23 julho 2012

Páramo, por Fuentes



Ainda não li Pedro Páramo, de Juan Rulfo, mas estou pronto, ou melhor dizendo, estou ansioso por fazê-lo. Estimula-me a leitura da análise que Fuentes faz da novela, em seu maravilhoso La Gran Novela Latinoamericana
Traduzo abaixo uma pequeno trecho do capítulo, procurando preservar a deliciosa fluência descritiva que abarca a morte, o silêncio, a linguagem, o mito, no espaço vivenciado de Comala.

"O silêncio é rompido pelas vozes que não ouvimos, as vozes mudas do gado mugidor, da vaca ordenhada, da mulher parturiente, da criança que nasce, do volume sem vida que uma mendiga embala em seu xale.

Este silêncio é o da etimologia mesma da palavra mito: mu, diz-nos Erich Kahler, raiz do mito, é a imitação do som elementar, res, estrondo, mugido, sussurrar, murmurar, murmúrio, mutismo. Da mesma raiz provem o verbo grego muein, fechar, fechar os olhos, de onde derivam mistério e mística.

Novela misteriosa, mística, sussurrante, murmurante, mugida e muda, Pedro Páramo concentra assim todas as sonoridades mortas do mito. Mito e Morte: esses são os dois emes que coroam todas as demais antes que as coroe o nome mesmo de México: novela mexicana essencial, insuperada e insuperável, Pedro Páramo se resume no espectro de nosso país: um murmúrio de poeira desde o outro lado do rio da morte.

A novela, como é sabido, chamou-se originalmente Os murmúrios, e Juan Preciado, ao violar radicalmente as normas da sua própria apresentação narrativa para ingressar ao mundo dos mortos de Comala, diz:

- Me mataram os murmúrios.

Matou-o o silêncio. Matou-o o mistério. Matou-o a morte. Matou-o o mito da morte. Juan Preciado ingressa a Comala e, ao fazê-lo, ingressa no mito encarnando o processo lingüístico descrito por Kahler, e que consiste em dar a uma palavra o significado oposto: como o mutus latim, mudo, se transforma em mot francês, palavra, a onomatopéia mu, o som inarticulado, o mugido, se converte em mythos, a definição mesma da palavra.

Pedro Páramo é uma novela extraordinária, entre outras coisas, porque gera a si mesma como novela mítica, da mesma maneira que o mito se gera verbalmente: do mutismo do nada à identificação com a palavra, de mu a mythos e dentro deste processo coletivo que é indispensável à gestação mítica, que nunca é um desenvolvimento individual. O ato, explica Hegel, é a épica. Pedro Páramo, o personagem, é um caráter de epopeia. (...)

(tradução a partir do livro de Carlos Fuentes, La Gran Novela Latinoamericana, Editora Alfaguara, 2011)




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