12 abril 2023

Sobre as sensíveis apreensões

 

Chuva em Lima, em um dia de janeiro de 1970

Em meio a uma entrevista recente sobre meu romance a ser lançado, Um longo dia na vida de Ângelo Domani, houve uma pergunta simples, cujo sentido me ajudou a conceituar amplamente os detalhes da narrativa: Buganvília fora criada como palco para o meu personagem principal, ou se tratava de uma experiência pessoal em algum lugar no mundo? Pensei um pouco antes de dizer que a cidade de fato existia, que podia ser qualquer uma do interior de nosso Brasil, dadas as características em comum que apresentam, ou seja, pequena, pouco movimento, trabalhadores simples, rodoviária, uma igreja da matriz, praças, barbearias, confeitarias, paralelepípedos. 

Sobre as descrições, algumas mais precisas, outras mais ligeiras, elas expressam o palimpsesto de impressões retidas ao longo da vida, não apenas na Buganvília que de fato conheci, mas em relação às muitas outras cidadezinhas que vivenciei, sobretudo em minha juventude. Cada equipamento urbano, cada sorriso ou gesto popular, sinalizam alguma experiência pessoal com esses lugares tão parecidos, é como se ao longo da escrita, eles se revelassem em suas minúcias, para que eu pudesse desenhar com mais apuro esse espaço romanceado. O que ocorre, e acrescentei isso com certa dor na alma, é que serão cada vez menos as percepções sensíveis descritas com base na memória, inspirados no silêncio e na lentidão. 

A vida solicita movimentos mais urgentes, e no espaço urbano parece menos comum apreciar os detalhes, conviver com as circunstâncias, registrar o fenômeno sem diferenciá-lo da cadeia de fenômenos que compõem um percurso. O olhar inquieto não mais retém, mas dissolve as apreensões momentâneas em um feixe de gestos desperdiçados e desnecessários. Consequentemente, os gestos ambicionam resultados mais acabados, e nesse movimento fica implícito o descarte dos instantes, do real significado em se vivenciar uma experiência boa ou ruim. A pressa contemporânea está em todos os rincões, como objeto de todas as ações, e sem reafirmar que bordejamos o desconforto, tornamo-nos seres menos suscetíveis e tolerantes.

E finalizei minha resposta ao dizer que não tenho certeza de que meu romance será lido com prazer, porque ele se define, muito simplesmente, pela ausência de muitas coisas e pela presença de poucas. O personagem não se encontra consigo mesmo porque não consegue apreender o mundo ao redor, e isso, por si só, traz desassossego. O que ele dispõe ao alcance é seu percurso, seu caminhar infindável por lugares que o fazem compreender coisas de seu passado ou especular sobre seu futuro. O leitor travará um árido contato com uma apreensão de mundo tensa, inquieta, por vezes impiedosa, sem contar com cálidos sentimentos para redimí-lo. À busca incessante, sobrepõe-se a falta. E para se chegar a esse estado de coisas, foram necessários mais de vinte anos de escritura, de recortes, reflexões, comparações, dúvidas, turbulências, angústia, a proeminência do outro. Em outras palavras, coabitar com um humanismo sem recompensas. 

Tudo me parece tão desconforme à existência de nossos dias, a começar pelas apreensões atentas e sensíveis do mundo, que não vejo o porquê desse livro receber alguma consideração.


 

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