Cracóvia, 1994 |
As notícias falsas que inundaram o
mundo, e em especial o Brasil no tempo das últimas eleições, seguem lentamente
seu destino ominoso, a acossar de modo implacável as pessoas, demolidas em seu
cotidiano pelo temor, pela torpeza fútil que não se detém. Quando se espera que
a justiça aja como deve ser, subitamente o silêncio inadequado prevalece, a dar
tempo e espaço para as ondas de crescente intolerância alcance suas praias e
promova sua destruição.
O mais grave desse nosso tempo talvez seja
isso, a omissão de quem poderia agir, de quem poderia reconduzir a razão.
Vivemos um presente que renega o processo histórico e desaprende com o futuro.
Mergulhamos nos desvãos do ódio, convidados por Caim e sua legião de
imprestáveis servidores, prestes a realizar a travessia com Caronte, e
desembarcar nos primeiros círculos do inferno. As notícias falsas circulam,
pois, em um ambiente propício, a verter cuidadosa destruição.
Aproximamo-nos do quinto mês de um
confinamento que se dissipa gradualmente. Sem um plano para conter o contágio e
as mortes, o desgoverno e seus cúmplices tripudiam fornecendo cloroquina e
atendendo os pleitos do poder econômico e financeiro. Promovem uma precipitada
abertura dos serviços, sem qualquer interesse em regulamentar as aglomerações
públicas, enquanto a contagem tétrica nos aproxima dos cem mil óbitos.
Isso não causa qualquer estranheza ou
desolação. Apatetados, entorpecidos, sem uma consciência crítica a nortear
ações consistentes, é mais cômodo deixar-nos seduzir por uma modorrenta flauta
de Hamelin a caminho do precipício. Imobilizados e entorpecidos pelas
contradições do sistema de mentiras, tornamo-nos presa fácil das garras de um
capitalismo agressivo, cujos ditames engendram sua ordem autoritária.
Não há desemprego, não há contágio, não
há farsa que rebente o sorriso do cão e faça interromper o cortejo fúnebre.
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Em
tempo:
Retomo
nas mãos o livro de Sérgio Ricardo (1932-2020) que girava entre o sala de estar e a mesa
de trabalho, na espera de alguma atenção de minha parte. Retirei da estante dos
livros abandonados quando voltei a assistir o documentário Pássaro do
Morro, de Hilton Lacerda e Joaquim Castro, sobre sua vida.
Nunca
dediquei atenção especial a este mestre brasileiro das artes. Foi ator e
diretor de cinema nos tempos do Cinema Novo, compositor de mão cheia, poeta,
dramaturgo. Foi paulatinamente apagado da memória de nossa cultura pela ação
premeditada de governos e veículos midiáticos. De uma atuação intensa nos anos
1960 e 1970, sua consciência política foi suficiente para ser deixado de lado.
O
livro, sua autobiografia Quem quebrou meu violão, revela não
apenas algo de sua rica passagem pela cultura brasileira, como revela a
qualidade de sua escritura e a força de suas palavras. Fiquei extasiado com seu
relato intransigente, que retoma a lembrança das amizades, os percalços com a
censura, sua criatividade poética ao descrever as letras de diversas
composições. Um livro poderosamente belo e inquietante.
Termino
esta postagem com uma delas, que me parece muito sugestiva, triste e ao mesmo
tempo desafiadora.
Em
noite de luar no céu
Maria
do Grotão, ai, se deu
um
cão latindo ao longe
e
Zé Tulão derrubou sua fulô
os
gemidos de Maria
só
quem pôde ouvir
foi
mandacaru
Dorme
que só é bom sonhar
Sonha
que o mundo vai se acabar
que
a gente foi pra longe
onde
ninguém tem carência de levar
o
que a gente fez nascer
com
trabalho e dor.
morte
e amor.
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