Inhotim, 2018 |
Estamos em
1995, meses após a vitória de FHC e do então projeto neoliberal, que começava a
se expandir pelas Américas sob o tacão estadunidense. Retomo as anotações
de então, um diário não muito denso, mas razoavelmente didático e marcado por minhas apreensões, com minhas impressões sobre o vendaval que se acercava, em meio a recessão,
desemprego, privatizações em andamento ou anunciadas. Foi a primeira onda do
que hoje sofremos de modo mais incisivo e brutal.
Hoje, os atores sociais
são outros, porém embebidos pela mesma voracidade de vinte e tantos anos atrás.
FHC, o presidente de antanho, agora nos bastidores, segue coordenando o assalto aos direitos dos
trabalhadores e à entrega do país, juntamente com seus discípulos José Serra,
Aluízio Nunes, Geraldo Alckmin et caterva.
As
perspectivas seguem agourentas, sob a retomada dessa política insustentável.
Mas não percamos o foco, segue abaixo a reprodução de trechos do diário de
1995, para compreendermos um pouco mais a filiação de nossa atual desgraça.
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"Sob
o antigo sistema colonial não era tarefa fácil escapar às cadeias do
crescimento econômico permitido pelas pressões metropolitanas. O
neocolonialismo de um lado, e o subdesenvolvimento de outro, produzem a mesma
alienação".
(Florestan
Fernandes, Folha SP, março de 1995)
"Reformas. A luta continua. O que poderíamos denominar como Governo insiste em empurrá-la goela abaixo da população, sem sequer propor uma discussão. O que poderíamos denominar Oposição – cerca de um quinto da bancada do Congresso e mais algumas entidades não-governamentais por este Brasil – tenta obstaculizar heroicamente o que parece ser o rumo irreversível dos acontecimentos. A mídia joga o seu peso descarado no que acredita serem ‘as mudanças saudáveis e necessárias’ e uma nuvem cinzenta de deputados conservadores atuam numa política pendular no meio dessa barafunda sem fim, ora apoiando o governo, ora rejeitando as mudanças, principalmente quando estas vêm no sentido de acabar com o fisiologismo. Ninguém se entende, o governo vai e vem e nada engrena. A Previdência e os monopólios estatais (Petrobrás e telecomunicações) são o alvo preferido nesta tal de reforma constitucional. FHC acabou de retornar de uma viagem à terra de tio Sam onde certamente foi pedir a benção e recebeu um pito por não estar desenvolvendo como deveria a política estabelecida pelo Consenso de Washington. ‘Que merda de servilismo inoperante é esse?’, devem ter guinchado os líderes da Metrópole! Enfim, o certo é que a marcha irreversível dos acontecimentos deve ganhar fôlego novo e impor as mudanças, passando por cima da oposição desgastada e desfigurada. Com que armas poder-se-ia resistir à fome capitalista, à urgência de reestruturação da nova ordem mundial?"
(abril de 1995)
"quem sabe sejamos idiotas o suficiente para nos humilharmos diante de sua impostura, diante de seu magnetismo torpe, e aprendamos a viver sob seu tacão, sob uma nova ordem mundial estabelecida
e sobre excrementos, não distinguiremos mais merda de caráter. Cagareis vosso caráter, dareis como palavra vossa merda...
Escrotice.
Exortar a Exalar Exegese Exequível.
Exício.
E as Exéquias".
(Junho de 1995)
(...) A estratégia em questão nos pretende botar contra a parede: ou a modernização com globalização, nos termos dados, ou a morte ignominiosa no atoleiro do atraso. Literalmente ou dá ou desce. Ou segue a receita americana ou recebe atestado de esquerda burra. (...)
(Nelson Werneck Sodré, JB, 08.07.1995)
"Direto ao assunto: a realidade neoliberal se compraz em infundir
as maravilhas do mercado cada vez mais em relação/detrimento ao Estado e sua
inescapável incompetência. Há que se alavancar um ideal em relação/detrimento a
outro, mesmo que seja aquele não passe de um cadáver jogado numa ribanceira
malcheirosa. Assim, divulga-se que é muito melhor ter conta em banco privado,
estudar em colégio pago, em utilizar serviços da iniciativa privada... Num primeiro momento, quem divulga as
maravilhas do mercado esquece ou ignora que o banco, a educação ou o serviço
público foi a partir de um determinado momento sucateado, e por indivíduos
incapazes ligados à elite do poder. Nomeações são a norma de governos burgueses
recém-instalados e assim os escalões intermediários do poder são preenchidos
por apaniguados sem qualquer afeição às funções que passam a ocupar na máquina.
Resultado: uma constante depauperação do bem público.
Em sintonia com essa ação depilatória
intramuros, os barões do capital têm os meios para desencadear seguidos golpes
na administração pública, no sentido de desacreditá-la junto à opinião pública.
Não quero aqui me mostrar um defensor corporativista do Estado, mas não posso
aceitar a falácia neoliberal por entender que esta ação difamatória visa
destruir o bem público, a estrutura pública, e não os falcões que a dirigem.
Estes, ao seu belo tempo, depois de extorquirem muita grana com obras
suspeitas, caem fora e passam mais tarde a fazer coro com seus pares burgueses,
Abaixo a administração do Estado!"
(23.08.1995)
"O processo de globalização prossegue por este mundo afora, como
forma de assegurar a reprodução do sistema capitalista e afastar contratempos
ideológicos impeditivos para o estabelecimento de uma pax moderna. Seus
conceitos variam um pouco de acordo com a localização geográfica. É óbvio que
ela não pode ser a mesma no Canadá e no Mali, há que se preservar diferenças
substanciosas, o que nos faz crer que os ideólogos deste novo mundo integrado
certamente pensaram em espaços diferenciados e indo mais além, em utilização
diferenciada dos espaços diferenciados.
Suspendo abruptamente
o assunto para referir-me ao mestre Florestan Fernandes, morto no início deste
mês de agosto, uma perda bastante sentida por mim. De sua brilhante trajetória
como sociólogo e homem público, apenas acompanhei mais atentamente seus últimos
dez anos de vida, lendo seus artigos na Folha e admirando seu sólido
posicionamento ideológico. Tive o prazer de votar duas vezes em seu nome para o
Congresso, meus votos mais profícuos em quase vinte anos. Li pouco, pouquíssimo
de sua ampla obra, mas o acompanhei sempre muito de perto em suas
manifestações, inclusive a última, em dezembro de 94, no programa Roda Viva da
Cultura, reprisado poucos dias após a sua morte. É um desses homens que passam
pela vida da gente e deixa indelével a marca de sua magnificência, de sua
dignidade, de sua personalidade. Nunca o encontrei pessoalmente, o que hoje
lamento muito. Com certeza devo ter tido inúmeras oportunidades nestes dez anos
para apertar-lhe a mão, simplesmente, sem necessariamente ter de expressar algo
que não fosse a profunda satisfação de poder cumprimentá-lo.
Vivo cautelosamente nestes novos tempos
neoliberais. Traço minhas perspectivas futuras dentro de um contexto duro e
bastante instável. Diante da propalada estabilidade monetária, a nação se
contorce em espasmos sofridos em busca de alternativas dentro de um quadro
socioeconômico desolador. Sempre tomo como ponto de referência a indústria
automobilística para ter uma ideia, mesmo que instantânea, da evolução
econômica. Há três semanas temos pátios inundados de automóveis, promoções em
cima de promoções das revendedoras, exasperadas pelo marasmo do mercado, e
demissões ocorrendo em várias montadoras. Aparece um economista e diz que são
as evidências de recessão econômica; surge outro e diz que não, que as empresas
que se prepararam nestes dois últimos anos estão aptas a colher frutos. Estes
sujeitos dentro de suas idiossincrasias sem resultados pensam que somos todos
uns tolos. (...) Contenção de gastos, enxugamento da máquina visando torná-la
mais ágil, eficiente, moderna... bah, quanta bobagem"
(24.08.1995)