22 julho 2020

Poesia 01


Nova Iorque, 1890


LAS BABAS DEL DIABLO II

                                    (versão escatológica)

 

  

Cagareis vosso caráter,

dareis como palavra vossa merda... 

      

ESCROTICE


exortar         exalar

exegese exequível 


EXÍCIO

 

       as exéquias.

 

                                  

                                   (junho/1995)




03 julho 2020

Quase nada a acrescentar


Strasburgo, 2000

Chegamos ao final de mais uma semana, sem grandes modificações no panorama geral. As crises política e econômica, esta agravada pela ocorrência da pandemia, seguem a pleno vapor. Não seria exagero dizer que o ano de 2020 está perdido, no que diz respeito a uma vida social saudável. Talvez ainda demore o contato com as pessoas queridas, meus pais, minha irmã, minha amada Moniquinha e demais amigos. O convívio livre, aberto, despreocupado, como conhecíamos até o princípio deste ano, dá mostras que irá custar a voltar. Tenho prometido à Mônica que delimitei um prazo, que na pior das hipóteses em dezembro nos encontramos para a passagem de ano. Falei isso sem qualquer comprovação científica. Na Nova Zelândia já faz algumas semanas que a vida retornou ao normal, mas lá as providências foram fortes desde o início. Havia um governo decidido a tomar iniciativas, e favoráveis ao bem-estar da população, e o ônus tornou-se dividendo. 

Por aqui, não há ônus nem dividendo, pois a proposta principal desse desgoverno parece ser bem-sucedida em meio ao caos, ou seja, a destruição das instituições, a destruição da cultura, a destruição da educação. O punhado de irresponsáveis inconsequentes – sem que sejam imbecis, pois sabem cumprir suas fúteis tarefas políticas – destroçam o tecido social e junto, o discernimento do que é importante para a sociedade. Principalmente esse capitão desregulado que atua aos trancos e barrancos, entre demissões de ministros, disputas com a mídia corporativa e decisões personalistas, escondendo com isso os avanços de uma política neoliberal de privatizações, ou de destruição das empresas públicas, patrocinada por seu ministro Paulo Guedes.

Assim, estamos assentados à beira de um barranco, e a cada sacudida, rolamos um pouco mais ribanceira abaixo. O mais doloroso de tudo é a destruição de nossa imagem no exterior, de nossa diplomacia, que nada faz senão desfazer relações e acordos. Há nisso uma subordinação canalha, obviamente conduzida por esse testa de ferro de nome Ernesto Araújo, que como boa parte do ministério, se satisfaz em seguir um ordenamento sem profundidade, imerso em sua opacidade subalterna, onde seu principal esforço parece se comprazer em sorrisos tolos e falas abjetas. Não representa uma nova linha no Itamarati, mas ao contrário, é a nulificação de tudo o que ele representou no cenário internacional. Essa gente não tem brilho nos olhos, um detalhe subjetivo, mas que parece decisivo para investigarmos a patetice paralisante que tomou conta do país, e que deve permanecer por mais dois anos. Já não tenho mais confiança no que pode acontecer vindo das urnas. Uma parte do país se acomoda em torno desse estado vegetativo, quero dizer, parcelas de todos os estratos sociais, e que parecem não se dar conta do vexame, da catástrofe civilizatória. 

É o que disse no começo, perdemos nossa capacidade de discernimento do certo e do errado, do joio e do trigo. As falas atravessadas, oriundas dos procedimentos criminosos dos gabinetes do ódio e embasadas em falsas informações, infectam os canais digitais de comunicação pessoal, desencadeando uma estranha normalidade do mal, algo tão grave e similar ao controle da segurança do Estado por milícias organizadas. Ou pior, o conhecimento científico acumulado ao sabor dos sábios piratas neopentecostais, que destroçam Darwin em nome do criacionismo, que condenam a diversidade humana em nome de uma interpretação obtusa da palavra sagrada. Nesse quesito, o fundamentalismo que se impõe é tão ou mais trágico que o preconizado pelos Bins Ladens do islamismo, posto que é edificado para beneficiar um punhado de fariseus milionários.

Ouço John Zorn pelo Youtube, Nove Cantici Per Francesco D’Assisi, antes de preparar meu saboroso jantar, arroz integral, feijão preto, pimentão assado com queijo, ovos mexidos e água. O que tem me animado é ler e escrever. Ler teses e dissertações de alunos para bancas e escrever meus textos, publicando-os na medida do possível. Tive dois contos recém-publicados em revistas de literatura eletrônicas, e ontem enviei um texto acadêmico do qual gosto e que será publicado em uma coletânea de artigos, em Porto Alegre. E tenho a reorganização de meus textos do doutorado e do mestrado, e já os enviei para uma editora digital argentina. Também reorganizo meus contos, meu romance, minha peça sobre a Palestina. Esse tempo de imobilidade me permite dormir, falar com meu amor, ler, escrever e fazer minha comida. Tomara que possamos superar esse estágio, para um novo e estimulante salto adiante.  



02 julho 2020

Eduardo Galeano, uma poesia


Eduardo Galeano

Quando adquiri meu primeiro livro de Galeano, As Veias Abertas da América Latina - não saberei dizer se adquiri ou se expropriei de uma livraria de um centro comercial - confesso que não sabia praticamente nada deste maravilhoso autor, que nas décadas seguintes, lentamente, ganharia minha profunda admiração. Ainda não havia conhecido o Uruguai, mal relacionava os problemas políticos que, então, açodavam o Cone Sul com a distinção mais cruel dos regimes ditatoriais, a tortura e a remoção de pessoas para não mais serem encontradas. Estávamos no último ano da década de 1970 e muita coisa ainda haveria de ocorrer até tomar consciência do drama de nuestra América Latina.

Em um certo sentido o texto de As Veias Abertas... foi a porta de entrada para um primeiro contato. Passei a estudar o período, em seguida viriam minhas primeiras viagens ao Uruguai e Argentina, e então estava maduro para autores como Benedetti, Cortázar, Márquez. Só mesmo na primeira década deste século foi que mergulhei de maneira profunda e arrebatada nas aventuras do realismo maravilhoso latino-americano, pois ele pressupõe todos os elementos contraditórios que compõem nossa realidade. E não demorou para que agregasse a minha pequena biblioteca, novos autores de nosso continente espoliado, Onetti, Roa Bastos, Fuentes, Dario, Storni, Rulfo, e não só os literatos, como os sociólogos, historiadores, políticos, Rama, Mariátegui, Romero, além daqueles que representam a síntese de nossa tragédia barroca, Carpentier, Lezama Lima.

Fiz muito pouco com tantos autores maravilhosos, que de algum modo ajudam a compreender minhas raízes, minha relação com este continente antropofágico e mestiço. Foram leituras limitadas até aqui, e míseras linhas escritas sobre o que somos, como começamos e para onde enveredamos. Mas certamente Eduardo Galeano tem sido um bom companheiro de meus pensamentos nestes dez últimos anos. Nestes dias de confinamento pelo vírus, agrupo seus livros que disponho para declamar seus escritos para minha tão amada Moniquinha, em nossa rádio Balmaceda, em nosso programa diário La Noche con Poesia. Declamá-lo, assim como outros autores e autores em na língua espanhola nos acalenta, além de adormecer lindamente meu amor.

Abaixo, uma de suas pequenas peças em prosa, dedicada a outro admirado autor, que conheci em minhas andanças por Buenos Aires, o poeta Juan Gelman.


GELMAN 

O poeta Juan Gelman escreve elevando-se sobre suas próprias ruínas, sobre sua poeira e seu lixo.

Os militares argentinos, cujas atrocidades teriam provocado em Hitler um incurável complexo de inferioridade, o pegaram onde mais dói. Em 1976, sequestraram aos seus filhos. Levaram-nos em lugar dele. Torturaram a sua filha Nora e a soltaram. Ao filho, Marcelo, e a sua companheira que estava grávida, assassinaram e os fizeram desaparecer.

No lugar dele, levaram seus filhos porque ele não estava. Como se faz para sobreviver a uma tragédia assim? Digo: para sobreviver sem que se apague sua alma. Muitas vezes me fiz essa pergunta, nestes anos. Muitas vezes imaginei essa horrível sensação de vida usurpada, esse pesadelo do pai que sente que está roubando ao filho o ar que respira, o pai que no meio da noite desperta banhado em suor: Eu não te matei, eu não te matei. E tenho me perguntado: se Deus existe, por que passa despercebido? Não será ateu, Deus?


(Extraído do texto original, El libro de los Abrazos, Catálogos Editorial, BsAs., 2007).