23 junho 2018

A primeira onda neoliberal

Inhotim, 2018

Estamos em 1995, meses após a vitória de FHC e do então projeto neoliberal, que começava a se expandir pelas Américas sob o tacão estadunidense. Retomo as anotações de então, um diário não muito denso, mas razoavelmente didático e marcado por minhas apreensões, com minhas impressões sobre o vendaval que se acercava, em meio a recessão, desemprego, privatizações em andamento ou anunciadas. Foi a primeira onda do que hoje sofremos de modo mais incisivo e brutal. 

Hoje, os atores sociais são outros, porém embebidos pela mesma voracidade de vinte e tantos anos atrás. FHC, o presidente de antanho, agora nos bastidores, segue coordenando o assalto aos direitos dos trabalhadores e à entrega do país, juntamente com seus discípulos José Serra, Aluízio Nunes, Geraldo Alckmin et caterva. 

As perspectivas seguem agourentas, sob a retomada dessa política insustentável. Mas não percamos o foco, segue abaixo a reprodução de trechos do diário de 1995, para compreendermos um pouco mais a filiação de nossa atual desgraça.

-0-

"Sob o antigo sistema colonial não era tarefa fácil escapar às cadeias do crescimento econômico permitido pelas pressões metropolitanas. O neocolonialismo de um lado, e o subdesenvolvimento de outro, produzem a mesma alienação".

(Florestan Fernandes, Folha SP, março de 1995)


"Reformas. A luta continua. O que poderíamos denominar como Governo insiste em empurrá-la goela abaixo da população, sem sequer propor uma discussão. O que poderíamos denominar Oposição – cerca de um quinto da bancada do Congresso e mais algumas entidades não-governamentais por este Brasil – tenta obstaculizar heroicamente o que parece ser o rumo irreversível dos acontecimentos. A mídia joga o seu peso descarado no que acredita serem ‘as mudanças saudáveis e necessárias’ e uma nuvem cinzenta de deputados conservadores atuam numa política pendular no meio dessa barafunda sem fim, ora apoiando o governo, ora rejeitando as mudanças, principalmente quando estas vêm no sentido de acabar com o fisiologismo. Ninguém se entende, o governo vai e vem e nada engrena. A Previdência e os monopólios estatais (Petrobrás e telecomunicações) são o alvo preferido nesta tal de reforma constitucional. FHC acabou de retornar de uma viagem à terra de tio Sam onde certamente foi pedir a benção e recebeu um pito por não estar desenvolvendo como deveria a política estabelecida pelo Consenso de Washington. ‘Que merda de servilismo inoperante é esse?’, devem ter guinchado os líderes da Metrópole! Enfim, o certo é que a marcha irreversível dos acontecimentos deve ganhar fôlego novo e impor as mudanças, passando por cima da oposição desgastada e desfigurada. Com que armas poder-se-ia resistir à fome capitalista, à urgência de reestruturação da nova ordem mundial?"

(abril de 1995)


"quem sabe sejamos idiotas o suficiente para nos humilharmos diante de sua impostura, diante de seu magnetismo torpe, e aprendamos a viver sob seu tacão, sob uma nova ordem mundial estabelecida

e sobre excrementos, não distinguiremos mais merda de caráter. Cagareis vosso caráter, dareis como palavra vossa merda... 
      Escrotice.
      Exortar a Exalar Exegese Exequível.
      Exício.
      E as Exéquias".

(Junho de 1995) 


(...) A estratégia em questão nos pretende botar contra a parede: ou a modernização com globalização, nos termos dados, ou a morte ignominiosa no atoleiro do atraso. Literalmente ou dá ou desce. Ou segue a receita americana ou recebe atestado de esquerda burra. (...)

(Nelson Werneck Sodré, JB, 08.07.1995)


"Direto ao assunto: a realidade neoliberal se compraz em infundir as maravilhas do mercado cada vez mais em relação/detrimento ao Estado e sua inescapável incompetência. Há que se alavancar um ideal em relação/detrimento a outro, mesmo que seja aquele não passe de um cadáver jogado numa ribanceira malcheirosa. Assim, divulga-se que é muito melhor ter conta em banco privado, estudar em colégio pago, em utilizar serviços da iniciativa privada...  Num primeiro momento, quem divulga as maravilhas do mercado esquece ou ignora que o banco, a educação ou o serviço público foi a partir de um determinado momento sucateado, e por indivíduos incapazes ligados à elite do poder. Nomeações são a norma de governos burgueses recém-instalados e assim os escalões intermediários do poder são preenchidos por apaniguados sem qualquer afeição às funções que passam a ocupar na máquina. Resultado: uma constante depauperação do bem público.

Em sintonia com essa ação depilatória intramuros, os barões do capital têm os meios para desencadear seguidos golpes na administração pública, no sentido de desacreditá-la junto à opinião pública. Não quero aqui me mostrar um defensor corporativista do Estado, mas não posso aceitar a falácia neoliberal por entender que esta ação difamatória visa destruir o bem público, a estrutura pública, e não os falcões que a dirigem. Estes, ao seu belo tempo, depois de extorquirem muita grana com obras suspeitas, caem fora e passam mais tarde a fazer coro com seus pares burgueses, Abaixo a administração do Estado!"

(23.08.1995)


"O processo de globalização prossegue por este mundo afora, como forma de assegurar a reprodução do sistema capitalista e afastar contratempos ideológicos impeditivos para o estabelecimento de uma pax moderna. Seus conceitos variam um pouco de acordo com a localização geográfica. É óbvio que ela não pode ser a mesma no Canadá e no Mali, há que se preservar diferenças substanciosas, o que nos faz crer que os ideólogos deste novo mundo integrado certamente pensaram em espaços diferenciados e indo mais além, em utilização diferenciada dos espaços diferenciados.

Suspendo abruptamente o assunto para referir-me ao mestre Florestan Fernandes, morto no início deste mês de agosto, uma perda bastante sentida por mim. De sua brilhante trajetória como sociólogo e homem público, apenas acompanhei mais atentamente seus últimos dez anos de vida, lendo seus artigos na Folha e admirando seu sólido posicionamento ideológico. Tive o prazer de votar duas vezes em seu nome para o Congresso, meus votos mais profícuos em quase vinte anos. Li pouco, pouquíssimo de sua ampla obra, mas o acompanhei sempre muito de perto em suas manifestações, inclusive a última, em dezembro de 94, no programa Roda Viva da Cultura, reprisado poucos dias após a sua morte. É um desses homens que passam pela vida da gente e deixa indelével a marca de sua magnificência, de sua dignidade, de sua personalidade. Nunca o encontrei pessoalmente, o que hoje lamento muito. Com certeza devo ter tido inúmeras oportunidades nestes dez anos para apertar-lhe a mão, simplesmente, sem necessariamente ter de expressar algo que não fosse a profunda satisfação de poder cumprimentá-lo.

Vivo cautelosamente nestes novos tempos neoliberais. Traço minhas perspectivas futuras dentro de um contexto duro e bastante instável. Diante da propalada estabilidade monetária, a nação se contorce em espasmos sofridos em busca de alternativas dentro de um quadro socioeconômico desolador. Sempre tomo como ponto de referência a indústria automobilística para ter uma ideia, mesmo que instantânea, da evolução econômica. Há três semanas temos pátios inundados de automóveis, promoções em cima de promoções das revendedoras, exasperadas pelo marasmo do mercado, e demissões ocorrendo em várias montadoras. Aparece um economista e diz que são as evidências de recessão econômica; surge outro e diz que não, que as empresas que se prepararam nestes dois últimos anos estão aptas a colher frutos. Estes sujeitos dentro de suas idiossincrasias sem resultados pensam que somos todos uns tolos. (...) Contenção de gastos, enxugamento da máquina visando torná-la mais ágil, eficiente, moderna... bah, quanta bobagem"

(24.08.1995)



22 junho 2018

Entreter antes de devorar

Cena do filme Viramundo (1965), de Geraldo Sarno

Em meio a comemorações esvaziadas, em mais uma copa do mundo, a pergunta que hoje não quer calar: o que significa torcer para uma seleção de jogadores que, hipoteticamente, representam uma nação chamada Brasil?

A cada dia esse exercício de identificação não passa de uma prática vazia, sem qualquer significado relevante. Em tempos de ditadura do capital financeiro, em conjunção com a ganância das grandes corporações, o que sobrou da identidade nacional transforma-se em mera subordinação aos vultosos investimentos, onde 22 jogadores vestidos de verde e amarelo não representam mais do que suas esquálidas ambições profissionais, habilitados a mobilizar uma imensa rede publicitária que exprime a razão de ser do torneio. 

São tempos em que o futebol, como esporte popular, é segregado de seu contexto social e, higienizado, passa a representar os mais segmentados desejos de consumo, que vão dos utensílios materiais utilizados pelos jogadores, à imagem bem-acabada deles mesmos, como signos vencedores do sistema. Já não faz mais diferença se é isso ou aquilo, se esses jogadores são modelos da razão neoliberal no lugar de representantes de ideologias ou sistemas sócio-político-econômicos distintos. Se se perdeu alguma coisa pelo caminho, isso escapa à percepção cada vez mais estandardizadas dos indivíduos à deriva. 

O ideário da brutalização cotidiana penetra no tecido social visando a naturalização das desgraças, essa a viabilidade do neoliberalismo que se robustece pela espoliação e pela especulação. Como subproduto do capitalismo, promove a concentração de capital como uma alternativa "moderna e eficiente" para o bem-estar, e por esse caminho avança com a retirada de direitos trabalhistas, a privatização dos recursos naturais, a segregação social privilegiando "os mais capazes", a criminalização dos sans papiers, os indocumentados, em outras palavras, os imigrantes.  

O ódio não surge do movimento súbito e articulado de proto fascistas enrustidos em cada sociedade, mas de todo um conjunto institucional que facilita a voz dessa gente. O ódio é parido como uma forma de desarticulação, como a desvelar uma espécie de totalitarismo que propõe a reconstrução total da sociedade, com nova mentalidade, com novas instituições. O ódio das ruas de Berlim no início dos anos 1930 ressurge com outras roupagens, legitimado pelos mesmos descompassos sociais. E a omissão parece ser o catalizador desse movimento destrutivo, por isso não consigo mais compreender os sentimentos de uma copa do mundo a partir dos referenciais que a geraram no final dos anos 1920, e que de algum modo permaneceram até a última copa dos anos 1980.

A falácia golpista de nossa recente história se junta aos descaminhos autoritários do mercado neoliberal, e a copa do mundo não se faz mais do que um espetáculo cientificamente reestruturado para entreter as ovelhas antes que sejam devoradas.


03 junho 2018

A condição bancária

Resultado de imagem para guayasamin

Realizei há algum tempo uma triagem dos arquivos e documentos guardados por meu pai, papéis que um dia representaram comprovantes de operações contábeis, que se acumulavam sem qualquer serventia. Os estratos e memorandos bancários eram de uma monotonia a toda prova, reproduzindo o olor amaldiçoado desses espaços recheados de dinheiro e ambição, as agências bancárias em que trabalhou. Hoje em dia meu pobre pai ainda se vê refém das imposições administrativas dessa ambiência que tomou 35 anos de sua vida, ao se preparar para compromissos com clientes imaginários, ao reviver as tensões das demandas cotidianas, expressas em números, metas, saldos bancários. Um horror de poder e controle contábil, que como um vírus, desorganiza a lucidez de seu pensamento.

De seu trabalho não sobrou reconhecimento ou presteza. Cumpriu as tarefas impostas com abnegação, pois sabia que se não o fizesse, outro faria. Tal abnegação significou abjurar da diversão, do lazer, da política, da reflexão. Em seu raciocínio, valeria a pena construir uma carreira que lhe daria respeito e um bom pé-de-meia, ainda que rodeado por gente medíocre, que o rodeou sem qualquer imaginação. Valeria a pena enfurnar-se 10, às vezes 12 horas por dia em seu trabalho, apenas para mostrar que era confiável aos seus patrões, e que seu trabalho resultava da entrega incondicional reiterada a cada dia, como uma oração suicida, ou como os termos de uma nefasta mensagem a Garcia, alardeada institucionalmente em forma de folheto panfletário, que sugeria o respeito hierárquico, a plena submissão no cumprimento das tarefas. 

Em poucas palavras, eis o significado de uma existência bancária. Ainda existem muitos papéis arquivados nas estantes, que não expressam mais nada a não ser tédio - e a vigarice de quem os criou. Meu pai foi um mero executor, de reconhecida competência. Aprendeu a cumprir as ordens comparecendo todas as manhãs no local de trabalho, bem barbeado, terno e gravata, exarando disposição que verdadeira ou falsa, seria sugada no correr da jornada. A ele foi vedado contribuir para a solidariedade do mundo, até porque os empréstimos que aprovou foram em grande parte sorvidos por uma burguesia voraz, que cresceu, se multiplicou e hoje se arrasta à deriva. A acumulação de capital para a instituição privada à qual vendeu sua força de trabalho foi proporcional ao seu comportamento de cabresto, e todos os números aí envolvidos traduziram nada além de um redundante desperdício. 

Em outras palavras, nenhum valor que se forjasse na chama das próprias entranhas como um brado altivo escapou à sanha da hierarquia canina. Jamais a mais primária indignação floresceu, por mínima que fosse. Pleno foi a conivência de se esvaziar, em nome de um propósito tão opaco como sedutor. E hoje, mesmo os fartos rendimentos auferidos ao longo de tantos anos, dissipou-se como água na água. Assim a narrativa da história pessoal fundiu-se com a avidez do projeto de uma sociedade anônima, a reproduzir o olor diáfano de dinheiro e ambição. De toda essa leitura fatídica que inesperadamente retomo, emerge por similaridade a ideologia do governo que nos desgoverna, em nome do renovado poder invisível do capital financeiro, insuperável abstração do modo bancário de ser.