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Gaza, tal qual Hiroshima |
Oitenta anos da hetatombe atômica de Hiroshima. Retomo o livro Flores de Verão de Tamiki Hara, um dos poucos sobreviventes, sua descrição límpida, serena, como se tudo não tivesse passado de um lamentável equívoco, ou algo muito previsível de acontecer e portanto, levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. É uma narrativa dentre tantas que poderiam surgir, por toda a tragédia, Tamiki Hara consegue manter uma linha cronológica que de alguma forma situa o leitor diante de tanto horror. A cidade destruída, tal como aparece nas fotos aéreas, tiradas pela força aérea dos Estados Unidos, ocorreram com os escombros já frio. Mas na descrição de Hara, as ruínas estão escaldantes, muitos focos de incêndio e fumaça. O que existia deixou de existir, e essa constatação surgem de modo indireto, quando ele relata que pelo terreno plano, havia chegado a uma rua, ou que o bosque de bambus tinha sido derrubado.
Talvez seja esse modo oblíquo de descrever que torne o livro fascinante, pois exige que o leitor interprete o que exatamente significava toda a destruição ao redor. No capítulo final, escrito anos mais tarde, é interessante ver as relações que Tamiki Hara cria ao se descrever, ao falar das coisas ao redor, na sucessão delicadamente opressora dos acontecimentos. "O que surge nos meus olhos, porém, é a imagem das pessoas em desalento a observar os trilhos. Sempre penso que perto deles vagueiam as sombras de pessoas com a vida devastada, atiradas num local de onde, ainda que lutem, não conseguem se desvencilhar".
Sobreviver ao ataque atômico exerce uma dor estranha, indescritível como o trágico evento, e permanente, que não se descola por um minuto da consciência de mundo. O sucesso de sua narrativa, a beleza das flores, a reorganização social, os raios de sol, tudo parece exercer uma beleza secundária, que não recompõe mais o modo de ser. E o modo de ser já não se define por "sou isso" ou "sou aquilo", de maneira concreta, como se a fragmentação da cidade só lhe permitisse ser as coisas volúveis de um sentimento passageiro. Assim, tudo é perceptível de modo suave, com um valor indispensável, uma rajada de vento, as flores nas ruas, a Primavera sussurrando poemas, pinturas e músicas, "Apenas o ardor da vida emite um súbito raio de luz, e a cotovia, tendo escapado aos limites humanos, se converte em estrela cadente".
A tragédia criminosa de Hiroshima não deixa de pulsar no coração dos seres sensatos, assim como Gaza o faz em nossos dias.