02 dezembro 2025

Entre feras e chacais


Haifa, 1948

Gaza está às moscas, ninguém falava antes, ninguém fala agora. Surge no horizonte dos noticiários a intervenção na Venezuela. Até bem pouco tempo atrás, um descaramento diplomático, hoje, uma possibilidade natural. Etapa final do capitalismo, matar antes de morrer. A pergunta que não quer calar: até onde a camarilha republicana pode bancar isso? Qual o limite para o silêncio do mundo diante de ações absurdas desse naipe? Não sabemos. Aliás, sabemos pouca coisa. Quando o mundo se transforma em um faroeste de segunda linha, tudo é possível. 

De sua parte, o junk journalism persiste, se renova, torna-se mais sórdido. Sua presunção fantasiosa não chama mais a atenção, do ponto de vista ético. As pessoas estão cada vez mais despreparadas para o embate humanista. De modo que a mentira se expressa como autêntica verdade, até que logo ali adiante, seja superada pelos fatos. É narrada em um tom formal, como se não houvesse outras interpretações possíveis para os acontecimentos; é elaborada nos mínimos detalhes (presumidos), não apenas distorcendo a compreensão da notícia, mas o que considero mais grave, construindo verossimilhanças que superem – e mesmo contradigam – os fatos. 

Os filminhos de narrativa paralela, como Nárnia, com seus leões, feiticeiros e peregrinos, fizeram bem o serviço de deslocar as consciências para um outro plano e fazê-las sonhar. Enquanto isso, a leitura criminosa do junk journalism desbasta a floresta do mal, a serviço do chefe. Há que se ter muito sangue frio nas veias e uma boa dose de canalhice no caráter para se transformar em um chacal. O pistoleiro contumaz não se aflige, nem antes, nem depois: sua moral é matar antes de morrer, seu desejo é sobreviver como um herói. Aprende logo a apertar o gatilho, toma gosto dessa prática e depois só lhe resta dormir como um anjo.



29 novembro 2025

Refeição ao ar livre

 



Ontem, o impactante Teorema de Pasolini, no CineSesc. Um retrato fragmentário da sociedade burguesa dos anos 1960, da fragilidade ideológica de seus integrantes, quando se percebem em uma vida sem grandes projetos. A presença alegórica dos personagens que compõem uma família e uma empregada, e os descaminhos a partir da presença de um visitante ilustre. 
O filme é praticamente uma leitura do livro homônimo de Pasolini. Abro-o e identifico praticamente cada sequência do filme. Abaixo, destaco o breve capítulo Refeição ao ar livre, relembrando cada detalhe do cenário constituído pelo diretor/autor. Um pequeno detalhe do complexo e ainda assim maravilhoso filme.
 

A família toda - como nos belos dias do verão, antes de começarem as férias - almoça no jardim. Emília serve à mesa.

Ninguém fala, e o único ruído vem de um rádio estúpido e distante - e que parece festivo. 

Embora escondam um segredo não partilhado, os olhares que Lúcia, Pedro e Emília só têm para o hóspede estão cheios de vibração e pureza.

Só Odete, fechada na sua agressiva palidez de pequeno coelho branco, parece ignorá-lo: e o faz quase abertamente. Isso, porém, a perturba. Só ela, pois, está imersa em outros pensamentos e não tem olhos para o hóspede. Porque até o pai - após as vicissitudes da noite ainda pálido e exausto - o contempla com um olhar que jamais teve antes.



As plagas para mais além


Praga, 1994


O passado em Buganvília remontava de súbito como um desmundo, como toda referência em seus prazeres e rudezas. Posicionava-se como uma história sonolenta e ainda não adormecida, e isso ficava cada vez mais claro ao andar por entre as pessoas e observá-las girar pela praça da fonte. nada mais esperado que o fluxo contínuo de sensações o conduzisse à remissão do passado, confrontando situações dispersas no tempo... Acercava-se, então, à esquina... quando olhou para o outro lado da rua e teve uma vaga imagem, sob o manto das penumbras indefinidas do final de tarde, de uma fileira de casas que se sucedia em um nível mais elevado em relação à rua. A visão imaginosa expôs estéticas mais modernas de construção, casas de alvenaria frondosas e arejadas, cada qual prolongando para os fundos extensos quintais onde projetavam-se árvores frutíferas, com estruturas de concreto para o churrasco, algumas com piscinas, a maioria apenas tendo o gramado com plantas ornamentais nos limites dos terrenos, que se completavam com cercas ou muretas de tijolos... Ângelo pensou, O medo social ainda não chegou em Buganvília... onde era evidente que o temor pela segurança não fazia qualquer sentido. 



14 novembro 2025

Conversa com Gardel




Tenho dormido profundamente, despertando a tempo de tomar o desjejum no hotel. Enquanto bebo minha taça de café preto, me perco no bulício vindo da rua, através da enorme vidraça, sem me preocupar em ordenar as impressões. Mais dois goles e desponta um flash, a lembrança perdida e renascida inesperadamente de um sonho tido na madrugada. Apareceu na íntegra, embora aos fragmentos. Um homem velho à beira da cama, coberto por toalhas de banho. Segurava em uma das mãos um fósforo, insuficiente para iluminar o ambiente ou para aquecê-lo no frio do quarto. O rosto indiscernível, olhava estático para o lume a queimar lentamente. Perguntei-lhe então se o que havia dito na conversa da noite anterior era real, se de fato tinha alguma vez conversado com Gardel. Fiz a pergunta em castelhano, onde estaríamos, em um hotel fuleiro de Buenos Aires? Quem era aquele velho que olhava obsessivamente para a chama do fósforo, Quiroga, Macedônio Fernandez, meu pai?... A penumbra que envolvia a habitação não permitia revelar muita coisa, mas conclui que a cena se passava nos anos 1930: a pequena pia ao fundo, o par de botinas junto à cama, o pijama branco e inteiriço... Não me respondeu à pergunta, manteve-se imóvel, calado, à beira da cama, sem desejo de levantar-se ou de voltar a dormir. A barba pontiaguda dançando ao fragor da luz pálida do fósforo... Não, não era papai, ele nunca teve barba e não gostava de Gardel.

 

(trecho do novo romance Morrer, Viver, ainda inédito).



30 outubro 2025

De Gaza ao Complexo do Alemão

 


Uma vez momentaneamente suspensa a matança em Gaza (fica ao critério do governo sionista retomar), a atenção midiática se volta para outra matança, em outro local geográfico, mas nos mesmos moldes, o Complexo do Alemão. Sem a necessidade de tanques ou foguetes, bastou uma tropa com 2.500 homens da polícia do Rio de Janeiro armada com fuzis para realizar  o mesmo morticínio de um dia pesado em Gaza, mais de 130 mortos. Nada justifica uma ação destas proporcões, com tamanha violência e sangue frio. Por mais que o alvo tenha sido grupos de traficantes criminosos, a operação espetaculosa a denuncia por si mesma. No meio do fogo cruzado, a vida de civis pobres sem nenhuma garantia. O que se viu ontem - e o que se ouve hoje do governador Claudio Castro - foi uma brutalidade atroz, que por mais amparada por uma estratégia militar, fracassou rotundamente porque aquelas mortes não significam o fim de nada. Nem tampouco o princípio. 

Há quase trinta anos João Moreira Salles lançava o seu chocante documentário Notícias de uma Guerra Particular, em que se mostrava a ação policial em busca de traficantes nos morros cariocas, em um combate extenuante e sem fim. No meio, a população absolutamente exposta, sem saber o que fazer, seduzida pelos contraventores e temerosa da polícia. Hélio Luz, então delegado carioca, comenta no filme que só um idiota para não aceitar um emprego no tráfico, em vez de trabalhar por salário mínimo. E se eles quiserem, eles tomam tudo isso daqui... referindo-se à cidade do Rio de Janeiro. Seu discernimento foi impressionante, compreendia perfeitamente o que estava enfrentando. Hoje, não acredito, nem espero qualquer lucidez dos homens que governam o Estado. Embaçados e embasados na ideologia bolsonarista de que bandido bom é bandido morto, mobilizam a roda da desgraça sem qualquer critério humanista, sem qualquer objetivo de atingir o coração das grandes negociatas do narco.

O medo, como construção social, se espalha e ganha novos adeptos. Mais do que isso, faz com que qualquer terceirização (transferência) do problema seja vista como solução. E aí, estamos a um passo de ver a população como um todo ver com naturalidade a escalada de uma violência, que com essa metodologia miserável de querer resolver à bala, promete não ter fim.



29 outubro 2025

Não deixe de usar flores no seu cabelo

 

Café Soul, rua Augusta

Dia 27, aniversário de 80 anos do presidente Lula, que no domingo teve um encontro decisivo como Donald Trump e encaminhou muito bem o fim do patético tarifaço do início do ano. Parabéns, presidente, que acima de tudo deu uma aula de diplomacia no bolsonaristas, que ainda acreditavam no emparedamento de Lula com vistas às eleições do próximo ano! Viva! Uma vitória após a outra sobre como presidir democraticamente uma Nação!

Também no dia 27, 15 anos da morte de Néstor Kirchner, grande ator político da Argentina dos primeiros anos deste século. Juntamente com Cristina, sua esposa, conduziram por 12 anos os destinos do país, proporcionando bem-estar aos argentinos, equilíbrio fiscal e autonomia econômica. Foi o período em que mais visitei a Argentina e pude confirmar a estabilidade política e as perspectivas promissoras que então se alinhavam no horizonte. Tudo ao contrário do que ocorre hoje, com o governo de Milei.

No domingo, 26, ocorreram as eleições mi term na Argentina, com renovação parcial das cadeiras do legislativo. Vitória abrumadora do partido de Milei, Liberdade Avança, após forte apoio da Casa Branca - entenda-se Donald Trump - com um substancial pacote de recursos Swap de 20 bilhões de dólares para estabilizar por estes dias o câmbio. Poucos dias antes, o presidente estadunidense aprovou o apoio financeiro dizendo que A Argentina estava lutando pela sobrevivência... Eles não têm dinheiro, não têm nada... A grande questão que fica, como um país conduzido à beira do precipício por um governo incapaz como o atual vota pela fortalecimento legislativo desse mesmo governo incapaz?

Os peronistas perderam 2 cadeiras das 98, conseguindo manter seu universo de votos. O problema foi o avanço de Libertad Avanza, que de 44 subiu para 93 cadeiras. No senado, o quadro ficou pior, Fuerza Patria (peronismo) caiu de 34 para 26 cadeiras, e o partido de Milei saiu de 6 para 19. Seguramente virá a reboque desse terremoto as tão prometidas reformas previdenciárias e trabalhistas, além de novas privatizações do serviço público. Um horror que vivemos há nove anos, com a queda de Dilma e a ascensão de Temer e mais tarde, da eleição de Bolsonaro. 

Os argentinos têm uma longa e dura caminhada até que um governo efetivamente vinculado ao bem-estar social retorne vitorioso ungido pelas urnas. Bessent e os capitalistas estadunidenses buscarão o retorno devido a esse empréstimo e saberão como negociar em condições bastante vantajosas os imensos recursos argentinos. Será um período muito difícil para a maior parte dos argentinos, mas vejo um desdobramento nada auspicioso do governo Milei, profetizando seu completo descalabro. Serão dois anos difíceis para ele também, e se o roteiro do fracasso de Macri se repetir, ele sai da cena política em 2027. É o que ele merece, e o que sinceramente espero.

Não posso terminar este post com notícias tão desairosas. Ontem mesmo (mas agora já é 29, ou seja, na verdade anteontem...) recebi um bonito vídeo de Scott Mckenzie, cantando sua inesquecível canção San Francisco. Estava jovem, vestido de negro em um estúdio negro, a câmera dos anos 1960 capturando sua imagem em diversos ângulos, um típico exercício estético de uma época. Mas San Francisco possui no título um complemento, Be sure to wear flowers in your hair, frase que certamente influenciou toda uma geração pelo seu significado. Ainda hoje, a cidade de San Francisco exala algo da irreverência daqueles anos de beleza e rebeldia, de paz e amor, como se fosse imprescindível usar flores no cabelo...


 


17 outubro 2025

Halt (Deténganse)

 


Es Auschwitz 

la fabrica de horror que la locura humana eligió a la gloria de la muerte

Es Auschwitz 

estigma en el rostro sufrido de nuestra época

y ante los edificios desiertos, 

ante las cercas electrificadas, 

ante los galpones que guardan toneladas de cabellera humana

ante la herrumbrosa puerta del horno donde fueron incinerados

padres de otros hijos, amigos de amigos desconocidos, esposas, hermanos, niños que en el último instante envejecieron millones de años

pienso en ustedes, pedimos por su salud y por ustedes

pienso en ustedes, hombres de la tierra de Sión

pienso que estupefactos desnudos, ateridos, cantaron la hatikva en las cámaras de gas

pienso en ustedes y en vuestro largo y doloroso camino desde las colinas de Judea

hasta los campos de concentración del Tercer Reich

pienso en ustedes

y no acierto a comprender

cómo olvidaron tan pronto el vaho del infierno.

        

(Sílvio Rodriguez, recitando Deténganse, un poema de Luis Rogelio Noguera, BsAs, 12.10.2025).



30 setembro 2025

Kerouak, quem diria, já era


McCoy Tyner, sempre um espetáculo

Não basta nestes tempos ser apenas um escritor cuidadoso, versátil, imaginoso, ele tem de ser mais, e suas narrativas têm de se sincronizar com os temas pulsantes destes tempos. Parece um círculo vicioso sem graça, mas é isso, você começa a escrever, avança e não pode esquecer-se dos assuntos que mobilizam no presente momento, LGBTQIAPN+, o autoritarismo político (decorrente da ascensão de Trump e do filme brasileiro Ainda Estou Aqui); dos grupos marginais da sociedade; dos povos originários aos precarizados das margens urbanas, ou a violência de gênero. Há um chamariz encantado nesses temas que promovem uma atenção sempre especial, 

Não basta escrever sobre a memória social, em seus pequenos desdobramentos cotidianos, ou sobre a velhice e seus limites. Sobre a morte e outras surpresas, por exemplo, como escreveu Benedetti. Adquiri há pouco, aqui na livraria do cine Petrobras o livro finalista do Prêmio São Paulo, No Muro da Nossa Casa, um pequeno romance de Ana Kiffer, além de escritora, professora de literatura na PUC-Rio. Quero ler, claro que o tema me agrada, mas também quero espreitar os caminhos que a conduziu para que este livrinho de menos de cem páginas ganhasse destaque, dentre certamente as centenas de outros que concorreram. 

Talvez seja um bom sinal ter a quarta capa e a orelha escritos por escritor e político conhecidos e respeitados. Talvez. Há uma sistemática semântica (atravessou-me por um instante, que exagero, o termo cunhado por minha amada M. em outra circunstância, a mesmice discursiva) aqui presente que se destaca, e isso é importante conhecer. No mais, o tratamento visual do livro é discreto, assim como a editora, uma pequena casa do Rio. Já não é mais assunto uma narrativa do tipo on the road, à maneira de Kerouak, pé na estrada, um tema que pode ter fascinado, por sua originalidade, nos anos 1950. Demorei tantos anos e só o adquiri ontem, porque estava em promoção na livraria aqui ao lado. Quero ler logo, mas à despeito de sua força e atração, não teria muito apelo editorial nos dias de hoje.