17 janeiro 2017

A continuidade dos dias




O mais dramático é constatar que os poucos do lado direito promovem as mais sedutoras narrativas para os muitos do lado esquerdo, convencendo-os da divisão e fazendo-os crer que um dia poderão merecer o outro lado.
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A propósito do tema sugerido pela ilustração, segue abaixo meu texto "O Espaço Segregado e as Culturas das margens em São Paulo", que é parte de minha tese de doutorado, 2009, e foi apresentado nas X Jornadas de Sociologia da UBA, Buenos Aires, 2013 (conforme postagem de 04.07.2013). 

Com modificações, o texto será publicado em coletânea titulada Desigualdade Urbana, organizada pela Profa. Dra. Maura Veras, pela editora EDUC.

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Perdendo paulatinamente as condições para a autoconstrução (menos renda, terrenos mais valorizados), a população mais pobre é expulsa para os extremos da cidade (ou para a região metropolitana), sendo levada a morar em favelas ou cortiços. Ainda que haja um deslocamento das classes de alta renda para o que Villaça denomina de quadrante sudoeste, seus enclaves fortificados muitas vezes se estabelecem em áreas cujo entorno é ocupado por população de baixa renda. Dessa forma, as áreas que integram o quadrante sudoeste apenas confirmam que a segregação contenha maior concentração de ricos em relação a outras partes da cidade, ainda que não constituam a maioria. Um exemplo é a favela de Paraisópolis, um enclave de renda baixa no valorizado bairro do Morumbi. Sua localização “propicia uma oferta maior de emprego para os seus habitantes, (sendo possível notar) antes do sol amanhecer, um contingente considerável de pessoas dirigindo-se aos condomínios de luxo. São babás, empregadas domésticas, motoristas e zeladores” (...)[1].
Para Villaça, a estruturação interna do espaço urbano “se processa sob o domínio de forças que representam os interesses de consumo (condições de vida) das camadas de mais alta renda”, sendo que “tal estruturação se dá sob a ação do conflito de classes em torno das vantagens e desvantagens do espaço urbano” (VILLAÇA, 2001, p. 328). Todas as vantagens da mobilidade intraurbana são garantidos por uma rede de vias de acesso apropriadas ao automóvel (vide, por exemplo, o túnel sob o Ibirapuera e a ponte estaiada, sobre o rio Pinheiros) além da grande disponibilidade de bens e serviços (restaurantes, hospitais, escolas etc. Villaça relata em seu livro a concentração de dentistas no bairro do Itaim, proporcionalmente maior que a média da cidade). Ou seja, a classe dominante dispõe das condições privilegiadas de deslocamento, permitindo que ela mantenha “perto de si seu comércio, seus serviços e o centro que reúne os equipamentos de comando da sociedade” (op.cit., p. 329). 
Temos um cenário constituído, em que as contradições e os paradoxos sociais se superpõem. As distâncias entre o centro classe-média e as periferias pobres, separação espacial que “tornava seus encontros pouco frequentes” (CALDEIRA, 2000, p. 231), lá pelos anos 1960 e princípios dos 70, intensificou os contatos, aprofundando as tramas sociais, fazendo com que “as histórias se cruzem e se entrecruzem na dinâmica dos espaços e territórios” (TELLES e CABANNES, 2006, p. 79). Em outras palavras, as periferias – e torna-se necessário chamá-la assim no plural, em decorrência de sua presença pulverizada no espaço urbano – não se encontram mais contidas nas definições binárias dos anos 70, sendo necessário analisarmos suas mazelas em uma realidade pautada pela dinâmica dos circuitos sociais da pós-modernidade, pela velocidade da vida cotidiana reproduzida constantemente nos veículos de comunicação, projetando novos desejos, criando novos referenciais simbólicos, construindo novos padrões estéticos. A cidade ilegal não deixa de crescer, e seus atores envolvem-se nas práticas da vivência cotidiana com outros atores sociais, dentro de um jogo tenso e intrincado, que passa pelo legal e ilegal, pelo formal e informal, pelo lícito e ilícito, numa constante disputa pelo espaço urbano (ibid., p. 80).
No documentário “100% Favela”, acompanhamos o processo de organização de um evento de hip-hop, do ponto de vista de um grupo de rap – o Negredo – que toma para si a árdua negociação em seus mínimos detalhes, como escolha da área, a data mais oportuna, a logística para deslocar equipamentos de luz e som, além dos grupos de rap, o diálogo com os diversos atores sociais envolvidos, da licença junto ao poder público à permissão com o tráfico local, passando pela segurança (feita previamente pela polícia militar e no dia do show pelos próprios organizadores) e pela conversa com os moradores da rua, tudo em um delicado movimento de uma dedicada ação de ocupação do espaço público, abrindo possibilidades para a confraternização social aberta a todos, mas envolvendo diretamente os moradores da favela Godoy, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo. A trama dessa construção de cidadania é registrada do início ao fim, com depoimentos dos rappers participantes, satisfeitos por realizarem um ato 100% na favela, ou, nos territórios da precariedade social. Diz Ylsão, do Negredo: “(...) A minha origem é a favela, não adianta, não tem como eu mudar, não tem como eu fugir (...) Quando eu vou pro lado de lá, que eu vejo aquele silêncio à noite, eu quero vir embora”. Ylsão reproduz quase com as mesmas palavras o que pensa Mano Brown, e o que certamente pensa Ferréz, Sérgio Vaz, Allan da Rosa, Cocão, Binho e tantos outros poetas das periferias: a realidade marginal das periferias é o seu lugar.  
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[1] D´Andrea, Pablo Tiarajú, A favela de Paraisópolis, in Divercidade, Revista Eletrônica do Centro de Estudos da Metrópole, junho/2005.


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