04 março 2011

Torpor


espaços urbanos, catacumbas humanas...


De sua parte, o senhor B. experimentava o desvario indigesto da especificidade, sensação que há muito não sentia. Os delírios febrís começaram a cobrar seu tributo tão logo se ele se estendeu por sob as cobertas,

o mosaico diabólico movendo suas peças em um rearranjo longe de ser perfeito, mas que o distraía para a sequência...

a música entre ecos, sinos, sinetas, o ranger de metais, sons acústicos, a voz modulada balbuciando frases desconexas...

a imagem do céu cinzento, ao longe o bramir das ondas rebentando na encosta rochosa, bateria e baixo, a voz modulada, 'look at the sky...', um soturno trompete, ao longe o suave toque, como a marcação musical, em tempo sincronizado... a voz modulada ganhando feições distorcidas, repetindo 'look at the sky...' e junto ao choro de uma criança, o mar bravio, a brisa fria de um cinza chumbo... o senhor B. lembra-se que deve ir ao encontro com a senhora M... 

... o vento o abraça solene, demoradamente, imobiliza-o em crescentes incertezas... tem o desejo de ir à beira-mar... a música entre ecos, o baixo acelerando a melodia, a nota esgarçada de um sintetizador, o corpo úmido... pensa que já é quinta feira, 'Não, não...' e sorri, porque gosta da reminiscência, um achado tão doce em uma jornada tão desconfortável... e sorri e as imagens se desvanecem logo ao surgirem, nenhum sentimento nem tampouco as visões do torpor persistem...


... o senhor B. volta-se para o outro lado, desaparecem as imagens e os sons por um instante, para ressurgirem no outro, pausados, distintos, agora as palavras do final de ano, um garçon em Berlim o convida para um drinque, '...this is champagne... merry christmas...', está em Berlim e o salão tão comum, gente transitando, o frio que vem de fora e penetra as grossas lãs... o senhor B. agora transita pelas ruas recobertas de neve... o som modulado, o prato da bateria delicadamente ressonado, o trompete... um jazz com batida rítmica, o baixo... 

... um tremor do corpo, o senhor B. não se sente confortável, mas as alucinações febris não o deixam, torna-se seu refém e tem consciência que enquanto a febre persistir, estará imerso em visões e sentimentos desconexos, imprecisos... lembra-se que tem um encontro, não pode faltar porque deseja dizer coisas muito importantes... a senhora M. talvez entenda um pequeno atraso, mas não esse atraso de duas horas... o café está vazio, as atendentes se esforçam para cobrir o sorriso e continuam com seus afazeres por trás do balcão...

... o senhor B. se aproxima, 'Por acaso viram a senhora M.?', ao que a atendente mais velha volta-lhe as costas, proferindo algo... 'O que disse, senhora?'... insiste o senhor B. e ela bem que se volta, sem o encarar diretamente... as três agora estão juntas, elas cozinham em um caldeirão atrás do balcão, são as três bruxas de Macbeth, o senhor B. sente bater-lhe às costas, é o garçon, 'I am the boss, this is champagne, merry christmas...

... um vago desejo de levantar da cama é logo portergado pela indisposição, então o senhor B. adormece por um lapso breve, para situar-se numa semiconsciência turva, e sente o corpo encharcado, e sabe que não conseguirá discernir se é hoje ou se é amanhã, e o encontro que não pode faltar, que não quer faltar... a batida ritmica, o sintetizador, um eco ressoando os instrumentos de percussão... a boca seca, talvez um café, mas a senhora M. não veio ao encontro... 

... dois alunos o aguardam do lado de fora, querem saber da prova, 'Não, depois...', e avança por sob a chuva fina, 'O céu ainda plúmbeo, penso que continuará assim por um bom tempo...' reflete o senhor B, empapado em suor, e chega a uma biblioteca vazia, os ecos dos sinos e dos pratos anunciando o desconsolo do desvario febril, mais e mais uma vez... e a incerteza de que encontrará a senhora M. com suas roupas de inverno, o grosso e aconchegante cachecol de flanela... 

... 'Onde você o comprou?', pergunta o senhor B. aproveitando que a vê de passagem, mas a senhora M. não se detém e prossegue em seu caminho, com a bolsa e os cadernos e os livros, e dobra o corredor... e o suave trompete, a batida ritmica, o baixo acústico, a voz mixada que não abandonam o sono do senhor B...



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