01 agosto 2020

Algumas considerações tardias

Cracóvia, 1994


As notícias falsas que inundaram o mundo, e em especial o Brasil no tempo das últimas eleições, seguem lentamente seu destino ominoso, a acossar de modo implacável as pessoas, demolidas em seu cotidiano pelo temor, pela torpeza fútil que não se detém. Quando se espera que a justiça aja como deve ser, subitamente o silêncio inadequado prevalece, a dar tempo e espaço para as ondas de crescente intolerância alcance suas praias e promova sua destruição. 

O mais grave desse nosso tempo talvez seja isso, a omissão de quem poderia agir, de quem poderia reconduzir a razão. Vivemos um presente que renega o processo histórico e desaprende com o futuro. Mergulhamos nos desvãos do ódio, convidados por Caim e sua legião de imprestáveis servidores, prestes a realizar a travessia com Caronte, e desembarcar nos primeiros círculos do inferno. As notícias falsas circulam, pois, em um ambiente propício, a verter cuidadosa destruição.

Aproximamo-nos do quinto mês de um confinamento que se dissipa gradualmente. Sem um plano para conter o contágio e as mortes, o desgoverno e seus cúmplices tripudiam fornecendo cloroquina e atendendo os pleitos do poder econômico e financeiro. Promovem uma precipitada abertura dos serviços, sem qualquer interesse em regulamentar as aglomerações públicas, enquanto a contagem tétrica nos aproxima dos cem mil óbitos. 

Isso não causa qualquer estranheza ou desolação. Apatetados, entorpecidos, sem uma consciência crítica a nortear ações consistentes, é mais cômodo deixar-nos seduzir por uma modorrenta flauta de Hamelin a caminho do precipício. Imobilizados e entorpecidos pelas contradições do sistema de mentiras, tornamo-nos presa fácil das garras de um capitalismo agressivo, cujos ditames engendram sua ordem autoritária. 

Não há desemprego, não há contágio, não há farsa que rebente o sorriso do cão e faça interromper o cortejo fúnebre.

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Em tempo:

Retomo nas mãos o livro de Sérgio Ricardo (1932-2020) que girava entre o sala de estar e a mesa de trabalho, na espera de alguma atenção de minha parte. Retirei da estante dos livros abandonados quando voltei a assistir o documentário Pássaro do Morro, de Hilton Lacerda e Joaquim Castro, sobre sua vida. 

Nunca dediquei atenção especial a este mestre brasileiro das artes. Foi ator e diretor de cinema nos tempos do Cinema Novo, compositor de mão cheia, poeta, dramaturgo. Foi paulatinamente apagado da memória de nossa cultura pela ação premeditada de governos e veículos midiáticos. De uma atuação intensa nos anos 1960 e 1970, sua consciência política foi suficiente para ser deixado de lado.

O livro, sua autobiografia Quem quebrou meu violão, revela não apenas algo de sua rica passagem pela cultura brasileira, como revela a qualidade de sua escritura e a força de suas palavras. Fiquei extasiado com seu relato intransigente, que retoma a lembrança das amizades, os percalços com a censura, sua criatividade poética ao descrever as letras de diversas composições. Um livro poderosamente belo e inquietante.

Termino esta postagem com uma delas, que me parece muito sugestiva, triste e ao mesmo tempo desafiadora.

Em noite de luar no céu

Maria do Grotão, ai, se deu

um cão latindo ao longe

e Zé Tulão derrubou sua fulô

os gemidos de Maria

só quem pôde ouvir

foi mandacaru

Dorme que só é bom sonhar

Sonha que o mundo vai se acabar

que a gente foi pra longe

onde ninguém tem carência de levar

o que a gente fez nascer

com trabalho e dor.

morte e amor.

 


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