Carybé e o concreto
No café Cristallo, próximo de casa, como em todas as
manhãs. O frio se instalou, ainda que não se possa designá-lo como invernal. Pela
noite caiu uma chuvarada consistente, o que não ocorria há meses, e aqui
estamos em um inverno politicamente desesperançado, onde cabeças inábeis fazem
o serviço sujo impondo um liberalismo de guerra, destruidor de empregos e
comportamentos. Pelas ruas, a prova desse despautério, com dezenas de pessoas
sem um teto, agora dormindo e que ao longo das jornadas perambulam sem noção,
sem acolhimento, sem paz de espírito.
O modelo econômico pregado por essas
cabeças desafortunadas do liberalismo define o indivíduo como sendo uma microempresa,
sendo reconhecido e valorizado por sua capacidade produtiva. Isso pretende nos
igualar em um sentido globalizante aos centros produtivos desenvolvidos do norte,
desconsiderando as peculiaridades de nosso processo histórico, forjado em uma
profunda desigualdade histórica e social. Como se, num passe de mágica, fôssemos
apresentados ao sucesso, bastando para isso o esforço e a dedicação pessoal. O
bem-estar viria como consequência meritória do sucesso alcançado.
Tal discurso
aparentemente sedutor e que promoveria a autonomia e a liberdade do indivíduo
elimina de saída os desequilíbrios estruturais, nivelando todos a uma
competição desenfreada, onde o importante são os fins alcançados. Não considera
que nem todos partem do mesmo ponto de partida, nem que possuem as mesmas
ferramentas cognitivas para serem bem-sucedidos. Ou seja, um discurso promovido
de cima, orientado desde os escritórios climatizados, demarcado por gráficos,
números, tabelas, que expurgam o insuficiente, do ponto de vista produtivo, e
enaltecem os bons resultados individuais, que acabam por compor a eficiência
corporativa.
Milton Santos há vinte anos já denunciava essa espécie de
competitividade excludente, que não promove a felicidade social, mas os bons
resultados corporativos. Vale dizer, o sucesso empresarial, e aqui seja do
micro (indivíduo) ou do macro (empresa) está alinhado ao resultado produtivo,
alcançado a partir da competitividade, não importa o que isso represente. E
igualmente vale dizer que esse embate invisível promove a crescente destruição
do caráter, tal como nos aponta Richard Sennett. Não existe nesse processo meio
termos, e o método que resulta na autonomia e liberdade se assemelha por todo o
campo produtivo, no final das contas é como se servíssemos a um mesmo senhor,
instigados pela mesma determinação em alcançar os resultados definidos pelas
planilhas.
Quando visito meus pais vejo o quanto o
entretenimento integra essa ordem produtiva. A emissora hegemônica não
questiona ou dialoga, impõe a alienação como um vício, onde o produto oferecido
passa a ser indispensável na construção da realidade cotidiana. Assim, cada vez
mais seu discurso é assimilado pelos milhões de teledependentes, que interagem
na vida de acordo com os modelos disseminados pela programação, por exemplo,
pelas novelas sucessivas, entremeadas pelos noticiários, e finalizadas por
programas de costumes os mais variados. O questionamento, a tensão dialética,
não é considerada, e serenamente é inseminada a orientação dos diretores de
programação, por sua vez orientados pelos controladores acionários da emissora.
O trabalho competitivo do dia é reproduzido em suas dimensões ideológicas, no
entretenimento noturno. O trabalhador não escapa, torna-se um adendo dessa
máquina de espetáculos, que a sustenta, lhe dá sentido, e o que é pior,
incorpora seu sonambulismo.
Vejo meu pai assistindo calmamente a programação, dia
e noite, sem outra ocupação. Para ele, trata-se de uma medicação indispensável,
definida por belas imagens e falas incompreensíveis, mas que seduzem. É capaz
de submeter-se a essa terapia alienante sem qualquer inconveniente. O mesmo
ocorre com minha mãe, que mais ativa ao longo da jornada, submete-se à
programação sorumbática em busca de seus efeitos entorpecentes, que distorcem a
realidade social íngreme em que vive.
Mas a voracidade competitiva não se associa à
compreensão afetiva da vida. Nem tampouco é justo destacá-la como parte
integrante das referências saudosas da ordem produtiva. Um trabalhador
sindicalizado que produziu, mas igualmente atuou politicamente junto a seus
companheiros de trabalho por certo retém muitas recordações prazerosas de seu
tempo de conquistas. Mas aqueles que se submeteram caninamente ao explorador
modo de produção capitalista simplesmente sublimam as lembranças. Meu pai é
capaz de recordar de muitas passagens de sua vida bucólica no interior, junto à
família, aos amigos, mas não reteve qualquer memória do trabalho bancário. E a
pergunta que faço, por que haveria de guardar alguma recordação de um período
em que apenas contribuiu com as formas mecânicas de ser?