas. A foto mostra movimento, nada parecido com estes que adornam campanhas publicitárias, em que o personagem se mostra apressado para mostrar determinação e espírito de vencedor. Não, aqui temos uma caminhada livre, em que as pessoas se aglomeraram da maneira que foi possível, e o fotógrafo teve a felicidade de tomar a distância necessária para registrar o flagrante, plasticamente emocionante.

Não há razão para se colocar a imagem simbólica do La Moneda em chamas, vítima do brutal golpe de estado patrocinado pela CIA. A memória de Allende, para mim, é similar a da foto, um estadista voltado para as necessidades de seu país, dedicado a sanar as desigualdades a partir de um governo socialista humanista, sempre preservando a democracia parlamentar. O golpe de 11 de setembro, embora previsível, o tomou de surpresa. No derradeiro jantar em Tomás Moro (tão apropriada designação!), a residência oficial do presidente, na companhia de alguns ministros e colaboradores, o clima de tensão se instala com chamadas telefônicas indicando a movimentação militar desde Valparaíso. Estava previsto para o dia seguinte um discurso em cadeia nacional, em que Allende faria conhecer, segundo o testemunho de seu assessor espanhol, Joan Garcés, uma proposta para reordenar as instituições do estado por vias democráticas. 

Não houve tempo. Segundo o livro de Patricia Verdugo, Allende - cómo la Casa Blanca provocó su muerte, logo pela manhã de 11 de setembro, o presidente deixou sua residência para alcançar o La Moneda. Os movimentos da comitiva estavam sendo monitorados pelo serviço de inteligência golpista, e ultrapassava os limites do Chile. Segundo as palavras de Patricia, A esa misma hora, en Valparaíso, el teniente coronel Patrick J. Ryan, de la US Navy, se comunicaba con la central en Panamá: "Con el jefe de señales Paul Eppley a cargo de la radio y el teniente Roger Frauenfelder redactando el mensaje, pudimos comunicarnos a las oficinas centrales de la Zona del Canal de Panamá. Se evitó específicamente culquier referencia a la situación en Santiago, ya que cualquier estimación sólo podría haber sido conjetura".

Ainda havia incertezas do lado golpista. Não se sabia exatamente como reagiria o poder popular dos cordones industriales, onde se acreditava que ocorreria uma possível reação ao golpe por parte dos operários, coordenados pelas centrais sindicais. 

Mas aos poucos, ao longo da manhã, o presidente se veria cada vez mais isolado, perdendo todo o apoio militar, inclusive da força de Carabineros, e político. Allende estava isolado, na companhia de sua guarda pessoal, alguns políticos fiéis e suas filhas. Sucederam-se então, as quatro locuções ao povo, o feroz bombardeio começado por volta das 11h, a rendição do palácio e a morte do presidente. Para quem tiver estômago forte, segue aqui, durante uma hora e meia, as ações do comando golpista, comandadas por Pinochet. 

Recentemente terminei um texto acadêmico, não conseguindo me furtar da referência de Allende sobre as grandes alamedas da democracia contida em sua última locução, emitida pela rádio Magallanes. Retomo a imagem acima, uma caminhada pública que emana leveza, já o disse, mas também justiça, paz, desejo de solidariedade. Não há como aceitar que esses anseios, cálidos e serenos anseios, sejam suprimidos pela barbárie golpista.  


03 setembro 2012

As colunas de Hércules

Cortés encontra Montezuma

O grande empreendimento marítimo realizado por Portugal e Espanha, nos séculos XV e XVI culminou com a descoberta do Novo Mundo, ou, nas palavras de Fuentes, sua invenção. Seus formidáveis detalhes são descritos em duas obras que devoro aos poucos, Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, e Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, no primeiro caso, a construção europeia de sua utopia para realizar a aventura épica que se consolida no segundo texto. Em ambas as obras, o relato objetivo, bem elaborado, que seduz ao leitor, proporcionando a adesão necessária para avançar longamente na leitura. 

O mundo passa por uma profunda transição científica, que irá afetar as concepções religiosas do cristianismo, e consequentemente, a visão de mundo. A imprensa de Gutemberg e o protestantismo de Lutero irão acentuar essa transição, permitindo que um novo sistema econômico, o capitalismo mercantilista, trate de expandir os horizontes então conhecidos, dando início ao longo processo de constituição do imaginário nacional,  descrito por Benedict Anderson, em seu livro Comunidades Imaginárias.

Poderíamos abordar o tema a partir de inúmeras perspectivas, porém gostaria de retornar às grandes navegações, onde a épica empreende o desvelamento da utopia tão longamente alimentada pelos mitos de diversas civilizações. No horizonte desta utopia, o Paraíso Terrenal, também identificado pelas descrições como as Ilhas Fortunadas, para além das colunas de Hércules, onde se pode desfrutar de uma paisagem de generosa verdura... agrestes pomos e saborosos, que os moradores podem alcançar sem trabalho, esforço ou cansaço... com um clima onde predominam ares bonançosos e salutíferos (Plutarco, apud Holanda).

Em 1519, Cortés desembarca em Vera Cruz, e adentra pelo interior, tomando o caminho de Tenochtitlán. Antes de alcançar o destino, recebe de Montezuma como uma espécie de oferenda a índia Malinche, Malintzin, depois Marina, e como nos descreve Octavio Paz, também conhecida como La Chingada, que, no México, origina um vocábulo ambíguo, carregado de sexualidade, chingón, variando de sentido conforme a entonação.

Segundo Paz nos descreve, "La Chingada é a mãe aberta, violada ou seduzida pela força", e mais adiante, "Ela encarna o aberto, o chingado, em relação aos nossos índios, estóicos, impassíveis, fechados", desenvolvendo a ideia de aberto e fechado, a mãe que se abre para o vilipendiador estrangeiro, o mexicano encerrado em seu isolamento, histórico e pessoal. Na ilustração desta postagem, Cortés encontra Montezuma, vemos o registro do diálogo que irá determinar pouco mais tarde a prisão do Grande Tlatoani do México, o Senhor da Grande Voz, "despojado de seus atributos por um europeu renascentista e por uma mulher que outorgou a língua índia aos espanhóis" (Fuentes).

Cortés, em nome da autocracia do reino espanhol, silencia à força a autocracia indígena, representada por Montezuma. Em 1553 perdemos o direito de conhecermos a nós mesmos, pois um decreto da metrópole impediu de circular nas colônias as histórias da conquista. De algum modo, a narrativa de uma épica da conquista sucumbe juntamente com a utopia da descoberta (ou da invenção) do Novo Mundo. Sem uma voz que relatasse a nossa memória - "recordar o futuro, imaginar o passado", passamos a suprir o vazio de história, escrevendo romances. Para Lezama Lima, será a arte do barroco que proporcionará a afirmação de nossa identidade, ou como em suas palavras, "Vemos que o senhor barroco americano, a quem designamos como o autêntico primeiro instalado no que é nosso, participa, vigia e cuida as duas grandes sínteses que estão em sua raiz, a hispano-incaica e a hispano-negróide". 

Assim, a cosmogonia da Latinoamerica incorpora a rebelião da arte barroca, a mestiçagem de brancos, negros e índios, e o fantástico como a expressão diferenciada de nossa narrativa. Passamos de Carpentier a Borges, de Rubião a Azuela, de Darío a Benedetti, e nos tempos presentes alcançamos as bordas de nossas cidades, a épica do cotidiano conduzida por sonhadores humildes, com sua voz que resiste em não se apagar, e o imaginário a fomentar uma renovada utopia, não muito além das colunas de Hércules.