As duas primeiras semanas de férias do Bernardo foram imersas em bebida. Pela manhã, café com vodca, no almoço, cerveja e vodca, à tardezinha, gin com Martini e no jantar, envolto em seu transe alcoólico, entregava-se ao sono atormentado por seguidos pesadelos que não se completavam, e assim até a manhã seguinte, quando recomeçava com empenho redobrado o circuito diabólico da perdição.
Concorria consigo mesmo, as persianas fechadas, a indiferença às circunstâncias e ao silêncio. Uma ou outra vez sentia apenas a necessidade de ir ao banheiro, o mal-estar assomando-lhe a garganta, vindo do estômago tão vilipendiado para em seguida, o jato indesejado defenestrar-se da boca e impregnar o vaso e não só, mas também o piso e paredes. Cambaleava da cama para o sofá na sala, conseguia ligar o aparelho de som e o mesmo disco de Coltrane ecoava serenamente pelo apartamento, por horas ou mesmo dias. E os fantasmas de Tyner, Garrison e Jones se alternavam em uma aparição baça, onde exprimiam suas opiniões, uma ou outra vez comprometida com a sonoridade de seus instrumentos e nada mais belo do que isso, mas outras vezes invectadas sem mediação, nuas e cruas diatribes, O que pensa que está fazendo, Buddy?...
Bernardo não sabia o que dizer nessas ocasiões, apenas tentava observá-los e aquela bruma densa a preencher a sala e os tornar ainda mais fantasmagóricos... Em certo momento, foi Coltrane quem abandonou o saxofone e o advertiu com rigor, Você está cavando, Bernardo, está cavando... e o que amenizava a dureza da imagem era ouvir Jones bater ritmicamente as baquetas, um, dois, três, como a chamar o grupo de volta à música e Coltrane em especial aos seus fraseados cortantes, rumo a sua viagem cósmica...
Bernardo deixava-se então levar pelas difusas impressões, movia-se muito pouco, sem um propósito definido, emborcando copo atrás de copo, no ambiente envolto em sombras. Vez ou outra lembrava-se que precisava descer e buscar alguma coisa na venda logo em frente, mais garrafas, mais cigarros, e subia trôpego os quatro andares e algo parecido a uma fugaz satisfação o preenchia ao retornar à sala de estar, que escoava tão logo se entregava a mais um gole...
Duas semanas. Por fim, com o pouco de forças sabe-se lá de onde reunidas, alcançou o telefone e ligou para Elena. Esperou, esperou, nada. Olhou ao redor, garrafas vazias, sujeira acumulada, as lufadas de vento agitando as persianas, a chuva intensa desabando, respingando no assoalho próximo à janela. Ergueu-se, recolheu as persianas, viu as pessoas movendo-se com rapidez, umas com os guarda-chuvas abertos, os automóveis parados, as gotas precipitando ao solo. Sentiu que precisava de um banho e quando a água fria projetou-se na nuca, um espasmo o fez sacudir, como se o choque térmico o despertasse para a vida. Balbuciou palavras desconexas e por um longo tempo manteve-se imóvel, sob o fluxo de águas despencando do chuveiro direto em sua cabeça, até o último jorro sacudir-lhe e sair das entranhas...
A água prosseguiu acariciando o corpo dolorido, que se encolheu contra a parede do box, já mais vívido, as ideias menos embotadas movimentando o pensamento. Bernardo saiu do chuveiro, retirou a camisa e a cueca empapadas e colocou o roupão.
Retomou as ruas ao tempo em que a chuva havia cessado. Caminhar significou recuperar a consciência de mundo perdida nas semanas anteriores, as cores pareceram-lhe mais vivas, as expressões das pessoas menos desprezíveis, o ar fresco estimulante. Foi até o Le Parisien, o café onde costumava ver o tempo passar. Sentou-se na mesa mais ao fundo e com a mão direita acariciou o rosto barbado. O lugar estava parcialmente cheio, logo Cesário acercou-se, Hum, parece que a coisa foi feia desta vez... e Bernardo nada disse, não estava a fim de conversa, nem de pensar, pediu a média escura e ficou a ver o movimento.
Gente de todo o tipo circulou diante de si, sentou-se nas mesas vizinhas, passou pela calçada, até que vislumbrou uma jovem junto ao balcão, pagando a conta. Uma visão rápida, incisiva, duradoura, ela com capa de chuva amarrada na cintura, esguia, não muito alta, cabelos soltos, castanho-claros, à altura dos ombros, elegante, intelectual, gentil, voltou-se num átimo para Bernardo, olhando para as moedas que recolhera como troco, a cabeça baixa, um vulto exultante que logo atravessou o salão e deixou o Café.
Por que aquela mulher o havia instigado de modo tão especial? Sentia a boca seca, um gosto de papel que o café não conseguiu extirpar. Preservou por um tempo que mais tarde não soube mensurar o perfil da mulher e levantou-se, e antes que Cesário fizesse algum comentário, deixou uma nota de dez reais e caiu fora.
As ruas prosseguiam úmidas, os sons não o alcançavam, pensava na mulher desconhecida, perscrutava por todos os lados algum sinal da capa de chuva bege amarrada na cintura, para os cabelos cálidos, de um aroma jasmim que não distinguia se imaginário ou real, e prolongou-se na caminhada infrutífera, imerso em um transe que dispensava o mundo.
Então se deu conta que alcançara a plataforma do trem. Viu de relance o telefone público, se aproximou e tentou mais uma vez, esperou, esperou, o chamado não foi atendido. A luz da tarde inundou a estação, rompendo por um instante o céu encoberto. Um brilho intenso o atingiu e mesmo deslocando-se não conseguiu afastar o incômodo. Bernardo insistiu em olhar contra a luminosidade, que refletia com mais força no piso lustroso, olhos aguçados e bloqueados por inesperado fulgor.
E o trem que não dava mostras de chegar, e seus passos incertos que avançaram o quanto pôde pela plataforma esvaziada, os poucos transeuntes esparsos, a luz que o cegava e ao mesmo tempo o inundava, as ideias descompassadas que não irrigavam o pensamento, cada vez mais disperso, as vozes que não conseguia discernir, o belo rosto da mulher do Café, o quadro de partidas e chegadas, os fios de eletricidade suspensos, a marquise, os ruídos longínquos de uma composição, sem dar menção de se aproximar ou distanciar-se...