30 janeiro 2010

Regresso




O retorno é menos difícil do que parece. Retomo aos bocados a continuidade cotidiana, tão familiar. Como escrevi em algum lugar, revejo primeiro o zelador, os espanhóis do empório, o amigo da banca de jornais, embora não compre mais jornais, o velho sapateiro, os atendentes do meu café predileto, onde costumo tomar meu desjejum matinal, tudo isso na região mais movimentada da cidade. São as pessoas mais simples, que precedem os encontros mais emotivos.

Em seguida, me dedico à gente comum que circula pelas calçadas, nas manhãs cálidas e luminosas de verão. Ainda comovido pela viagem recém concluida, levo meu caderno e esboço algumas anotações. Desejo que seja assim, doravante, escrever a mão, sentir o momento em seu fluir natural, descrevendo-o na medida do possível, na maneira do possível, sem correções sucessivas. O que vejo, como vejo, desvelando aos bocados a graça do instante captado, as expressões que brotam e se apagam, a dor que persiste, o gracejo inesperado, o ruído que rasga o silêncio acalentado... e evitar que a atenção seletiva, panorâmica, conduzida pelo marasmo da repetição diária, alicie meu comportamento.

Em viagem, a atenção é generosa, em primeiro plano. Tudo chama atenção, pelo ineditismo, pelo inusual, e saboreio as apreensões. A neve do lado de fora, o café fumegante diante de uma janela, a mulher na mesa ao lado, a cafeteria e a sutileza de sua decoração... Não tenho pressa, o cotidiano não dispõe de metas, de compromissos rígidos, divago e dialogo com o possível, que desponta ao calor do movimento, sempre aleatório, para lá, não... para cá... um museu, ou um café mais simpático, ou a rua enevoada, o bonde que passa... As descobertas se sucedem, o olhar que se projeta para gestos comuns em uma paisagem sempre convidativa. A mãe com o filho em sua bicicleta, sob a neve. Na cesta da frente, os pães e os bolos para a ceia do natal. E ela passa e desaparece em meio à névoa, para nunca mais. Mas naquele instante, penso em sua ceia de natal, nas pequenas surpresas, no ambiente familiar, na breve alegria diante da mesa, o calor do afago, a consagração de cada vida em uma só...

Retomo a sonoridade, os aromas, o calor humano de meu lugar, sem estranhamentos, sem solenidades. O gostoso da volta é saber onde estamos, e por que estamos. A inércia saudosa que me atinge nos primeiros dias não é suficiente para desejar a volta aos ambientes transitórios por que passei. Sei que lá sempre serei um estrangeiro, e respeitado enquanto tiver grana para gastar. Ah, sim, os meus amigos que ficaram! Esses fazem parte de um sentimento carinhoso que se cala em mim, delicadamente, até um novo encontro. Regresso ao meu lugar, onde vivo, ao qual pertenço, e onde promovo meus embates. É aqui que, bem ou mal, dou prosseguimento à minha história, pessoal e coletiva. É aqui, no meu lugar, que aprendo e apreendo a evolução mágica da vida. É aqui que forjo meu caráter, junto aos meus, junto à minha cultura.

Recupero, pois, a realidade da minha vida cotidiana, da qual não tenho como me furtar. Se não for aqui, será em alguma parte, então que prossiga aqui, junto ao que - e a quem - aprendi a valorizar e a amar. Sobram-me as abundantes lembranças de outras partes, que aos poucos se desvanecerão em sua intensidade. Restarão os momentos sublimes, que permanecerão aqui ou acolá, hoje ou no futuro, a seduzir-me de maneira persistente. Sei onde é meu espaço, e por tudo o que foi visto e sentido, também sei que o mais importante de uma viagem é a consciência do regresso.



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