Eis a descoberta de um escritor belíssimo, que aborda uma temática tão pavorosa, e que a partir de sua escrita, é possível entendê-la para além do que, para nós ocidentais, é tratada de uma tragédia sem sujeitos, sem responsabilidade de um governo, mas proporcionada pelo efeito da bomba atômica. Enola Gay é o nome da mãe do piloto que nomeia o avião que despejou Little Boy, metáforas desatinadas que causaram o infortúnio mortal no inimigo. Não conhecia Tamiki Hara nem seu sensível opúsculo, meras 129 páginas, dividido em quatro partes, quatro textos autônomos e que descrevem em sucessão cronológica o visto e o sentido a partir de 6 de agosto de 1945 em Hiroshima.
O romance, se é que podemos enquadrar a narrativa nesse gênero, descreve a vida antes, no dia e nos momentos posteriores da hecatombe. Hara não se perde em moralismos acusatórios contra o governo estadunidense, o grande responsável pela hecatombe. A intenção no relato é descrever a experiência vivida daquele cenário impensável, em que a população japonesa, a reboque das decisões suicidas de seus governantes, procurava cada qual a sua maneira sobreviver dia após dia. Os desdobramentos em Iwo Jima anunciam as dificuldades crescentes, em que cada um intui o destino do país. Os alarmes regulares fazem com que as pessoas busquem abrigo em locais fora da cidade, as casas já não são mais seguras diante dos brutais bombardeamentos sem oposição. Vivia-se ao sabor amargo das incertezas, em circunstâncias cada vez mais semelhantes à idade da pedra. Ouvia-se os informes do andamento da guerra pelo rádio e todos perscrutavam os céus, na dolorosa expectativa de um ataque massivo das B29.
O segundo texto, Flores de verão, que dá nome ao livro, mostra de modo descontínuo, os efeitos do dia do ataque. Aqui em primeira pessoa, o autor movimenta-se pela cidade, participa do cotidiano relatando os efeitos da explosão, seja no espaço urbano, seja com as pessoas, sem a preocupação em fixar referenciais, muito provavelmente porque todos eles desapareceram. Seus familiares de um modo geral conseguem escapar e tentam retomar a vida. O final da guerra se anuncia no horizonte, mas as duras cicatrizes fincaram suas marcas em Hiroshima.
O que difere a narrativa de Hara dos registros ocidentais está na colocação dos sentimentos nas palavras escolhidas, que de algum modo, procuram dar sentido ao que aconteceu. Não há rancor, mas uma inquietude sobre o que tudo aquilo significa. Há o olhar realista de uma destruição vista por dentro. O que é possível fazer diante de uma situação dada, em que há sofrimento, perdas e nenhum futuro previsível? O último texto, O país do meu mais sincero desejo, expõe as impressões do autor anos mais tarde, próximo do seu suicídio. Há uma serenidade incômoda, cuja tensão remete sua reflexão para o passado, no desejo de compreender o futuro. É o capítulo mais poético, talvez pela necessidade de encontrar novas maneiras de sobreviver. "De novo, sinto calor e frio se alternarem sem parar, e os sinais da aproximação da Primavera me deixam entorpecido. Estou prestes a sucumbir facilmente às seduções saltitantes, leves, gentis e habilidosas dos anjos. Os raios de sol transbordam de prenúncios de um festival deslumbrante, quando as flores vão desabrochar todas a um só tempo e os pássaros vão começar a cantar. (...) A Primavera aclamada em poemas, pinturas e músicas sussurra para mim e me deia maravilhado. Contudo, estou com frio e meio triste".
Penso que Tamiki Hara não deixou de ouvir outros sussurros, vindos das gentes que sofriam a queimação do corpo, a agonia lancinante, o brilho ofuscante da explosão mortal, tão relatado e não visto por ele. Sussurros que o estremeceram a cada lembrança, e tudo quanto pôde ver e ouvir foi de um peso insondável, que o impediu de viver uma longa e saudável vida.
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