O mais dramático é constatar que os poucos do lado
direito promovem as mais sedutoras narrativas para os muitos do lado esquerdo,
convencendo-os da divisão e fazendo-os crer que um dia poderão merecer o outro
lado.
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A propósito do tema sugerido pela ilustração, segue
abaixo meu texto "O Espaço Segregado e as Culturas das margens em São
Paulo", que é parte de minha tese de doutorado, 2009, e foi
apresentado nas X Jornadas de Sociologia da UBA, Buenos Aires, 2013 (conforme postagem de 04.07.2013).
Com modificações, o texto será publicado em
coletânea titulada Desigualdade Urbana, organizada pela Profa. Dra.
Maura Veras, pela editora EDUC.
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(...)
Perdendo paulatinamente as condições
para a autoconstrução (menos renda, terrenos mais valorizados), a população
mais pobre é expulsa para os extremos da cidade (ou para a região
metropolitana), sendo levada a morar em favelas ou cortiços. Ainda que haja um
deslocamento das classes de alta renda para o que Villaça denomina de quadrante sudoeste, seus enclaves fortificados
muitas vezes se estabelecem em áreas cujo entorno é ocupado por população de
baixa renda. Dessa forma, as áreas que integram o quadrante sudoeste apenas
confirmam que a segregação contenha maior concentração de ricos em relação a
outras partes da cidade, ainda que não constituam a maioria. Um exemplo é a
favela de Paraisópolis, um enclave de renda baixa no valorizado bairro do
Morumbi. Sua localização “propicia uma oferta maior de emprego para os seus
habitantes, (sendo possível notar) antes do sol amanhecer, um contingente
considerável de pessoas dirigindo-se aos condomínios de luxo. São babás,
empregadas domésticas, motoristas e zeladores” (...)[1].
Para Villaça, a estruturação interna
do espaço urbano “se processa sob o domínio de forças que representam os
interesses de consumo (condições de vida) das camadas de mais alta renda”,
sendo que “tal estruturação se dá sob a ação do conflito de classes em torno
das vantagens e desvantagens do espaço urbano” (VILLAÇA, 2001, p. 328). Todas
as vantagens da mobilidade intraurbana são garantidos por uma rede de vias de
acesso apropriadas ao automóvel (vide, por exemplo, o túnel sob o Ibirapuera e
a ponte estaiada, sobre o rio Pinheiros) além da grande disponibilidade de bens
e serviços (restaurantes, hospitais, escolas etc. Villaça relata em seu livro a
concentração de dentistas no bairro do Itaim, proporcionalmente maior que a
média da cidade). Ou seja, a classe dominante dispõe das condições
privilegiadas de deslocamento, permitindo que ela mantenha “perto de si seu
comércio, seus serviços e o centro que reúne os equipamentos de comando da
sociedade” (op.cit., p. 329).
Temos um cenário constituído, em que
as contradições e os paradoxos sociais se superpõem. As distâncias entre o
centro classe-média e as periferias pobres, separação espacial que “tornava
seus encontros pouco frequentes” (CALDEIRA, 2000, p. 231), lá pelos anos 1960 e
princípios dos 70, intensificou os contatos, aprofundando as tramas sociais,
fazendo com que “as histórias se cruzem e se entrecruzem na dinâmica dos
espaços e territórios” (TELLES e CABANNES, 2006, p. 79). Em outras palavras, as
periferias – e torna-se necessário chamá-la assim no plural, em decorrência de
sua presença pulverizada no espaço urbano – não se encontram mais contidas nas
definições binárias dos anos 70, sendo necessário analisarmos suas mazelas em
uma realidade pautada pela dinâmica dos circuitos sociais da pós-modernidade,
pela velocidade da vida cotidiana reproduzida constantemente nos veículos de
comunicação, projetando novos desejos, criando novos referenciais simbólicos,
construindo novos padrões estéticos. A cidade ilegal não deixa de crescer, e
seus atores envolvem-se nas práticas da vivência cotidiana com outros atores
sociais, dentro de um jogo tenso e intrincado, que passa pelo legal e ilegal,
pelo formal e informal, pelo lícito e ilícito, numa constante disputa pelo
espaço urbano (ibid., p. 80).
No documentário “100% Favela”,
acompanhamos o processo de organização de um evento de hip-hop, do ponto de
vista de um grupo de rap – o Negredo – que toma para si a árdua negociação em
seus mínimos detalhes, como escolha da área, a data mais oportuna, a logística
para deslocar equipamentos de luz e som, além dos grupos de rap, o diálogo com
os diversos atores sociais envolvidos, da licença junto ao poder público à
permissão com o tráfico local, passando pela segurança (feita previamente pela
polícia militar e no dia do show pelos próprios organizadores) e pela conversa
com os moradores da rua, tudo em um delicado movimento de uma dedicada ação de
ocupação do espaço público, abrindo possibilidades para a confraternização
social aberta a todos, mas envolvendo diretamente os moradores da favela Godoy,
no Capão Redondo, zona sul de São Paulo. A trama dessa construção de cidadania
é registrada do início ao fim, com depoimentos dos rappers participantes,
satisfeitos por realizarem um ato 100% na favela, ou, nos territórios da
precariedade social. Diz Ylsão, do Negredo: “(...) A minha origem é a favela,
não adianta, não tem como eu mudar, não tem como eu fugir (...) Quando eu vou
pro lado de lá, que eu vejo aquele silêncio à noite, eu quero vir embora”.
Ylsão reproduz quase com as mesmas palavras o que pensa Mano Brown, e o que
certamente pensa Ferréz, Sérgio Vaz, Allan da Rosa, Cocão, Binho e tantos
outros poetas das periferias: a realidade marginal das periferias é o seu
lugar.
(...)
[1] D´Andrea, Pablo Tiarajú, A favela
de Paraisópolis, in Divercidade, Revista Eletrônica do Centro de Estudos da
Metrópole, junho/2005.
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