29 novembro 2025

Refeição ao ar livre

 



Ontem, o impactante Teorema de Pasolini, no CineSesc. Um retrato fragmentário da sociedade burguesa dos anos 1960, da fragilidade ideológica de seus integrantes, quando se percebem em uma vida sem grandes projetos. A presença alegórica dos personagens que compõem uma família e uma empregada, e os descaminhos a partir da presença de um visitante ilustre. 
O filme é praticamente uma leitura do livro homônimo de Pasolini. Abro-o e identifico praticamente cada sequência do filme. Abaixo, destaco o breve capítulo Refeição ao ar livre, relembrando cada detalhe do cenário constituído pelo diretor/autor. Um pequeno detalhe do complexo e ainda assim maravilhoso filme.
 

A família toda - como nos belos dias do verão, antes de começarem as férias - almoça no jardim. Emília serve à mesa.

Ninguém fala, e o único ruído vem de um rádio estúpido e distante - e que parece festivo. 

Embora escondam um segredo não partilhado, os olhares que Lúcia, Pedro e Emília só têm para o hóspede estão cheios de vibração e pureza.

Só Odete, fechada na sua agressiva palidez de pequeno coelho branco, parece ignorá-lo: e o faz quase abertamente. Isso, porém, a perturba. Só ela, pois, está imersa em outros pensamentos e não tem olhos para o hóspede. Porque até o pai - após as vicissitudes da noite ainda pálido e exausto - o contempla com um olhar que jamais teve antes.



As plagas para mais além


Praga, 1994


O passado em Buganvília remontava de súbito como um desmundo, como toda referência em seus prazeres e rudezas. Posicionava-se como uma história sonolenta e ainda não adormecida, e isso ficava cada vez mais claro ao andar por entre as pessoas e observá-las girar pela praça da fonte. nada mais esperado que o fluxo contínuo de sensações o conduzisse à remissão do passado, confrontando situações dispersas no tempo... Acercava-se, então, à esquina... quando olhou para o outro lado da rua e teve uma vaga imagem, sob o manto das penumbras indefinidas do final de tarde, de uma fileira de casas que se sucedia em um nível mais elevado em relação à rua. A visão imaginosa expôs estéticas mais modernas de construção, casas de alvenaria frondosas e arejadas, cada qual prolongando para os fundos extensos quintais onde projetavam-se árvores frutíferas, com estruturas de concreto para o churrasco, algumas com piscinas, a maioria apenas tendo o gramado com plantas ornamentais nos limites dos terrenos, que se completavam com cercas ou muretas de tijolos... Ângelo pensou, O medo social ainda não chegou em Buganvília... onde era evidente que o temor pela segurança não fazia qualquer sentido. 



14 novembro 2025

Conversa com Gardel




Tenho dormido profundamente, despertando a tempo de tomar o desjejum no hotel. Enquanto bebo minha taça de café preto, me perco no bulício vindo da rua, através da enorme vidraça, sem me preocupar em ordenar as impressões. Mais dois goles e desponta um flash, a lembrança perdida e renascida inesperadamente de um sonho tido na madrugada. Apareceu na íntegra, embora aos fragmentos. Um homem velho à beira da cama, coberto por toalhas de banho. Segurava em uma das mãos um fósforo, insuficiente para iluminar o ambiente ou para aquecê-lo no frio do quarto. O rosto indiscernível, olhava estático para o lume a queimar lentamente. Perguntei-lhe então se o que havia dito na conversa da noite anterior era real, se de fato tinha alguma vez conversado com Gardel. Fiz a pergunta em castelhano, onde estaríamos, em um hotel fuleiro de Buenos Aires? Quem era aquele velho que olhava obsessivamente para a chama do fósforo, Quiroga, Macedônio Fernandez, meu pai?... A penumbra que envolvia a habitação não permitia revelar muita coisa, mas conclui que a cena se passava nos anos 1930: a pequena pia ao fundo, o par de botinas junto à cama, o pijama branco e inteiriço... Não me respondeu à pergunta, manteve-se imóvel, calado, à beira da cama, sem desejo de levantar-se ou de voltar a dormir. A barba pontiaguda dançando ao fragor da luz pálida do fósforo... Não, não era papai, ele nunca teve barba e não gostava de Gardel.

 

(trecho do novo romance Morrer, Viver, ainda inédito).