24 maio 2010

Sobre a incerteza



As duas primeiras semanas de férias do Bernardo foram imersas em bebida. Pela manhã, café com vodca, no almoço, cerveja e vodca, à tardezinha, gin com Martini e no jantar, envolto em seu transe alcoólico, entregava-se ao sono atormentado por seguidos pesadelos que não se completavam, e assim até a manhã seguinte, quando recomeçava com empenho redobrado o circuito diabólico da perdição.

Concorria consigo mesmo, as persianas fechadas, a indiferença às circunstâncias e ao silêncio. Uma ou outra vez sentia apenas a necessidade de ir ao banheiro, o mal-estar assomando-lhe a garganta, vindo do estômago tão vilipendiado para em seguida, o jato indesejado defenestrar-se da boca e impregnar o vaso e não só, mas também o piso e paredes. Cambaleava da cama para o sofá na sala, conseguia ligar o aparelho de som e o mesmo disco de Coltrane ecoava serenamente pelo apartamento, por horas ou mesmo dias. E os fantasmas de Tyner, Garrison e Jones se alternavam em uma aparição baça, onde exprimiam suas opiniões, uma ou outra vez comprometida com a sonoridade de seus instrumentos e nada mais belo do que isso, mas outras vezes invectadas sem mediação, nuas e cruas diatribes, O que pensa que está fazendo, Buddy?... 

Bernardo não sabia o que dizer nessas ocasiões, apenas tentava observá-los e aquela bruma densa a preencher a sala e os tornar ainda mais fantasmagóricos... Em certo momento, foi Coltrane quem abandonou o saxofone e o advertiu com rigor, Você está cavando, Bernardo, está cavando... e o que amenizava a dureza da imagem era ouvir Jones bater ritmicamente as baquetas, um, dois, três, como a chamar o grupo de volta à música e Coltrane em especial aos seus fraseados cortantes, rumo a sua viagem cósmica... 

Bernardo deixava-se então levar pelas difusas impressões, movia-se muito pouco, sem um propósito definido, emborcando copo atrás de copo, no ambiente envolto em sombras. Vez ou outra lembrava-se que precisava descer e buscar alguma coisa na venda logo em frente, mais garrafas, mais cigarros, e subia trôpego os quatro andares e algo parecido a uma fugaz satisfação o preenchia ao retornar à sala de estar, que escoava tão logo se entregava a mais um gole...

Duas semanas. Por fim, com o pouco de forças sabe-se lá de onde reunidas, alcançou o telefone e ligou para Elena. Esperou, esperou, nada. Olhou ao redor, garrafas vazias, sujeira acumulada, as lufadas de vento agitando as persianas, a chuva intensa desabando, respingando no assoalho próximo à janela. Ergueu-se, recolheu as persianas, viu as pessoas movendo-se com rapidez, umas com os guarda-chuvas abertos, os automóveis parados, as gotas precipitando ao solo. Sentiu que precisava de um banho e quando a água fria projetou-se na nuca, um espasmo o fez sacudir, como se o choque térmico o despertasse para a vida. Balbuciou palavras desconexas e por um longo tempo manteve-se imóvel, sob o fluxo de águas despencando do chuveiro direto em sua cabeça, até o último jorro sacudir-lhe e sair das entranhas... 

A água prosseguiu acariciando o corpo dolorido, que se encolheu contra a parede do box, já mais vívido, as ideias menos embotadas movimentando o pensamento. Bernardo saiu do chuveiro, retirou a camisa e a cueca empapadas e colocou o roupão.

Retomou as ruas ao tempo em que a chuva havia cessado. Caminhar significou recuperar a consciência de mundo perdida nas semanas anteriores, as cores pareceram-lhe mais vivas, as expressões das pessoas menos desprezíveis, o ar fresco estimulante. Foi até o Le Parisien, o café onde costumava ver o tempo passar. Sentou-se na mesa mais ao fundo e com a mão direita acariciou o rosto barbado. O lugar estava parcialmente cheio, logo Cesário acercou-se, Hum, parece que a coisa foi feia desta vez... e Bernardo nada disse, não estava a fim de conversa, nem de pensar, pediu a média escura e ficou a ver o movimento. 

Gente de todo o tipo circulou diante de si, sentou-se nas mesas vizinhas, passou pela calçada, até que vislumbrou uma jovem junto ao balcão, pagando a conta. Uma visão rápida, incisiva, duradoura, ela com capa de chuva amarrada na cintura, esguia, não muito alta, cabelos soltos, castanho-claros, à altura dos ombros, elegante, intelectual, gentil, voltou-se num átimo para Bernardo, olhando para as moedas que recolhera como troco, a cabeça baixa, um vulto exultante que logo atravessou o salão e deixou o Café. 

Por que aquela mulher o havia instigado de modo tão especial? Sentia a boca seca, um gosto de papel que o café não conseguiu extirpar. Preservou por um tempo que mais tarde não soube mensurar o perfil da mulher e levantou-se, e antes que Cesário fizesse algum comentário, deixou uma nota de dez reais e caiu fora. 

As ruas prosseguiam úmidas, os sons não o alcançavam, pensava na mulher desconhecida, perscrutava por todos os lados algum sinal da capa de chuva bege amarrada na cintura, para os cabelos cálidos, de um aroma jasmim que não distinguia se imaginário ou real, e prolongou-se na caminhada infrutífera, imerso em um transe que dispensava o mundo. 

Então se deu conta que alcançara a plataforma do trem. Viu de relance o telefone público, se aproximou e tentou mais uma vez, esperou, esperou, o chamado não foi atendido. A luz da tarde inundou a estação, rompendo por um instante o céu encoberto. Um brilho intenso o atingiu e mesmo deslocando-se não conseguiu afastar o incômodo. Bernardo insistiu em olhar contra a luminosidade, que refletia com mais força no piso lustroso, olhos aguçados e bloqueados por inesperado fulgor. 

E o trem que não dava mostras de chegar, e seus passos incertos que avançaram o quanto pôde pela plataforma esvaziada, os poucos transeuntes esparsos, a luz que o cegava e ao mesmo tempo o inundava, as ideias descompassadas que não irrigavam o pensamento, cada vez mais disperso, as vozes que não conseguia discernir, o belo rosto da mulher do Café, o quadro de partidas e chegadas, os fios de eletricidade suspensos, a marquise, os ruídos longínquos de uma composição, sem dar menção de se aproximar ou distanciar-se...



O discurso segregado




Na verdade, o discurso que se pretende organizador, a pré-configuração midiática do mundo que norteia a sua refiguração pelo sujeito receptor. Nas palavras de Charaudeau, o propósito como componente do contrato de informação midiática, inscreve-se num processo de construção do evento, que deve apontar para o que é 'notícia'. Na mídia hegemônica, o propósito que se formula nos preceitos e nas propostas burguesas fenece nos braços de seus iguais, como se fosse possível, ainda, manter o discurso envolto em um privilégio classista, isento da socialidade e da imprevisibilidade expressas pelas vozes do espaço público...

Como definiu brevemente um amigo, a comunicação midiática abre passagem para as relações de mercado, e isso para preservar as relações de poder. As vozes e as imagens dão suporte um discurso edulcorado, sedutor, despreocupado com a verossimilhança (no caso dos telejornais globais, com o recorte preciso) da narrativa. Exalta-se, distorce-se, oculta-se, em nome da hierarquização da palavra e da fragmentação do estar-aí como agente social, tudo em busca da preservação dos índices verticais de audiência, da acumulação de poder.

Como contraponto a essa concentração dominante na comunicação, surgem os meios tecnológicos, a narrativa transmidiática e o cenário hipersegmentado, que abrem espaço para o que se denomina de pervasividade comunicacional, ou seja, a ampla pulverização da informação; ela escorre e circula livre de entraves pela sociedade, demolindo três posturas clássicas de controle da mídia hegemônica, a saber:
1) a não divulgação do fato ocorrido;
2) a mediação falsa do fato ocorrido;
3) o fato ocorrido divulgado fora de seu contexto.

No primeiro caso, dentre tantos outros, temos os dados do Iraque pós invasão estadunidense, dois milhões de viúvas, cinco milhões de órfãos, quatro milhões de refugiados, sem meios de sobrevivência. Um quadro jamais analisado, que se agrava com a presença de mais de cinquenta milícias, que atuam à margem da lei, com total impunidade.

A mídia hegemônica não mostra a realidade em suas minúcias, repetindo o discurso genérico e difuso de caos e violência, cuja construção semântica exime a responsabilidade das forças de ocupação estadunidenses. Poderia prosseguir na apresentação dos dados ocultos dessa tragédia, onde morreram mais iraquianos desde a invasão (2003) do que em toda a história recente do país. Por exemplo, posso destacar informações que, se ocorridos na Venezuela ou em Cuba, seriam suficientes para um alarde mundial: nesse período de seis anos (até 2009), foram assassinados 24 juízes, 135 advogados, 200 jornalistas...

No segundo caso, cito o golpe de Honduras em 28 de junho do ano passado, tomado por nossa mídia hegemônica como um fato menor, cujos desdobramentos seguiram um caminho natural de substituição forçada no poder, questionando a diplomacia brasileira ao ter dado asilo ao presidente Zelaya, de setembro de 2009 a janeiro de 2010. A voz da CNN sobressaiu como um fio condutor, essa leitura distanciada e encravada no Olimpo, pautando os interesses políticos estadunidenses em meio à cronologia dos acontecimentos (e que encontrou ressonância e foi prontamente encampada por nossos meios), analisando os fatos do ponto de vista golpista, pretendendo transformar em um fait acompli o gesto de Micheletti e seu bando, sob os auspícios dos deputados republicanos, de origem hispanoamericana e domiciliados em Miami...
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Caberia aqui, também, lembrar do golpe midiático da Venezuela, razoavelmente abordado neste blog. Um golpe que se desdobrou graças à concentração do poder midiático, e que se desfez graças à pervasividade comunicacional adstrita às plataformas criadas instantaneamente pelo celular e pela internet.

No terceiro caso, que tem sido a evasiva mais comum nos últimos tempos, destaco um exemplo comentado por Pascual Serrano em seu excelente livro, Desinformación, referente à Bolívia. A partir de uma frase, divulgada em um jornal espanhol (El Pais), e onde há a ausência de elementos de contexto, A corrupção e os contratos petroleiros minam a popularidade de Evo Morales na Bolívia, inserta-se a conclusão, a popularidade baixou para 62%. Segundo Serrano, tal índice evidenciaria, em uma leitura mais cuidadosa e completa, que Morales seria o quarto presidente latinoamericano mais bem cotado!

Outro bom exemplo é o esforço para se projetar las damas de blanco em Cuba, como um movimento de oposição, nascido nas manifestações callejeras espontâneas, enquanto se oculta que o movimento - cerca de 30 mulheres de presos políticos cubanos - têm em suas marchas a proteção da polícia feminina contra manifestantes castristas.

O movimento, como seria de se esperar, chegou a Miami, com Gloria Stefan convocando uma concentração. Nessa ocasião, desfilou um conhecido terrorista, Posada Carriles, que em 1973 foi responsável por um atentado contra um avião da Cubana de Aviación, onde morreram 73 pessoas. Permanece circulando à vontade e o governo estadunidense ignora o pedido de extradição por parte do governo cubano.

Discursos assim, produzidos sem se preocupar com o contexto dos acontecimentos, dá ao leitor/espectador a impressão de uma análise hipoteticamente abrangente, mas que esconde (ou distorce) os fatos essenciais. É possível recriar o processo histórico com dados estatísticos, com declarações repetidas sobre uma suposta verdade, construindo-se uma edição tão acabada quanto manipulada da realidade.

O que nos vacina desta epidemia alienante é, repito, a proliferação das plataformas midiáticas, que oferecem à sociedade um amplo espectro de fontes informacionais, para a elaboração de uma visão de mundo mais autêntica. Não ficamos na dependência de uma notícia do Jornal Nacional como há vinte anos, não somos mais conduzidos por edições maquiavélicas eivadas de interesses, e mais além, não somos limitados ao entretenimento fastidioso dessa tevê hegemônica.
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Com as alternativas múltiplas de difusão de informação e conhecimento, o cidadão passa a dispor de opções para incorporar uma atitude menos viciada da morfina distribuída em doses massivas, colocando-se em posição de eleger (cada vez mais como protagonista e não como mero figurante) caminhos mais interessantes para construção de uma realidade social mais justa e democrática.



16 maio 2010

O espaço segregado


Em seu livrinho Comunidade, Bauman escreveu um capítulo entitulado O nível mais baixo, o gueto, analisando o processo de segregação urbana nas metrópoles, no nosso tempo líquido-moderno. Do sonho da comunidade ideal, daquilo que Tönnies denominava de o círculo aconchegante, permeado pelas relações fraternas que revelavam uma existência coletiva, Bauman nos mostra que mal concretizamos uma parcela ínfima desse desejo, qual seja, a comunidade do bairro seguro, onde prevalece o desejo de se estar protegido, mais nada.

Para ele, o cidadão global é aquele que tem pleno acesso aos benefícios da globalização, não busca um lugar para morar, mas um local de pouso, esse espaço momentâneo onde recompõe suas energias entre um movimento e outro, entre um negócio e outro, e naturalmente esse lugar deve oferecer o bem mais desejado nesse mundo individualizado e privatizado, a segurança.
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Surge assim o que ele denomina de gueto voluntário, onde o confinamento é uma escolha permitida àqueles que podem pagar. O luxo e a proteção dos muros trazem a sensação de que recuperaram o paraíso perdido, a tal comunidade imaginada e ansiosamente buscada. Mas se os muros isolam os iguais endinheirados em um reduto seguro, também é verdade que impedem a aproximação dos diferentes, esses feios, sujos e malvados, preservados do lado de fora, em meio à selva ameaçadora, e que se aglutinam no que Bauman denomina de guetos reais.

Sem voz, sem representatividade política ou econômica, se desdobram em meio à dolorosa luta pela sobrevivência, distantes do mundo sedutor das oportunidades, confinados em seus territórios que cumprem a função de uma prisão. Seu direito à cidadania nem sempre será reconhecida e os acessos nem sempre serão tolerados nos lugares em que o capitalismo tardio se apropriou para produzir riqueza, conhecimento e lazer.
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Flávio Villaça, ao analisar o espaço intra-urbano da cidade de São Paulo, demonstra que sua funcionalidade decorre de uma estruturação que denomina de quadrante sudoeste, o conjunto de bairros de alta renda, onde se concentram os equipamentos urbanos - escolas, emprego, lazer, saúde, transporte etc. Numa palavra, o domínio (pelas burguesias) das condições de deslocamento espacial do ser humano enquanto consumidor. O que se tem aqui é um processo de segregação que privilegia a acessibilidade (e as condições de vida) de uma pequena parcela da população em detrimento da grande maioria.

Essa segregação não se dá segundo o conceito de centro-periferia (de acordo com os círculos-concêntricos, ou seja, quanto mais distante do centro, mais pobreza e abandono...), já que podemos identificar enclaves de pobreza nas áreas de renda mais elevada e vice-versa. O aspecto essencial aqui é que a burguesia leva para junto de si (no que se refere ao tempo) os equipamentos de controle da sociedade (...) (estimulando) seu meio predominante de locomoção, o automóvel.
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Se em Bauman o gueto representa um confinamento (no caso do gueto voluntário, um confinamento em nome da segurança), para Villaça, o padrão de segregação das camadas de alta renda significa algo mais, um espaço de reprodução do poder e do capital. Em ambos os casos, predomina uma ideologia que torce o nariz para a diversidade. Do ponto de vista do grupo dominante, a mirada social se dará segundo suas presunções históricas ou culturais, e segundo sua intransigência política. Sem concessões.
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Temos constituída a brutalidade da paisagem urbana paulistana, que não cessa de se aprofundar, assustadora, disforme, estimulada pelos interesses do mercado imobiliário e pela indiferença de uma governança municipal no que concerne às distorções produzidas. Resta aos destituídos de seus direitos elementares de cidadania, aos não contemplados por saúde, educação, moradia, entretenimento, deslocamento urbano, prosseguirem em suas peregrinações cotidianas, o olhar desconfiado, a certeza disseminada na quebrada de que não sucumbirão submetidos a presunções ou intransigências de quem quer que seja.
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09 maio 2010

Naquela noite

Bruxelas ao anoitecer

Falar em desgaste seria redundância para uma vida marcada por repetições e desestímulo. O Vendedor aproximava-se de casa, após o encontro com o amigo Batista, com a mesma expressão de cada dia, ensimesmado, descontente consigo mesmo com a conduta que o afastava do mundo, o caminhar insosso, a pastinha sempre na mão direita e esse zumbido persistente nos ouvidos, que ganhava ressonância ao adentrar o espaço mais silencioso de seu apartamento. Enquanto avançava, não animava-se a mirar nos olhos das pessoas, função essencial em seu trabalho de ofício. Estava extenuado em enquadrar os olhos das pessoas que transformava em compradores por excelência, em sorver aos bocados o cafezinho frio de cada encontro em potencial para falar das mil e uma utilidades dos produtos de beleza que vendia. Estava cansado em sorrir, acariciar o ego dos interlocutores ao lhes garantir a felicidade se adquirissem seus cremes e demais componentes pegajosos, e talvez em razão disso desejava chegar logo e se enfurnar sob os lençóis, sem pensar em mais um dia desperdiçado, sem pensar na noite que passaria entre torpores e pesadelos.

Abriu a porta, jogou a pastinha na poltrona e dirigiu-se até a cozinha. Com uma latinha de cerveja, passou a observar o vazio que o separava da janela do prédio em frente. Pensou nos filhos distantes, de que modo poderia recebê-los bem naquele... naquele ambiente vago, com um jeito tão provisório, e lançou um olhar para dentro, para a cozinha espartana, e relembrou a sala com a poltrona secular, o tapete e a mesa redonda, a estante com os romances que não podia reler, e o quarto com as únicas mobílias, a cama de casal desarrumada e o armário. Pensou nas peças de roupas por lavar, por passar, espalhadas aqui, acolá, pensou na necessidade em organizar a bagunça que se acumulava, as garrafas e as latinhas sobre a pia, a sujeira acumulada nos cantos, voltou-se para a janela, para apreciar o vazio sinistro que separava os dois edifícios, Por que não volto para o Jequitinhonha?, e pôs-se a recordar da edícula que dispunha no sítio de um amigo, onde passara um ano no meio de gente simples, despertando, vivendo e adormecendo em meio aos sons da natureza, dos latidos de Cabeção e Max, os cães da casa, das gentilezas da vizinhança, do mastigar noturno de Dálmata, o cavalo malhado, que gostava de alimentar-se da relva crescida em torno da casinha, fazendo dos seus sacolejos bucais uma aconchegante cantiga de ninar...

Não... tenho de resolver minha vida aqui... pensava o Vendedor, cansado da armadilha que o destinho lhe pregara. A vida que se escoava longe dos filhos, da mulher, dos princípios alimentados na juventude, a vida com as vendas, maldito trabalho, que o separava de sua sociologia e que não lhe proporcionava mais do que a gastrite que o devorava pelas entranhas. Sobrava-lhe os vãos pensamentos, os encontros atormentados com Silvana e os sonhos carregados de culpa... tudo muito vago, desagradável, que o empurrava para um futuro sem novidades. Aos sessenta e seis anos, costumava contar para os colegas do bar que dispunha de mais quatro anos de vida, Depois disso, digam-me, por favor, digam-me, o que poderei fazer para construir alguma coisa de consistente?...

Sua única certeza, dia após dia, era o escritório em que trabalhava oito horas por dia, juntamente com aqueles seis outros vendedores, à espera das oportunidades para vender. E cumprir, então, a função que mais odiava, olhar o cliente diretamente nos olhos e utilizar todos os argumentos de sedução para ludibriá-los, para convencê-los do que necessitavam e atulhar-lhes de cosméticos, prometendo uma vida mais bela, mais sadia... Suas mentiras eram recicladas de tempos em tempos nas palestras de vendas ou, mais a miúde, nas reuniões de pauta, quando o chefe supremo convocava os chefetes e os vendedores de ocasião, para atirar-lhes nas fuças as novas metas mensais. E dessas reuniões o nosso Vendedor saía ainda mais fragilizado, mais distante dos prazeres que acalentava de maneira quase proibitiva, vilipendiado com o discurso incisivo que só fazia azeitar a máquina de moer a carne e o espírito...

Naquela noite, quando encontrou o amigo Batista, comentou-lhe sobre esse circuito infernal, sobre as contradições de seu destino, Em algum momento errei a escolha e tomei um atalho que me permite divisar, o tempo todo, o acerto que seria o outro caminho... O amigo Batista o ouviu quieto, pagou-lhe a bebida e despediram-se. Não pôde ou não quis esclarecer nada, talvez fosse melhor guardar o silêncio e as melhores palavras, afinal, tratava-se sem dúvida de um astuto vendedor, em outro ramo, é verdade, mas um astuto e bem-sucedido vendedor.