30 junho 2025

As incertezas de uma narrativa


por Stanley Kubrick

 

Alguém me perguntou nestes dias como se dá um processo de construção da narrativa. O que posso responder a respeito, a não ser atribuir todas as incertezas que acometem quem escreve. Ao menos no meu caso, nada se dá por definido, e muito menos delineado em um roteiro previamente redigido, talvez aí a dificuldade em desenvolver um romance em sua plena densidade. Muitos de meus contos foram redigidos ao sabor do momento, principalmente os iniciais, quando prevalecia o desenvolvimento da narrativa pela caneta. O formato digital ganhou espaço muito lentamente, e ao fim tornou-se uma opção mais prática não pela redação em si, como pela facilidade dos acertos e reescrituras em tempo real. As melhores histórias surgiram no bico de pena, como se diria antigamente, porque havia o tempo bondoso da escritura em sua fluência natural.

Meu primeiro romance, concluído em 2023 levou mais de vinte anos para ganhar o formato final. Não que eu me mantivesse o tempo todo escrevendo e reescrevendo, mas houve etapas bem definidas, em que chegava a um resultado e em seguida suspendia a escritura por anos, para me deter com outras atividades. Nesse meio tempo, sabia que o texto não estava concluído, e sequer havia chegado a uma concordância sobre como finalizá-lo. Ainda hoje faço pequenas correções, embora os episódios e a estrutura sejam definitivos. E o resultado só pôde ocorrer de modo relativamente satisfatório quando passei a realizar as correções à mão, e não mais no computador. Isso abriu caminho para que todas as modificações dos demais textos escritos ocorresse dessa forma, o livro impresso e com a caneta em punho.

Meus contos originais, escritos entre os anos 1990 e 2010 precisaram passar por fortes ajustes dessa forma. A temporalidade é outra, e a mesa de um Café é muito atraente para realizar as escrituras definitivas à mão. Sem pressa. Observando o movimento ao redor. Foi assim que consegui reorganizar e publicar 10 livros, nos diversos gêneros. E tenho satisfação em dizer que meu último romance, Morrer, Viver, foi todo redigido em um caderno, ao longo de três meses. Sua concepção foi desenvolvida en route, ao longo da escrita, registros que primeiramente marcavam um fato real (a internação de meu pai) e aos poucos passando para as hipóteses da ficção, quando o personagem segue com sua vida, já envelhecido. A memória que se funde com os acontecimentos do presente, e projeta um futuro. 

Nada parece definitivo, nem sequer a certeza de que a escritura esteja concluída. Mas este me parece o grande dilema de quem escreve. Há referências de literaturas lidas, há caminhos que se abrem aqui e ali, há experiências pontuais que podem ganhar novas dimensões, tudo parece transbordar em incertitudes e revelações, e porque não acrescentar, em desejos. Em suma, não há a melhor escolha, mas sim aquela possível, anunciada no vínculo com o tema, que - e aqui há uma certeza - se projeta a partir do mundo ao redor, o físico e o subjetivo, coisas e pessoas, que ganham relevância e às quais amamos. 



26 junho 2025

O sol de inverno e Victor Hugo


A obra magna de Victor Hugo

Encaro uma certa melancolia nestes dias, a esse mesmo horário da tarde, ao perceber o sol lentamente se pondo, encerrando a jornada. A noite sobrevém, fria, o céu limpo, mas fica a impressão de que se perdeu muito em não aproveitar o calor do dia, como se deixasse escapar a beleza abertamente ensolarada na cidade. Confesso que ainda me recupero das cirurgias de pele, o que me impede de me expor longamente ao sol, de modo que o aprecio como posso, da janela de minha sala, tão referenciada em meus contos, ou atravessando a Augusta para um café no Soul. Na espera do tráfego se acalmar, recebo os raios não tão aquecidos diretamente no corpo, e por essa razão retardo a travessia. E isso é tudo.

Diante de mim, Os Miseráveis, de Victor Hugo. O desejo de começá-lo, por fim. Talvez nas primeiras horas do anoitecer, e aos poucos, a cada dia, conhecer mais da vida de Paris no início do século XIX a partir do personagem Jean Valjean. Sim, pode ser, aqui está o livro, seus dois volumes, em tradução desconhecida. Nas primeiras páginas, uma assinatura minha, com a data 21.11.76. Logo abaixo, apus nova assinatura, com a data de hoje. Quase cinquenta anos depois. Se tivesse lido naquela primeira ocasião, bastante coisa poderia ter acontecido, e tantas outras ocorrido de modo diferente. Sabe-se lá.



23 junho 2025

Bestialidade humana 2


Motim em Vancouver, 1994

"Daquele momento em diante, cada acontecimento que se seguiu parecia sinistro, de um significado sombrio. Tudo me dizia respeito muito de perto, sentia-me envolvido em tudo que se passava, como se tivesse estado presente a cada uma das cenas de que tinha notícia. Nada fora previsto. Explicações, ponderações, mesmo ousadas profecias eram nada, se comparadas à realidade. O que ocorreu foi, em cada detalhe, algo inesperado e novo. O contraste entre a pequenez das ideias propulsoras e seu efeito era incompreensível. Em meio a tanta perplexidade, porém, uma coisa era certa: aquilo só poderia desembocar numa guerra – e não numa guerra acanhada, insegura de si própria, mas numa que irromperia orgulhosa e voraz, como as guerras bíblicas dos assírios".

O texto acima faz parte do livro O Jogo dos Olhos, o terceiro volume da autobiografia de Elias Canetti. Refere-se à ascenção de Hitler, em janeiro de 1933. Se fecharmos os olhos e considerarmos a dramaticidade histórica, transportando-a para os nossos dias, podemos facilmente adaptá-la para a posse de Trump em janeiro deste ano. Um texto que imprime ao fato narrado uma universalidade atemporal: se estávamos naquele momento na Alemanha nazista, hoje estamos nos Estados Unidos neoliberal. O perplexo se contorce e se estende impoluto até os nossos dias, como se cada fração daquela tragédia sobrevivesse incólume para se recompor, ordinária, fútil, brutal, no presente - e prolongando-se, porque nada demonstra que será debelada, rumo ao futuro.  



18 junho 2025

Bestialidade humana

 

nos céus de Tel Aviv


Seguem os enfrentamentos entre Israel e Irã, entrando no sexto dia, cada vez menos informações atualizadas. Teerã e Tel Aviv receberam fortes impactos, que se multiplicaram por otros locais nos dois primeiros dias; a ruptura se deu com um ataque sem precedentes de Israel, com o objetivo de alcançar alvos onde se desenvolve o programa nuclear iraniano. Pelo menos foi o que se veiculou nos meios. Sem dúvida, uma agressão que atropela os princípios consagrados na Carta da ONU. Ademais, vi uma postagem no Instagram contendo declarações de Netanyahu nos últimos trinta anos, em que alerta para a capacidade do Irã em produzir bombas atômicas, o mesmo discurso repetitivo e sem imaginação por trinta anos. 

Não se sabe exatamente qual o alcance do sucesso desse ataque "preventivo". A reação iraniana foi forte, superou o domo de ferro e uma saraivada de mísseis explodiram em áreas não necessariamente militares, em diversos pontos de Israel. Enquanto isso, Gaza continua sendo brutalizada, vilipendiada, querem os sionistas que ela desapareça. Não tenho forças para acompanhar passo a passo os acontecimentos. Uma amiga escritora acabou de ler minha peça, gostou muito foi o que disse. Outro conhecido (não tenho como dizê-lo amigo) leu meu primeiro livro de crônicas, o volume mais político, e disse que gostou porque organizou suas ideias. São livros que, curiosamente, relatam a bestialidade humana, cometidos respectivamente contra a Palestina e contra o povo brasileiro. Triste.

Enquanto isso, Trump, Milei e os radicais direitistas seguem com suas cartilhas arrivistas, agressivas, purulentas, conectadas (mas não coordenadas) entre si e sem qualquer sentido prático. Não avançam em proposições e trabalham naquilo que mais gostam, proliferar falsas notícias e transformar os adversários em inimigos políticos. Cristina Kirchner acaba de ser presa e uma multidão oposicionista cantou e desfilou pelas ruas portenhas. Repete-se o mesmo processo que aconteceu com Lula, com Correa e com Castilho, no Peru. Desejo ardentemente que, na altura das eleições do próximo ano, tenha transcorrido o tempo necessário para o envelhecimento precoce dessas diatribes vulgares que se renovam a cada dia, e que tanto Milei quanto Trump estejam irreversivelmente desgastados e desacreditados perante a opinião pública, com os neofascistas ainda mais desarvorados do que estão agora. E que Netanyahu esteja pagando o preço pela prepotência ideológica. 

É tempo dos brados direitistas, mas também é verdade que se aproxima o tempo do justo acerto de contas com esses malfadados personagens.



16 junho 2025

Vinícius de Moraes, uma poesia

 


Vinícius de Moraes


Breve consideração à margem do ano assassino de 1973


Que ano mais sem critério
Esse de setenta e três...
Levou para o cemitério
Três Pablos de uma só vez.
Três Pablões, não três pablinhos
No tempo como no espaço
Pablos de muitos caminhos:
Neruda, Casals, Picasso.

Três Pablos que se empenharam
Contra o fascismo espanhol
Três Pablos que muito amaram
Três Pablos cheios de Sol.
Um trio de imensos Pablos
Em gênio e demonstração
Feita de engenho, trabalho
Pincel, arco e escrita à mão.

Três publicíssimos Pablos
Picasso, Casals, Neruda
Três Pablos de muita agenda
Três Pablos de muita ajuda.
Três líderes cuja morte
O mundo inteiro sentiu...
Ô ano triste e sem sorte:

— VÁ PRA PUTA QUE O PARIU!


 

31 maio 2025

Modos torpes e sinuosos do massacre: os olhos

 

Louis Stettner, The Penn Station Series

O jovem vestido de uniforme laranja me chama para ser atendido. Deixo duas garrafas de água sobre a mesa, ele registra, me pergunta como desejo pagar, Cartão de débito, respondo. O uniforme está verdadeiramente puído, destacam-se tatuagens nos braços e no pescoço, pequenas, grandes, desenhos, nomes, uma sucessão confusa de linhas escuras, ao contrário de sua personalidade jovial e esclarecida. Pergunto se já está no final do turno, diz que sim, com uma expressão de alívio. Não desgruda os olhos da máquina, e enquanto emite a nota, acrescento, Não faz sentido, encontro coisas aqui que não existem no mercado da mesma rede ali em frente, e ele, Não estão preocupados, não tem um padrão, olha só como aqui é diferente, mal organizado, e acrescenta em um tom mais baixo ou mais acelerado, já que os fregueses se acumulam na fila, O que interessa para eles é isso... pronto, (a grana) chegou, aí ficam tranquilos... pode continuar a bagunça... Dou uma risada, gosto do seu jeito perspicaz, complemento com uma fala que poderia estar em sintonia com seu comentário, Eles se preocupam com a grana chegando, e continuam esquiando... Ele me entrega o pacote e me olha pela primeira vez nos olhos, nos despedimos, ele diz, Vá com Deus.

O jovem é de fato um sabugo explorado até o talo e depois descartado. Cada semana deparo ali, ao comprar essa marca de garrafa de água, que são jovens diferentes. O anterior havia me dito que ainda dava para aguentar, Ali, era suave, o duro é a jornada no... (marca de uma lanchonete transnacional)... para lá não volto nunca mais...  O corpo se desgasta, é literalmente chupado, dessangrado, e naturalmente vilipendiado, sem que isso chame a atenção do freguês. Ao contrário, quando este não encontra o que deseja, ou o atendimento demora por falta de empregados, costuma chiar brutalmente, como se estivesse sendo destratado, quando na verdade quem é destratado diariamente é o pobre do funcionário de plantão. O extremo esforço do corpo para compensar um sistema agônico, voltado cada vez mais para os números dos lucros. No meu prédio, ao chegar, deparei com o zelador, nas mesmas vestes puídas, só que de outra cor, sentado por um momento por trás da mesinha. Digo por um momento porque desde as últimas demissões, ele tornou-se o único zelador de dois condomínios: lava o piso, atende as entregas, conserta canos e fiações, e no final do dia dá bom dia até para cavalo, se os houvesse por ali. Mas ao encontrá-lo, ali, paradinho por uns instantes, reparo em seus olhos, profundos, melancólicos, doloridos, quase ausentes, que mal enxergam a realidade diante de si, e talvez por isso mesmo, me responda em tom de brincadeira, Sim, tudo tranquilo, na paz, sem esquentar a cabeça...



19 maio 2025

Idea Vilariño, uma poesia


Idea Vilariño (1920-2009)


 A NOITE

A noite não era o sonho
era sua boca
era seu belo corpo despojado
de seus gestos inúteis
era sua cara pálida olhando-me na sombra
A noite era sua boca
sua força e sua paixão
era seus olhos sérios
essas pedras de sombra
tombando em meus olhos
e era seu amor em mim
invadindo tão lenta
tão misteriosamente

(declamado para Moniquinha, na noite de seu aniversário)



14 maio 2025

Pepe, Francisco



 

Em menos de um mês, se vão dois personagens marcantes deste quarto de século: o Papa Francisco, no dia seguinte à Páscoa, 21 de abril, e Pepe Mujica, ontem. De ambos, mortos quase com a mesma idade, fica a terna lembrança de personalidades que lutaram bravamente contra os fascismos degenerativos, em busca de uma vida solidária e justa. De Francisco, fui aos poucos aprendendo como debelar infâmias com serenidade, sem ceder à mídia que o detratava, paulatinamente tendo contato o vigoroso percurso que realizou junto às causas sociais. Uma caminhada bastante solitária, mas determinada, amparado pela fé em que assumiu desde o princípio. 

De Mujica, uma caminhada forjada no enfrentamento revolucionário, com a finalidade de promover uma governança alinhada ao bem-estar comum. Não conseguiu com o processo revolucionário, mas sim posteriormente, na atuação política com a democracia restaurada. Passei a admirar sua luta desde que seu nome se destacou como ex-guerrilheiro do MLN-T, e mais tarde, como integrante da Frente Ampla, vitoriosa em 2005 com Tabaré Vasquez. Vencedor do pleito seguinte, em 2009, seu governo deu continuidade aos fortes investimentos em políticas sociais que ocorreram naquele momento, simultaneamente, em diversos países da América do Sul, ao lado de Lula, Chávez, Evo, Bachellet, Correa, Kirchner e Lugo. 

Em ambos, Pepe Mujica e Papa Francisco, a infindável sabedoria das palavras e das ações. Em ambos, a bondade militante que jamais cedeu em seus propósitos, ao promoverem um mundo melhor, mais autêntico e menos hipócrita, mais humano e menos mercadológico. Em minha opinião, ambos souberam mobilizar a razão das massas pelo coração; ambos souberam levar seus combates a um bom término, ao justificarem plenamente seus esforços para se pensar e viver uma verdadeira opção ao famigerado neoliberalismo.