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Bruges, 2010 |
Nestes dias completei cinco meses de relativo
isolamento: só saio para as compras de alimentos. O futebol recomeçou há duas ou três semanas sem despertar
meu interesse. As atividades esportivas reiniciam aqui e no mundo sem público,
sem animação. Torneios de tênis, de vôlei, de futebol, até essa coisa patética
do UFC, o símbolo por excelência do neoliberalismo predador. Não se retoma o
desejo de viagens, ou mesmo de ir aos cafés, cinemas ou restaurantes. Essa falta de
desejo sem dúvida serve à ideologia dos novos tempos, o isolamento das pessoas,
servidas por múltiplos cardápios de desinformação. As escolas não retomaram as
aulas presenciais e é quase certo que não as teremos antes do próximo ano. Tudo
parece capengar, amparado por práticas sociais à distância.
A literatura tem ocupado um tempo importante,
finalmente. Tenho lido, tenho pesquisado, tenho assistido vídeos com os grandes
escritores latino-americanos. Isso tem me inspirado a escrever, a corrigir meus
textos já escritos, a enviar para publicação em revistas literárias, a
participar de concursos. Ainda não escrevi nada novo, mas tenho pelo menos uma
boa ideia para uma narrativa e uma boa ideia para finalizar uma nova coletânea.
Falta concluir meu romance, Fragmentos
de uma jornada sentimental (ou o título original, Jornada em
Cambeville) que a bem da verdade falta bem pouco, e publicar meu livro de
contos breves, O fragor silencioso de cada dia, que me parece
concluído, recebendo de quando em quando alguma correção extemporânea. É provável que seja meu trabalho mais afetivo, considerando a
gama de impressões sensíveis que percorrem a coletânea e imprimem um caleidoscópio bastante humana sobre a vida cotidiana.
Também tenho um volume de crônicas que considero concluído, O que aparentemente nos resta, que cobre o período de 2016 a 2019. E me resta concluir uma peça, Sabra e Chatila, gostaria de desenvolver um novo ato, cuja história se dá um complemento ao martírio palestino. E é tudo. Ao todo, uma produção literária tão curta, tão restrita, tão
frágil. Ouvindo e lendo autores como Cortázar, Gabo Márquez, Borges,
Carpentier, aprendo tardiamente sobre a coragem de se entregar de corpo e alma
a um grande projeto, produzir uma literatura caudalosa, consistente.
Cada um
deles se entregou com afinco ao desejo de escrever e tornar-se um escritor com
uma obra respeitável. Mas para isso se dedicaram de maneira implacável a esse
objetivo, rompendo com meias-palavras e temores vãos. Sofreram na pele a
escassez de recursos, o exílio, o cansaço, mas com dedicação construíram seus
mundos maravilhosos, com os quais fundiram a fertilidade de seus imaginários
com o absurdo da realidade vivida. E é tão belo percorrer a biografia de cada
um, assim como as narrativas que deixaram.
Julio Cortázar me tomou um bom tempo neste último mês. De
modo quase obsessivo mergulhei em seus contos, em suas entrevistas, em vídeos
biográficos, que me desvelaram uma personalidade frágil e ao mesmo tempo
decidida, com um desejo inquebrantável de adentrar o mundo literário, lendo,
escrevendo, sacrificando a própria vida com coragem e determinação. Escrevia
longamente, em seus pequenos cômodos, sem que nada o detivesse, nem mesmo os
rituais impositivos da vida, como as relações humanas. Tudo que contribuía para
o complemento de seu projeto literário foi bem-vindo, e não se pode dizer que
tudo foram flores.
De todo modo, tratava-se de um outro mundo, onde era
possível viver em Paris com mínimos recursos, e ali travar contato com uma gama
de outros grandes intelectuais, o que por certo só alimentava a imaginação.
Essa cumplicidade entre artistas, que se desdobrava em estimulantes e
inspirados desafios pessoais, certamente foi a marca de uma época. Hoje não é
mais possível, pela literatura, encontrar ambiência tão benéfica à inspiração.
Hoje não é mais possível passar horas e dias atravessado por uma obra em
construção, com a compreensiva determinação de outrora.
O capitalismo em seu
estágio mais exploratório, demanda cada vez mais produtividade, ainda que de um
artista ou um intelectual. De outra parte, as generosas subvenções, ou na ausência
destas, as generosas recepções aos trabalhos realizados, só ocorrem para
aqueles que desfrutam de algum renome. Em outras palavras, o acolhimento da
obra, em seu estágio de construção, não merece mais a atenção merecida. O
trabalho realizado só desperta alguma atenção se estiver talhado ao sucesso. O
mundo editorial está em plena falência e os leitores potenciais se voltam para
as facilidades – ou as delícias – do dinheiro. O trabalho não tem como redundar
em algo que possa não trazer resultados financeiros. O sonho, o devaneio, a
imaginação, estão excluídos em nome do investimento que redunde mais-valor.
Tive em certo momento de minha vida a possibilidade
de aproveitar o tempo bondoso e aprofundar leituras, estudos, escrituras.
Confesso minha propensão à preguiça, que persiste até hoje. Lá no final dos
anos 1970 e começos dos anos 1980, por toda a transformação política do país,
pela valorização da cultura, pelo renascimento de um jornalismo crítico e
ansioso por relatar novidades, houve uma janela de possibilidades, um período
em que seria possível sonhar com um país menos burocrático. Essa bolha de
desfrute rebentou e prevaleceu aquilo que jamais nos abandonou, o preconceito.
O mundo repercute o que deseja oferecer, os signos frios do neoliberalismo, produzindo
espelhos para que todos vejam reproduzidos o sucesso de uns poucos eleitos. Em
meu pequeno apartamento, com esse distanciamento social, consigo reabilitar a
generosidade da literatura, ainda que ela não possa oferecer nada além de um
restrito bem-estar.
(Atualizado em 19.08.2020).