17 dezembro 2025

Tempo das hienas

 


Foi com um gesto obscuro, 

à borda de uma cova

saboreando os restos de uma ossada

que a hiena mais astuta

observou ao longe

o pavor dos outros animais.

Houve um breve momento,

o pânico misturado ao temor,

que fez com que os animais, todos

apenas recuassem

e as hienas sentiram-se convidadas,

um butim farto as aguardava

e aproveitaram a frágil organização

dos bichos, todos

e perdeu-se o sangue frio, 

o desejo de lutar

e com sua mínima capacidade de interpretar o mundo

as hienas avançaram

souberam unir-se para devorar

as carnes de suas presas, todas

uma festança de grunhidos e uivos

e a floresta nunca mais foi a mesma.

 

(De um compêndio poético encontrado em meio às ruínas da civilização)



16 dezembro 2025

A caminho de Sófia




Mas voltemos ao trem que me levaria a Sófia. (...) Meus companheiros foram cinco, três búlgaros – mãe, filho e uma amiga dele, ao que pude perceber – e dois estadunidenses, com passaportes búlgaros. Eu isolado em meu português inútil, um estranho no ninho. Não desenvolvi nenhuma relação amistosa com meus companheiros de cabine, pois não tínhamos uma língua em comum, e porque cada grupo ficou na sua. Desde Istambul, levamos cinco horas e meia para atingir a fronteira com a Bulgária, e aí permanecemos parados por duas horas e meia. (...) Do outro lado da plataforma havia outro trem estacionado, e no meio, uma montanha de fardos de tecido manufaturado para serem embarcados. Os montes atingiam uns três metros de altura e se estendiam por toda a plataforma. Olhei para aquilo e por uma fração de segundo quis duvidar que tudo seria embarcado. De pronto me veio a lembrança daqueles trabalhadores eslavos em Istambul se esfalfando para colocar dentro dos ônibus e furgões seus pacotes de compras. Repetia-se o esforço, agora naquele lugar ermo, fronteiriço. (...) 

Grupos de incansáveis ‘estivadores’ eslavos, vestindo uma simples camiseta sob um frio congelante, movimentavam-se diante da enorme barreira de fardos. Estava claro que cada grupo tinha uma carga delimitada para si, a sua mercadoria. Logo, começaram a carregar o quinhão que lhes pertencia para o outro trem. Letras em cirílico indicavam alguma coisa sobre a mercadoria, talvez estabelecendo a que grupo cada monturo pertencia. Eu me tornava um espectador privilegiado, assistindo tudo desde o começo. Aos poucos pude distinguir um grupo do outro e lá pelas tantas passei a entender o esquema da divisão do trabalho. Grosso modo, o importante era levar tudo para dentro do trem, por conta de algum prazo estabelecido. O ‘como fazer’ é que variava. Um grupo, que atuava mais à esquerda do meu campo de visão, era composto por um eslavo que controlava o carregamento realizado por turcos. Ele ficava ao lado do que lhe pertencia e à chegada de um carregador, ajudava-o a acomodar o fardo em suas costas, o enorme fardo! Pensei em minha mochila, achava-a pesada em seus 19kg e via aquelas ‘pobres mulas’ ajeitando fardos pelo menos duas vezes mais volumosos...  

A sistemática era simples e dolorosa, o eslavo e o carregador catavam o fardo por um lado e sacudiam num movimento pendular até anularem a força de gravidade, quando o ‘chefe’ arremessava o pacotão em perfeita sincronia com a virada do carregador, que o recebia e o amparava em suas costas. Eram dois turcos a realizar esse trabalho de formiguinha, com o eslavo fiscalizando o encaminhamento e o embarque do material sem sair do lugar. (...) Mais à direita, o que me pareceu ser pai e filho transportavam seus invólucros de maneira mais usual e lenta: pegavam cada qual numa ponta e carregavam até a porta do vagão, onde outros dois recolhiam e ajeitavam os volumes em seu interior. Pai e filho iam e vinham em um movimento meticuloso, repetitivo, determinado. Às vezes o filho ficava uns minutos a sós – o pai saia de cena para resolver algum problema – e aproveitava para acender um cigarro. O frio enregelava os meus pés dentro da cabine, o que dizer da temperatura lá fora?... Talvez por isso todos trabalhavam sem cessar. De certa forma ali estava o ganha pão daquelas pessoas desafortunadas por injunções políticas, pela incompetência de dirigentes que não assumiam suas responsabilidades perante seus povos. Aqueles, à minha frente, não tinham tempo a perder com esse tipo de raciocínio, por isso continuavam a trabalhar duro. 

Aos poucos se juntaram em torno desses dois grupos iniciais outros sujeitos corpulentos, que já deviam ter concluído seus trabalhos alhures e ajudaram no transporte com as mercadorias. O monturo foi diminuindo, até que os derradeiros invólucros foram embarcados. Ao final, formaram rodinhas de três, quatro, e fumaram, gargalharam, moveram-se como cães de caça para um lado e para o outro, como se não soubessem ficar sem ter o que fazer. Mas deviam estar satisfeitos por mais uma etapa vencida. As cabinas do outro trem estavam repletas de mercadorias, as mulheres ficaram nos corredores organizando o fluxo de pacotes. Pensei um pouco sobre a minha situação: completamente isolado em uma cabine desaquecida, à mercê do movimento do trem para retomar a viagem, com um frio que já atingia a espinha. Não havia o que fazer, não tinha a quem reclamar. Não me senti acomodado em minha impotência, preferi considerar que eu me fortalecia diante das adversidades... Calar-me era, naquele momento, uma forma de resistir. Por fim, o trem se foi (o deles; o nosso permaneceu por mais um tempo) e, como se tudo estivesse perfeitamente sincronizado, começou a chover.

(Diários de viagem, março de 1994)



15 dezembro 2025

Um poema, Robert Desnos

 


27.3.36


Eu me levantarei amanhã de manhã

Mais cedo que hoje

O sol amanhã de manhã

Será mais quente que hoje

Eu serei mais forte amanhã de manhã

Mais forte que hoje

Eu estarei alegre amanhã de manhã

Mais alegre que hoje

Eu terei amanhã de manhã

Mais amigos que hoje

E embora amanhã de manhã

A morte esteja mais próxima que hoje

Eu estarei amanhã de manhã

Mais vivo mais vivo que hoje!


(Les Poèmes de Minuit, de Robert Desnos)



10 dezembro 2025

O revolucionário republicano


Museu de História da Catalunha, 2024

Do mais inacessível do caráter obsceno, é daí que nasce, segundo o bondoso Canuto, a vertente que mais tarde se consubstancia no voto racista. Desta vez ele estava disposto a falar um pouco mais. Deixou sua sapataria como costumeiramente faz, e com sua boina de republicano espanhol – ele me garantiu que era – me viu em uma das mesinhas do Alma, puxou uma cadeira e sentou-se. É mais fácil encontrá-lo andando pelas cercanias, tomando umas biritas no bar da esquina, ou com algum conhecido em uma das lojinhas da galeria, do que em sua sapataria. A galeria preserva profissionais raros de se encontrar na grande cidade. Um pouco acima de sua sapataria, o barbeiro Muniz, sempre com seu jaleco branco. Aprecio o seu silêncio e seu capricho, fico ali sentado mais de hora enquanto ele realiza com a tesoura os contornos e os aparos. Cortei hoje, nunca sei se está de bom ou mal humor. 

Mais acima, uma pequena loja com queijos de todos os tipos e origens. Lá no fim, antes da curva para a outra saída, o alfaiate Jessé, baiano de quatro costados, trabalha na sobreloja e faz do térreo um expositor de seu trabalho artesanal. Por certo nenhum deles deixará herdeiros, quando morrerem ou fecharem seus estabelecimentos. Terão seus lugares ocupados por alguma loja de celulares ou de apostas. Ainda há poucos meses havia em frente a alfaiataria uma lojinha de canetas com cargas recarregáveis. Eram dois irmãos e faziam até a tinta para canetas com pena. Os irmãos mantinham uma conversa muito agradável sobre as peripécias de seu negócio. Não durou muito e em um belo dia vi as portas fechadas. Não sei o motivo, me disse o zelador Barbosa, mas garantiu que era em definitivo. Dá para desconfiar sobre as razões, quem hoje em dia escreve à mão? E mais grave, quem escreve à mão com uma caneta diferenciada? 

Agora, aqui na mesinha interna do Alma, observo o seu Canuto sentado próximo à saída da galeria com seu boné republicano, às falas com Barbosa, as pernas dobradas e o cigarrinho de palha numa das mãos. Penso que leve a vida como um verdadeiro existencialista: o que vale é o aqui e agora. Na verdade, provavelmente sem o saber, ele representa um perfeito republicano espanhol existencialista, saído dos anos 1930 direto para sua sapataria. Eu costumo lhe perguntar sobre a Guerra Civil Espanhola, ele me resmunga respostas. É outro que faz da voz um murmúrio quase inaudível, ou começo a ter problemas de audição.



02 dezembro 2025

Entre feras e chacais


Não é Gaza, 2025; é Haifa, 1948

Gaza está às moscas, ninguém falava antes, ninguém fala agora. Surge no horizonte dos noticiários a intervenção na Venezuela. Até bem pouco tempo atrás, um descaramento diplomático, hoje, uma possibilidade natural. Etapa final do capitalismo, matar antes de morrer. A pergunta que não quer calar: até onde a camarilha republicana pode bancar isso? Qual o limite para o silêncio do mundo diante de ações absurdas desse naipe? Não sabemos. Aliás, sabemos pouca coisa. Quando o mundo se transforma em um faroeste de segunda linha, tudo é possível. 

De sua parte, o junk journalism persiste, se renova, torna-se mais sórdido. Sua presunção fantasiosa não chama mais a atenção, do ponto de vista ético. As pessoas estão cada vez mais despreparadas para o embate humanista. De modo que a mentira se expressa como autêntica verdade, até que logo ali adiante, seja superada pelos fatos. É narrada em um tom formal, como se não houvesse outras interpretações possíveis para os acontecimentos; é elaborada nos mínimos detalhes (presumidos), não apenas distorcendo a compreensão da notícia, mas o que considero mais grave, construindo verossimilhanças que superem – e mesmo contradigam – os fatos. 

Os filminhos de narrativa paralela, como Nárnia, com seus leões, feiticeiros e peregrinos, fizeram bem o serviço de deslocar as consciências para um outro plano e fazê-las sonhar. Enquanto isso, a leitura criminosa do junk journalism desbasta a floresta do mal, a serviço do chefe. Há que se ter muito sangue frio nas veias e uma boa dose de canalhice no caráter para se transformar em um chacal. O pistoleiro contumaz não se aflige, nem antes, nem depois: sua moral é matar antes de morrer, seu desejo é sobreviver como um herói. Aprende logo a apertar o gatilho, toma gosto dessa prática e depois só lhe resta dormir como um anjo.



29 novembro 2025

Refeição ao ar livre

 



Ontem, o impactante Teorema de Pasolini, no CineSesc. Um retrato fragmentário da sociedade burguesa dos anos 1960, da fragilidade ideológica de seus integrantes, quando se percebem em uma vida sem grandes projetos. A presença alegórica dos personagens que compõem uma família e uma empregada, e os descaminhos a partir da presença de um visitante ilustre. 
O filme é praticamente uma leitura do livro homônimo de Pasolini. Abro-o e identifico praticamente cada sequência do filme. Abaixo, destaco o breve capítulo Refeição ao ar livre, relembrando cada detalhe do cenário constituído pelo diretor/autor. Um pequeno detalhe do complexo e ainda assim maravilhoso filme.
 

A família toda - como nos belos dias do verão, antes de começarem as férias - almoça no jardim. Emília serve à mesa.

Ninguém fala, e o único ruído vem de um rádio estúpido e distante - e que parece festivo. 

Embora escondam um segredo não partilhado, os olhares que Lúcia, Pedro e Emília só têm para o hóspede estão cheios de vibração e pureza.

Só Odete, fechada na sua agressiva palidez de pequeno coelho branco, parece ignorá-lo: e o faz quase abertamente. Isso, porém, a perturba. Só ela, pois, está imersa em outros pensamentos e não tem olhos para o hóspede. Porque até o pai - após as vicissitudes da noite ainda pálido e exausto - o contempla com um olhar que jamais teve antes.



As plagas para mais além


Praga, 1994


O passado em Buganvília remontava de súbito como um desmundo, como toda referência em seus prazeres e rudezas. Posicionava-se como uma história sonolenta e ainda não adormecida, e isso ficava cada vez mais claro ao andar por entre as pessoas e observá-las girar pela praça da fonte. nada mais esperado que o fluxo contínuo de sensações o conduzisse à remissão do passado, confrontando situações dispersas no tempo... Acercava-se, então, à esquina... quando olhou para o outro lado da rua e teve uma vaga imagem, sob o manto das penumbras indefinidas do final de tarde, de uma fileira de casas que se sucedia em um nível mais elevado em relação à rua. A visão imaginosa expôs estéticas mais modernas de construção, casas de alvenaria frondosas e arejadas, cada qual prolongando para os fundos extensos quintais onde projetavam-se árvores frutíferas, com estruturas de concreto para o churrasco, algumas com piscinas, a maioria apenas tendo o gramado com plantas ornamentais nos limites dos terrenos, que se completavam com cercas ou muretas de tijolos... Ângelo pensou, O medo social ainda não chegou em Buganvília... onde era evidente que o temor pela segurança não fazia qualquer sentido. 



14 novembro 2025

Conversa com Gardel




Tenho dormido profundamente, despertando a tempo de tomar o desjejum no hotel. Enquanto bebo minha taça de café preto, me perco no bulício vindo da rua, através da enorme vidraça, sem me preocupar em ordenar as impressões. Mais dois goles e desponta um flash, a lembrança perdida e renascida inesperadamente de um sonho tido na madrugada. Apareceu na íntegra, embora aos fragmentos. Um homem velho à beira da cama, coberto por toalhas de banho. Segurava em uma das mãos um fósforo, insuficiente para iluminar o ambiente ou para aquecê-lo no frio do quarto. O rosto indiscernível, olhava estático para o lume a queimar lentamente. Perguntei-lhe então se o que havia dito na conversa da noite anterior era real, se de fato tinha alguma vez conversado com Gardel. Fiz a pergunta em castelhano, onde estaríamos, em um hotel fuleiro de Buenos Aires? Quem era aquele velho que olhava obsessivamente para a chama do fósforo, Quiroga, Macedônio Fernandez, meu pai?... A penumbra que envolvia a habitação não permitia revelar muita coisa, mas conclui que a cena se passava nos anos 1930: a pequena pia ao fundo, o par de botinas junto à cama, o pijama branco e inteiriço... Não me respondeu à pergunta, manteve-se imóvel, calado, à beira da cama, sem desejo de levantar-se ou de voltar a dormir. A barba pontiaguda dançando ao fragor da luz pálida do fósforo... Não, não era papai, ele nunca teve barba e não gostava de Gardel.

 

(trecho do novo romance Morrer, Viver, ainda inédito).