24 abril 2025

Milei et caterva


Nas ruas da Itália


Tantos absurdos cometidos, que um a mais, outro a menos apenas reforçam a pobre liturgia dos eventos. Disso se trata o dia a dia no neoliberalismo, o que é fato em um momento, no outro deixa de sê-lo, e não raro, da forma mais patética e desprezível. Então, não é problema para um chefe de estado desancar com outro, de maneira vil, para depois desejar acompanhar pessoalmente seu funeral. E vai para o funeral levando uma comitiva imensa, desnecessária, em um verdadeiro voo da alegria. No meio dessa comitiva, a ministra de segurança que na véspera cerceou (e nas semanas anteriores brutalizou) com uma imensa tropa policial às manifestações de aposentados pelas ruas da capital, como a vigiar um inimigo ensandecido, que ameaça a segurança nacional. Desta feita não houve balaços, ainda que tenha comparecido muito gás pimenta. Também na comitiva comparece o porta-voz, aquele que regularmente porta mensagens dolorosas para a economia da nação, e que pretende surfar em alguma onda para alçar o governo da cidade autonoma, nas eleições vindouras. Nenhum mérito justificável, como gosta de proclamar aos quatro ventos, como bom neoliberal que é. Na comitiva vai a irmã do chefe de estado, a voz indispensável da consciência do mesmo, motivo mais do que suficiente para confirmar sua presença na viagem. Ao que parece, não estará presente nenhum dos cães que orientam ao chefe de estado, e temo por essa ausência sobre seu equilíbrio emocional. A esperança é que o cão defuntado possa inspirar com seus latidos do além o pobre presidente, tão solitário, tão infeliz.

Quanto ao ex-presidente eleito deste país, ainda internado (mas passa bem, está em franca recuperação), este recebeu a intimação em seu leito hospitalar. Declarou todos os impropérios golpistas antes e durante o seu governo (há provas documentais substanciosas), agora, acuado em sua insignificância, se declara inocente. Não obstante, o julgamento no STF prossegue, e ao que tudo indica, fará grande justiça ao povo deste país, porque seus atos foram covardes, e porque seus atos foram criminosos contra a democracia deste país.

Gaza continua sob ataque, e não vejo como possa encontrar a paz. A pax neoliberal preocupada com a livre concorrência, insinua que nada de mais ocorre nos territórios ocupados, sobretudo em Gaza. Além dos ataques aéreos, o zumbido incessante dos drones de controle inquietam a população palestina, que não tem sossego, que não podem ir e vir, que não desfrutam da possibilidade da livre concorrência. Uma violência arbitrária, que não tem limites e não se extinguirá. Um ano e meio de destruição, de mortes, de crimes de guerra. 

O sionismo nunca esteve tão próximo e tão longe de alcançar seus propósitos. 


19 abril 2025

De Brecht, por Osvaldo Bayer




Vi recentemente a declamação de Elogio ao Estudo de Bertold Brecht por um Osvaldo Bayer nonagenário, com a força e entonação devidas, sem a falsa emoção que acompanha os manifestos frívolos. Bayer se detém a cada estrofe, como a firmar a beleza do texto, repetindo sempre o verso Prepárate para gobernar (Prepara-te para governar).

Desde que travei contato com sua literatura, isso por volta de 2007 quando estive na Argentina e adquiri seu formidável Patagonia Rebelde, acompanhei a trajetória combativa, a vida, a luta política, a produção de textos históricos até sua morte aos noventa e um anos em dezembro de 2018. Sempre alimentei um grande respeito por suas ideias, pelo enfrentamento corajoso contra os governos autoritários, que ajudou a inspirar minha visão política de mundo. 

Abaixo, transcrevo o texto de Brecht com minha tradução.


Elogio do Estudo

Aprende o mais simples.
Nunca é tarde para aqueles 
cujo tempo chegou!
Aprende o alfabeto. Não basta
mas aprenda-o! Não te desanimes.
Começa já! Deves conhecê-lo todo!
Prepara-te para governar.

Aprende, marginal, homem do campo,
aprende, ocupante do cárcere,
aprende, mulher atada à cozinha,
aprende, sexagenária!
Prepara-te para governar.
Vem para a escola, homem sem teto.
O saber é para ti que sentes frio.
Faminto: toma com força o livro, é uma arma.
Prepara-te para governar.

Não temas em perguntar as coisas, camarada!
Não te deixa influenciar,
descobre tu mesmo.
O que não sabes por conta própria
não o sabes.
Revisa a conta.
És tu o que a paga.
Ponha o dedo sobre cada cifra.
Pergunta: Como se chegou até aqui?
Prepara-te para governar.

(Bertold Brecht)

https://youtu.be/9Wv-yYIuGNo?si=V2SOFMscqT4n9wu1



14 abril 2025

Alejo Carpentier


A carne do nosso real maravilhoso


O segmento abaixo é uma transcrição traduzida do espanhol do denso ensaio de Roberto González Echeverría, Alejo Carpentier, sobre o autor cubano, publicado em Narrativa y critica de nuestra America, pela editorial Castalia, Madrid, em 1978. O volume traz um conjunto de textos sobre diversos escritores latino-americanos que naquele momento se destacavam com suas narrativas. Optei pelo texto sobre Carpentier, um escritor que entusiasma pela descrição do barroquismo presente em nosso continente (e nesse sentido, muito bem abordado por Echeverría), ao trazer esse elemento expressivo da arte na composição do caráter do nosso povo, bem como o componente político arraigado nas múltiplas maneiras dele se realizar na realidade cotidiana. Como Echeverría bem observa, "Esse barroco é a nova metáfora carpentiana para o americano, que será a mistura, o sem estilo e sem método".

Além do que, Carpentier merecia, neste pequeno e insigne blog, uma lembrança ainda que discreta. Sem dúvida, o texto de Echeverría tem o mérito de abarcar com a devida profundidade o imenso narrador que foi Alejo Carpentier, mas não seria possível trazer neste espaço o ensaio em toda sua extensão, o que sem dúvida nos faz perder muito. Fiz a opção por traduzir a parte final, para ainda saborear a parte final deste importante estudo crítico. 

Fico particularmente orgulhoso em trazer um pouco que seja sobre a obra e o método de Carpentier; as falhas no ritmo ou na compreensão do texto ficam, por óbvio, sob minha exclusiva responsabilidade. Espero que apreciem.
 
(...)
"O recurso do método, que à maneira de Valle Inclán em Tirano Banderas e Asturias em O senhor presidente, destaca a figura de um ditador latino-americano, é esse futuro que a Revolução francesa anunciava. O título desta novela é, desde logo, uma paródia do de Descartes; mais do que uma paródia, é uma mescla de Vico com Descartes. Os recursos da história devem ser vistos, aqui, como as recurvas da mesma. O ditador hispano-americano regressa à França, de onde surgiu em princípio as bases de sua duvidosa legalidade, para dedicar-se desenfreadamente aos prazeres da carne, e ao labor de converter-se em uma espécie de déspota ilustrado, embora degradado; o ditador dorme em uma rede em seu suntuoso piso parisiense. Concerto barroco, o último romance de Carpentier, marca um retorno similar. Aqui vemos a influência da América na Europa. O barroco será assim o desarranjo do classicismo europeu como resultado do heterogêneo latino-americano: o Montezuma de Vivaldi, o esboço em gesso de tradições e traições, anuncia o jazz e outras manifestações exógenas do tipicamente novo do Novo Mundo. Esse barroco é a nova metáfora carpentiana para o americano, que será a mistura, o sem estilo e sem método. Nos últimos dois romances, surge um elemento novo em Carpentier, o humor.

García Márquez declarou que quando leu O século das luzes jogou no lixo o que tinha escrito de Cem anos de solidão e começou de novo. A influência de Carpentier sobre os novos novelistas tem sido enorme, às vezes, como no caso de García Márquez, por estímulo positivo, e outras, como em Severo Sarduy (quem parodia Intimidação, em Gestos), por estímulo negativo. Em prosa ficcional Borges e Carpentier são as figuras mais importantes na primeira metade do século XX na América espanhola. Borges por haver levado sempre até suas consequências mais radicais os problemas mais difíceis do ofício; Carpentier por ter moldado a uma temática latino americana experimentos novelísticos de alta envergadura, e sobre tudo, por ter feito da história latino americana seu tema principal. Além do que, por essa "curiosa indefinição" que o achacou Marinello em 1937 (no livro Uma novela cubana, publicado pela UNAM, México), Carpentier logrou dar causa à mais candente problemática hispano americana: a da falta de identidade, e conseguiu provar que, pelo menos em literatura, essa indefinição é o que define o americano. Ainda que, talvez, seja precisamente a indefinição o que defina a literatura, e então o exemplo de Carpentier será muito maior. 

Igualmente exemplar foi a entusiasta e laboriosa adesão de Carpentier à Revolução Cubana, que por fim lhe deu pátria desde a qual orientou suas multiplas peregrinações, e demonstrou a possibilidade de superar as contradições entre a vanguarda artística e a política.