31 maio 2025

Modos torpes e sinuosos do massacre: os olhos

 

Louis Stettner, The Penn Station Series

O jovem vestido de uniforme laranja me chama para ser atendido. Deixo duas garrafas de água sobre a mesa, ele registra, me pergunta como desejo pagar, Cartão de débito, respondo. O uniforme está verdadeiramente puído, destacam-se tatuagens nos braços e no pescoço, pequenas, grandes, desenhos, nomes, uma sucessão confusa de linhas escuras, ao contrário de sua personalidade jovial e esclarecida. Pergunto se já está no final do turno, diz que sim, com uma expressão de alívio. Não desgruda os olhos da máquina, e enquanto emite a nota, acrescento, Não faz sentido, encontro coisas aqui que não existem no mercado da mesma rede ali em frente, e ele, Não estão preocupados, não tem um padrão, olha só como aqui é diferente, mal organizado, e acrescenta em um tom mais baixo ou mais acelerado, já que os fregueses se acumulam na fila, O que interessa para eles é isso... pronto, (a grana) chegou, aí ficam tranquilos... pode continuar a bagunça... Dou uma risada, gosto do seu jeito perspicaz, complemento com uma fala que poderia estar em sintonia com seu comentário, Eles se preocupam com a grana chegando, e continuam esquiando... Ele me entrega o pacote e me olha pela primeira vez nos olhos, nos despedimos, ele diz, Vá com Deus.

O jovem é de fato um sabugo explorado até o talo e depois descartado. Cada semana deparo ali, ao comprar essa marca de garrafa de água, que são jovens diferentes. O anterior havia me dito que ainda dava para aguentar, Ali, era suave, o duro é a jornada no... (marca de uma lanchonete transnacional)... para lá não volto nunca mais...  O corpo se desgasta, é literalmente chupado, dessangrado, e naturalmente vilipendiado, sem que isso chame a atenção do freguês. Ao contrário, quando este não encontra o que deseja, ou o atendimento demora por falta de empregados, costuma chiar brutalmente, como se estivesse sendo destratado, quando na verdade quem é destratado diariamente é o pobre do funcionário de plantão. O extremo esforço do corpo para compensar um sistema agônico, voltado cada vez mais para os números dos lucros. No meu prédio, ao chegar, deparei com o zelador, nas mesmas vestes puídas, só que de outra cor, sentado por um momento por trás da mesinha. Digo por um momento porque desde as últimas demissões, ele tornou-se o único zelador de dois condomínios: lava o piso, atende as entregas, conserta canos e fiações, e no final do dia dá bom dia até para cavalo, se os houvesse por ali. Mas ao encontrá-lo, ali, paradinho por uns instantes, reparo em seus olhos, profundos, melancólicos, doloridos, quase ausentes, que mal enxergam a realidade diante de si, e talvez por isso mesmo, me responda em tom de brincadeira, Sim, tudo tranquilo, na paz, sem esquentar a cabeça...



19 maio 2025

Idea Vilariño, uma poesia


Idea Vilariño (1920-2009)


 A NOITE

A noite não era o sonho
era sua boca
era seu belo corpo despojado
de seus gestos inúteis
era sua cara pálida olhando-me na sombra
A noite era sua boca
sua força e sua paixão
era seus olhos sérios
essas pedras de sombra
tombando em meus olhos
e era seu amor em mim
invadindo tão lenta
tão misteriosamente

(declamado para Moniquinha, na noite de seu aniversário)



14 maio 2025

Pepe, Francisco



 

Em menos de um mês, se vão dois personagens marcantes deste quarto de século: o Papa Francisco, no dia seguinte à Páscoa, 21 de abril, e Pepe Mujica, ontem. De ambos, mortos quase com a mesma idade, fica a terna lembrança de personalidades que lutaram bravamente contra os fascismos degenerativos, em busca de uma vida solidária e justa. De Francisco, fui aos poucos aprendendo como debelar infâmias com serenidade, sem ceder à mídia que o detratava, paulatinamente tendo contato o vigoroso percurso que realizou junto às causas sociais. Uma caminhada bastante solitária, mas determinada, amparado pela fé em que assumiu desde o princípio. 

De Mujica, uma caminhada forjada no enfrentamento revolucionário, com a finalidade de promover uma governança alinhada ao bem-estar comum. Não conseguiu com o processo revolucionário, mas sim posteriormente, na atuação política com a democracia restaurada. Passei a admirar sua luta desde que seu nome se destacou como ex-guerrilheiro do MLN-T, e mais tarde, como integrante da Frente Ampla, vitoriosa em 2005 com Tabaré Vasquez. Vencedor do pleito seguinte, em 2009, seu governo deu continuidade aos fortes investimentos em políticas sociais que ocorreram naquele momento, simultaneamente, em diversos países da América do Sul, ao lado de Lula, Chávez, Evo, Bachellet, Correa, Kirchner e Lugo. 

Em ambos, Pepe Mujica e Papa Francisco, a infindável sabedoria das palavras e das ações. Em ambos, a bondade militante que jamais cedeu em seus propósitos, ao promoverem um mundo melhor, mais autêntico e menos hipócrita, mais humano e menos mercadológico. Em minha opinião, ambos souberam mobilizar a razão das massas pelo coração; ambos souberam levar seus combates a um bom término, ao justificarem plenamente seus esforços para se pensar e viver uma verdadeira opção ao famigerado neoliberalismo.


  

29 abril 2025

O discreto instante da permanência


Peter Keetman, Nebellauf, 1956

As tragédias que nos afligem, tão próximas, soltaram as amarras, e nesse tempo que sobrevém as dores e as infindáveis lembranças, é possível perceber a velhice se apropriar do corpo, e com ela, o cálice com o elixir que robustece o amor poucas vezes manifesto. O sorriso tão natural que brota suavemente na face tranquila de mamãe impulsiona os momentos belos que os irmãos passamos a compartilhar, momentos não só de compreensão e leveza, mas de serenidade. A temperança nos acolheu proporcionando o estado de espírito que nos abrigou da desesperança, de uma angústia poderosamente crescente. O idílio de uma paz inesperada, que nos contempla em cada encontro, esparge seus olores e nos torna mais humanos, na fartura como na falta. 

Mas a caminhada foi exaustiva, muitas das vezes sem os resultados desejados. Não encontrar um caminho significava a prevalência de um mundo descartável, arrefecendo-nos. Foi o amor que forcejou, e se instalou, e repudiou veementemente a futilidade dos temores, das falsas promessas e vez ou outra, das torpes espectativas. Sobreveio o tempo de acreditar na bondade a qualquer custo, de sentir a imensidão do universo, desde seus míseros vespeiros ao maravilhoso poente outonal. Foi necessário despertar dos bons e dos maus sonhos com a mesma dúvida; deleitar com as visões magníficas do farol cintilante na Comporta Tannhäusen, mas também considerar a tolice do descaso de cada dia. 

Entre o que foi e o que é, emerge o discreto instante da permanência e com ela, a possibilidade contínua da transformação pelo amor. Os segredos superados pela entrega. Diante de mim, Jessica sorri e convida-me para saborear o chá de cada noite.


24 abril 2025

Milei et caterva


Nas ruas da Itália


Tantos absurdos cometidos, que um a mais, outro a menos apenas reforça a pobre liturgia dos eventos. Disso se trata o dia a dia no neoliberalismo, o que é fato em um momento, no outro deixa de sê-lo, e não raro, da forma mais patética e desprezível. Então, não é problema para um chefe de estado desancar com outro, de maneira vil, para depois desejar acompanhar pessoalmente seu funeral. E vai para o funeral levando uma comitiva imensa, desnecessária, em um verdadeiro voo da alegria. No meio dessa comitiva, a ministra de segurança que na véspera cerceou (e nas semanas anteriores brutalizou) com uma imensa tropa policial às manifestações de aposentados pelas ruas da capital, como a vigiar um inimigo ensandecido, que ameaça a segurança nacional. 

Desta feita não houve balaços, ainda que tenha comparecido muito gás pimenta. Também na comitiva comparece o porta-voz, aquele que regularmente porta mensagens dolorosas para a economia da nação, e que pretende surfar em alguma onda para alçar o governo da cidade autonoma, nas eleições vindouras. Nenhum mérito justificável, como gosta de proclamar aos quatro ventos, como bom neoliberal que é. Na comitiva vai a irmã do chefe de estado, a voz indispensável da consciência do mesmo, motivo mais do que suficiente para confirmar sua presença na viagem. Ao que parece, não estará presente nenhum dos cães que orientam ao chefe de estado, e temo por essa ausência sobre seu equilíbrio emocional. A esperança é que o cão defuntado possa inspirar com seus latidos do além o pobre presidente, tão solitário, tão infeliz.

Quanto ao ex-presidente eleito deste país, ainda internado (mas passa bem, está em franca recuperação), este recebeu a intimação em seu leito hospitalar. Declarou todos os impropérios golpistas antes e durante o seu governo (há provas documentais substanciosas), agora, acuado em sua insignificância, se declara inocente. Não obstante, o julgamento no STF prossegue, e ao que tudo indica, fará grande justiça ao povo deste país, porque seus atos foram covardes, e porque seus atos foram criminosos contra a democracia deste país.

Gaza continua sob ataque, e não existe paz possível no horizonte. A pax neoliberal preocupada com a livre concorrência, insinua que nada de mais ocorre nos territórios ocupados, sobretudo em Gaza. Além dos ataques aéreos, o zumbido incessante dos drones de controle inquietam a população palestina, que não tem sossego, que não podem ir e vir, que não desfrutam da possibilidade da livre concorrência. Uma violência arbitrária, que não tem limites e não se extinguirá. Um ano e meio de destruição, de mortes, de crimes de guerra. 

O sionismo nunca esteve tão próximo e tão longe de alcançar seus propósitos. 


19 abril 2025

De Brecht, por Osvaldo Bayer




Vi recentemente a declamação de Elogio ao Estudo de Bertold Brecht por um Osvaldo Bayer nonagenário, com a força e entonação devidas, sem a falsa emoção que acompanha os manifestos frívolos. Bayer se detém a cada estrofe, como a firmar a beleza do texto, repetindo sempre o verso Prepárate para gobernar (Prepara-te para governar).

Desde que travei contato com sua literatura, isso por volta de 2007 quando estive na Argentina e adquiri seu formidável Patagonia Rebelde, acompanhei a trajetória combativa, a vida, a luta política, a produção de textos históricos até sua morte aos noventa e um anos em dezembro de 2018. Sempre alimentei um grande respeito por suas ideias, pelo enfrentamento corajoso contra os governos autoritários, que ajudou a inspirar minha visão política de mundo. 

Abaixo, transcrevo o texto de Brecht com minha tradução.


Elogio do Estudo

Aprende o mais simples.
Nunca é tarde para aqueles 
cujo tempo chegou!
Aprende o alfabeto. Não basta
mas aprenda-o! Não te desanimes.
Começa já! Deves conhecê-lo todo!
Prepara-te para governar.

Aprende, marginal, homem do campo,
aprende, ocupante do cárcere,
aprende, mulher atada à cozinha,
aprende, sexagenária!
Prepara-te para governar.
Vem para a escola, homem sem teto.
O saber é para ti que sentes frio.
Faminto: toma com força o livro, é uma arma.
Prepara-te para governar.

Não temas em perguntar as coisas, camarada!
Não te deixa influenciar,
descobre tu mesmo.
O que não sabes por conta própria
não o sabes.
Revisa a conta.
És tu o que a paga.
Ponha o dedo sobre cada cifra.
Pergunta: Como se chegou até aqui?
Prepara-te para governar.

(Bertold Brecht)

https://youtu.be/9Wv-yYIuGNo?si=V2SOFMscqT4n9wu1



14 abril 2025

Alejo Carpentier


Ernest Cole


O segmento abaixo é uma transcrição traduzida do espanhol do denso ensaio de Roberto González Echeverría, Alejo Carpentier, sobre o autor cubano, publicado em Narrativa y critica de nuestra America, pela editorial Castalia, Madrid, em 1978. O volume traz um conjunto de textos sobre diversos escritores latino-americanos que naquele momento se destacavam com suas narrativas. Optei pelo texto sobre Carpentier, um escritor que entusiasma pela descrição do barroquismo presente em nosso continente (e nesse sentido, muito bem abordado por Echeverría), ao trazer esse elemento expressivo da arte na composição do caráter do nosso povo, bem como o componente político arraigado nas múltiplas maneiras dele se realizar na realidade cotidiana. Como Echeverría bem observa, "Esse barroco é a nova metáfora carpentiana para o americano, que será a mistura, o sem estilo e sem método".

Além do que, Carpentier merecia, neste pequeno e insigne blog, uma lembrança ainda que discreta. Sem dúvida, o texto de Echeverría tem o mérito de abarcar com a devida profundidade o imenso narrador que foi Alejo Carpentier, mas não seria possível trazer neste espaço o ensaio em toda sua extensão, o que sem dúvida nos faz perder muito. Fiz a opção por traduzir a parte final, para ainda saborear a parte final deste importante estudo crítico. 

Fico particularmente orgulhoso em trazer um pouco que seja sobre a obra e o método de Carpentier; as falhas no ritmo ou na compreensão do texto ficam, por óbvio, sob minha exclusiva responsabilidade. Espero que apreciem.
 
(...)
"O recurso do método, que à maneira de Valle Inclán em Tirano Banderas e Asturias em O senhor presidente, destaca a figura de um ditador latino-americano, é esse futuro que a Revolução francesa anunciava. O título desta novela é, desde logo, uma paródia do de Descartes; mais do que uma paródia, é uma mescla de Vico com Descartes. Os recursos da história devem ser vistos, aqui, como as recurvas da mesma. O ditador hispano-americano regressa à França, de onde surgiu em princípio as bases de sua duvidosa legalidade, para dedicar-se desenfreadamente aos prazeres da carne, e ao labor de converter-se em uma espécie de déspota ilustrado, embora degradado; o ditador dorme em uma rede em seu suntuoso piso parisiense. Concerto barroco, o último romance de Carpentier, marca um retorno similar. Aqui vemos a influência da América na Europa. O barroco será assim o desarranjo do classicismo europeu como resultado do heterogêneo latino-americano: o Montezuma de Vivaldi, o esboço em gesso de tradições e traições, anuncia o jazz e outras manifestações exógenas do tipicamente novo do Novo Mundo. Esse barroco é a nova metáfora carpentiana para o americano, que será a mistura, o sem estilo e sem método. Nos últimos dois romances, surge um elemento novo em Carpentier, o humor.

García Márquez declarou que quando leu O século das luzes jogou no lixo o que tinha escrito de Cem anos de solidão e começou de novo. A influência de Carpentier sobre os novos novelistas tem sido enorme, às vezes, como no caso de García Márquez, por estímulo positivo, e outras, como em Severo Sarduy (quem parodia Intimidação, em Gestos), por estímulo negativo. Em prosa ficcional Borges e Carpentier são as figuras mais importantes na primeira metade do século XX na América espanhola. Borges por haver levado sempre até suas consequências mais radicais os problemas mais difíceis do ofício; Carpentier por ter moldado a uma temática latino americana experimentos novelísticos de alta envergadura, e sobre tudo, por ter feito da história latino americana seu tema principal. Além do que, por essa "curiosa indefinição" que o achacou Marinello em 1937 (no livro Uma novela cubana, publicado pela UNAM, México), Carpentier logrou dar causa à mais candente problemática hispano americana: a da falta de identidade, e conseguiu provar que, pelo menos em literatura, essa indefinição é o que define o americano. Ainda que, talvez, seja precisamente a indefinição o que defina a literatura, e então o exemplo de Carpentier será muito maior. 

Igualmente exemplar foi a entusiasta e laboriosa adesão de Carpentier à Revolução Cubana, que por fim lhe deu pátria desde a qual orientou suas multiplas peregrinações, e demonstrou a possibilidade de superar as contradições entre a vanguarda artística e a política.



31 março 2025

Cenas marcadas pelo tempo


A bela capa

Saiu a capa final, e com ela o miolo revisado. Trata-se de meu mais recente livro, Cenas que se diluem com o tempo, a ser lançado em abril, ou no mais tardar, em maio. Editado pela Urutau, tem sido uma nova experiência em termos de publicação, um ganho em termos de qualidade profissional. Desde a preparação da capa, passando pelos cuidados com a revisão pelo acabamento do livro, e considerando as dificuldades em publicar com a editora (pelas chamadas regionais serem muito concorridas), tenho uma grande expectativa pelo resultado final. 

Já estamos no fim do processo de revisão, e o próximo passo será a edição em si. O livro conta com 144 p. e desta feita, sem prefácio. Considerava até dois meses atrás como o meu patinho feio, pois ali está reunido um conjunto heterogêneo de gêneros e formatos diferentes, pequenos e médios contos, crônicas ficcionais, relatos de viagem, um fragmento de diário, poesias em prosa, um esboço de roteiro e até mesmo uma curta peça dramatúrgica. Mas com o resultado da chamada, iniciei leituras de revisão e me dei conta de um prazer inesperado que a obra me proporcionou.

O conjunto reúne 56 textos, sendo 28 singelos, afetuosos, recordatórios e 28 tensos, ardilosos, dramáticos, uma obra sem prefácio. Optei por reunir textos avulsos, alguns guardados há anos, que deram uma curiosa e ao mesmo tempo harmoniosa consistência de coisas diferentes que consolidam uma obra. Um livro que descreve situações, circunstâncias definidas por um tempo passageiro, apreendidas ao sabor do momento e que aos poucos se deixam diluir.