31 agosto 2025

Poesia Palestina



 

Se devo morrer


Se devo morrer,

você deve viver

para contar minha história

vender minhas coisas

comprar um pedaço de tecido

e uma corda,

(que seja branco com cauda negra)

para que uma criança, em algum lugar de Gaza,

enquanto olhe o céu nos olhos

esperando a seu pai que se foi em um resplendor -

e não se despediu de ninguém,

nem mesmo de sua carne,

nem de si mesmo -

veja o barrilzinho, meu barrilzinho que fizestes, voando alto

e pense por um momento que ali há um anjo

trazendo de volta o amor.

Se devo morrer

que traga esperança

que seja um conto.


(Rafaat Alareer, 1979 - assassinado em 06.12.2023)


Entre estrangeiros

(Gaza, 1951)

fragmentos


Pai!

Por favor, por Deus, diga-me

Iremos algum dia a Jaffa?

Sua preciosa imagem

segue flutuando diante de meus olhos.

Regressaremos a ela algum dia com orgulho, 

apesar desses tempos, com dignidade?

Diga-me, entrarei em minha casa?

Entrarei nela com meus sonhos?

E a encontrarei, e ela me encontrará?

Ouvirá meus passos?

Entrarei através deste coração

tão nostálgico, tão sedento?


Pai,

se tivesse, como os pássaros

asas para levar-me,

haveria voado com um desejo despreocupado

pela saudade de meu país.

Mas sou da terra;

a terra continua atando-me.


Vamos recuperá-lo,

retomemos este país

nunca aceitaremos um substituto,

nunca aceitaremos um preço por ele!


Nenhuma fome nos matará,

nenhuma pobreza nos esmagará,

a esperança prevalecerá

cada vez que a vingança convoque.

Paciência, filha minha, paciência.

Amanhã, a vitória estará de nosso lado.


(Harun Hashim Rasheed, 1927-2020)


(tradução livre do espanhol realizada por Marco Antonio Bin)



29 agosto 2025

Chalámov e outras rememorações


As narrativas de Chalámov


E aí estão mais uma vez as memórias de nossos atos, de nossas situações vividas, de nossos lamentos, de nossas não tantas, porém saudáveis alegrias. Cada qual as reporta à sua maneira, de Primo Levi, com que facilidade o homem se esquece de ser um homem, a Chalámov, lembre-se do principal: o campo é uma escola negativa para qualquer um (...) quanto a mim, decidi que dedicarei todo o resto da minha vida justamente a essa verdade. Claro que se trata aqui de recordações individuais que se tornam universais pela brutalidade humana, no trato com humanos. 

As histórias de Varlam Chalámov me seduzem em um aspecto simples, o espírito de sobrevivência onde é quase impossível sobreviver. E nos descreve como se dá o inverno, se há nevoeiro gelado, na rua faz quarenta graus abaixo de zero; se o ar da respiração sai com ruído, mas ainda não é difícil respirar, então, quarenta e cinco graus (...) abaixo de cinquenta e cinco graus o cuspe congela no ar". Boris Schnaidermann que faz o prefácio do livro, diz que o leitor deve ficar imerso em um grande cansaço espiritual, não basta a simples leitura. E é assim que ocorre, história após história, ao mesmo tempo que somos capturados pela narrativa de Chalámov, nos cansamos espiritualmente em deparar com tantas situações duras ao extremo para se contornar. 

Soljenitzin ao descrever Um dia na vida de Ivan Denissovitch, expõe o terrível de uma jornada em um dos gulags stalinistas, a amargura e o sofrimento que por sua vez, como nas obras anteriormente citadas, revelam a honestidade dos relatos, deixando o leitor de algum modo ciente pelas coisas reveladas e que tinham de ser ditas. 

Creio que assim ocorre com todas essas narrativas recordatórias, que aportam uma nova dimensão da intolerância humana, ultrapassa os muros desses campos e nos alcança tal qual uma lança no peito. Formas de tormentos humanos que graças à competência em se contar sobre a dor e a torpeza, esses escritores imprimem a ferro e fogo nas páginas de nossa civilização. 

Mas também se pode alimentar a memória considerando as passagens efêmeras que nos encantam. No conto Cartas, do meu recente livro Cenas que se diluem com o tempo, estão ali registrados, em sequência, a beleza das recordações alinhavadas nas cartas de um tal de Vincent ao irmão Theo; de um certo Severino Giovani a sua amada América Scarfó e de uma mulher anônima que reencontra, após décadas, o caderno contendo os poemas escritos a ela por seu amor. Lembranças passageiras que destaquei de outras lembranças apaixonantes e que designam, estas sim, o orgulho de nossa condição humana.



11 agosto 2025

A apresentação de Cenas...


Cenas que se diluem com o tempo, ed. Urutau


Será nesta terça-feira, dia 12, o lançamento de meu quarto livro de contos, Cenas que se diluem com o tempo, resultado de chamada feita pela editora Urutau. Junto ao prazer de lançar o livro publicamente, a satisfação de reencontrar pessoas que fazem parte de minha história, e que seguem de alguma forma próximas de mim. Tudo acaba sendo um privilégio, desde a possibilidade de redigir, preparar e lançar uma obra, a poder estar em contato com o carinho de tanta gente querida. Quem puder, cola lá!

Bar Balcão, Rua Dr. Melo Alves, 150, Consolação, das 18h às 21h. Um lugar muito bacana.

Grande abraço.  



08 agosto 2025

Hiroshima, por Tamiki Hara

 

Gaza, tal qual Hiroshima


Oitenta anos da hetatombe atômica de Hiroshima. Retomo o livro Flores de Verão de Tamiki Hara, um dos poucos sobreviventes, sua descrição límpida, serena, como se tudo não tivesse passado de um lamentável equívoco, ou algo muito previsível de acontecer e portanto, levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. É uma narrativa dentre tantas que poderiam surgir, por toda a tragédia, Tamiki Hara consegue manter uma linha cronológica que de alguma forma situa o leitor diante de tanto horror. A cidade destruída, tal como aparece nas fotos aéreas, tiradas pela força aérea dos Estados Unidos, ocorreram com os escombros já frio. Mas na descrição de Hara, as ruínas estão escaldantes, muitos focos de incêndio e fumaça. O que existia deixou de existir, e essa constatação surgem de modo indireto, quando ele relata que pelo terreno plano, havia chegado a uma rua, ou que o bosque de bambus tinha sido derrubado. 

Talvez seja esse modo oblíquo de descrever que torne o livro fascinante, pois exige que o leitor interprete o que exatamente significava toda a destruição ao redor. No capítulo final, escrito anos mais tarde, é interessante ver as relações que Tamiki Hara cria ao se descrever, ao falar das coisas ao redor, na sucessão delicadamente opressora dos acontecimentos. "O que surge nos meus olhos, porém, é a imagem das pessoas em desalento a observar os trilhos. Sempre penso que perto deles vagueiam as sombras de pessoas com a vida devastada, atiradas num local de onde, ainda que lutem, não conseguem se desvencilhar".

Sobreviver ao ataque atômico exerce uma dor estranha, indescritível como o trágico evento, e permanente, que não se descola por um minuto da consciência de mundo. O sucesso de sua narrativa, a beleza das flores, a reorganização social, os raios de sol, tudo parece exercer uma beleza secundária, que não recompõe mais o modo de ser. E o modo de ser já não se define por "sou isso" ou "sou aquilo", de maneira concreta, como se a fragmentação da cidade só lhe permitisse ser as coisas volúveis de um sentimento passageiro. Assim, tudo é perceptível de modo suave, com um valor indispensável, uma rajada de vento, o aroma primaveril sussurrando poemas, pinturas e músicas, "Apenas o ardor da vida emite um súbito raio de luz, e a cotovia, tendo escapado aos limites humanos, se converte em estrela cadente". 

A tragédia criminosa de Hiroshima não deixa de pulsar no coração dos seres sensatos, assim como Gaza o faz em nossos dias.