21 agosto 2019

600a. postagem



E o blog Chá nas Montanhas alcança sua seiscentésima postagem, um pouco antes de comemorar onze anos ininterruptos de publicações. Jamais imaginei lá no início que chegaria tão longe. As dificuldades de se postar regularmente são superadas pelo prazer e quase necessidade de publicar as impressões pessoais a respeito do mundo que nos cerca, dos acontecimentos sociais e dos eventos pessoais, das lembranças recuperadas, do futuro como perspectiva imediata. A vivência cotidiana não cessa de alimentar a alma e o fígado, quase que solicitando algum tipo de análise. 

Descrever os fatos a partir de minha compreensão de mundo tem sido um exercício indispensável, por muitas vezes este espaço foi o canal solitário de minha voz, de como absorvia os golpes políticos, de como exultava as conquistas pessoais ou coletivas. Também foi aqui que pude comemorar a memória de pessoas e circunstâncias muito especiais, que dizem respeito a minha maneira de ser no mundo. 

Esses anos foram de transformação pessoal, de aprendizado social, de paixão e de desprezo, e o que poderia se tornar uma prática paralela ao desenvolvimento formal e acadêmico, muitas vezes mostrou-se um canal exposições exaltadas em nome de um princípio, de formas inacabadas de insurgência política. 

Lembro que bem no comecinho constava no subtítulo do blog um convite para me acompanhar no desfrute do chá nas montanhas e um visitante casual indagou, de modo polido, como seria possível algum degustar um chá numa mesa diante de exposições tão pouco amistosas? Foi o sinal para buscar uma elaboração mais propositiva, ainda que preservando o argumento contundente. 

Com o passar do tempo foi possível desenvolver um estilo e dessa maneira, espero ter despertado o desejo pela reflexão, sem omitir a indignação. Por vezes precisei retomar o texto para equilibrar a força assertiva da narrativa, que parecia perder a mão sensível, mas de modo geral foi possível manter o vigor original das palavras. 

Escrever "ao vivo", ao sabor dos fatos, sempre me pareceu o mais desafiador dos exercícios desta escritura. E assim, na expectativa de construir modos de ver e de pensar, pude avançar tanto e seguir com o compromisso de pautar minhas percepções, dando vazão a sentimentos tão distintos quanto genuínos. 

Que possamos seguir por aqui, juntos, por muito mais tempo, caro leitor.


19 agosto 2019

O rumo civilizatório

Ainda não estamos aptos a realizá-lo 


A Argentina começa a desgarrar-se, quatro anos depois, do flagelo que lhe foi imposto ao eleger o governo Macri. Na semana passada a vantagem nas PASO da oposição peronista parece ter sido decisiva para que, em outubro, seja sacramentado seu retorno ao poder. Mas a que preço isso ocorrerá? A desgovernada gestão macrista, cuja política econômica foi subsidiada por pesados empréstimos do FMI e do Banco Mundial, trará sérios problemas para a o saneamento do Estado e para a retomada do crescimento sustentável. As minas de efeito retardado foram semeadas e quem pagará será a sociedade argentina como um todo, conforme se viu com a disparada do dólar logo no dia seguinte às eleições primárias. 

Por aqui, o ex-capitão celerado dispara contra a oposição peronista, divulgando o terror, sem medir as consequências, de que a Argentina se tornará a nova Venezuela. Assim, estamos com a democracia no continente emparedada por lawfare jurídico e por bravatas de falsos profetas, cerceada desde sempre pelo poder dos conglomerados e instituições financeiras. Ainda pagaremos o pedágio de três anos até que uma nova onda democrática varra o país e condene o desgoverno que começa a nos flagelar. Serão muitas perdas, muitos atos insidiosos, muita verborragia política até que possamos reencontrar o rumo civilizatório, sin pena ni olvido.   



01 agosto 2019

Alcovas memoriais


Um novo mês, o lento avanço do tempo sob esse governo inescrupuloso, que não tem pejo em se declarar em sua ignorância. Embora eu navegue sem alimentar esperanças de retomar a terra livre do ensino, gosto de pensar que posso prosseguir na organização de meus textos para publicação, ainda que tardia, e me envolver nas tantas leituras que disponho em minha saborosa biblioteca. 

São trabalhos que me tomarão o tempo que tenho, de modo que não há lamento ou desconsolo. Paralelamente a isso, manter a saúde em dia e, nesse próximo ano, resolver minha questão trabalhista, retomando meus direitos vilipendiados no último emprego e obtendo os recursos merecidos de uma aposentadoria minimamente razoável.

De golpe, vejo como os quartos desempenham um papel marcante em minhas memórias. A começar pelo quarto de minha avó, a noite de setembro de 1998 quando lá dormi pela última vez. Ela havia falecido no dia anterior, o ambiente rescendia sua presença e, sobre o criado-mudo, uma primeira versão de A Paixão Inútil que ela estava pela metade. Muitas e desencontradas lembranças, que emergem ainda hoje e me trazem conforto. 

Antes disso, por volta de 1984, um texto que publiquei recentemente em A Paixão Inútil chamado Duas irmãs e que se inicia com a descrição de um quarto em que uma delas desperta para uma longa jornada. Os infindáveis quartos de minhas inúmeras viagens pelo mundo, a imagem da narrativa de meu avô ao descrever sua última noite junto aos irmãos que ainda dormiam quando saiu para não mais regressar! 

Recentemente, quando convalescia de minha cirurgia, o quarto da casa de meus pais que me alimentou tantas deliciosas impressões! Ouvir a chuva caindo sobre o jardim em seu monocórdio tamborilar ao longo da noite é uma das recordações que guardo. Mas não só, a delícia de se estar em um lugar em que o tempo está destituído de obrigações produtivas. Sentia-me protegido. 

Ainda hoje é possível desfrutar a cama, o silêncio matinal cortado pelo canto dos pássaros, tudo sem a menor urgência.

(corrigido em 29.12.2019)