Acabo de concluir um texto que
me trouxe muito prazer em escrever, que exigiu pelo menos três meses de
pesquisas e escrituras, As dimensões do inusitado - do maravilhoso barroco ao maravilhoso encantado*, e que deverá fazer parte do livro a ser publicado pelo grupo de pesquisa Mnemon, sobre cosplay e outras teatralidades juvenis, organizado pela Mônica Nunes.
O artigo divide-se em duas partes, a primeira discute a narrativa latino-americana como elemento indispensável para a compreensão da história de Nuestra Pátria e do presente como projeto para o futuro, tomando por base a cosmogonia barroca do realismo maravilhoso de Carpentier.
Na segunda parte, destaco o maravilhoso encantado proporcionado pela leitura e representação de Tolkien, a partir das etnografias que o grupo fez junto a eventos revivalistas (vitorianos), medievalistas e retro-futuristas (steamers). Se na primeira parte temos a magia mobilizada para a transformação política, na segunda temos a magia como entretenimento.
No final, a despeito do grande esforço em construir esse painel fragmentado, senti especial prazer em destacar um pensamento tão envolvente que começa em nossa literatura latino-americana e se projeta nos jovens secundaristas, como herdeiros dessa pulsão telúrica fomentada pelo nosso barroco, além de retomar as falas dos jovens que se deliciam com a recriação estética e comportamental na prática das culturas midiatizadas, como os steampunks e os medievalistas.
Abaixo, apresento um pequeno trecho do trabalho.
(...)
A eleição criativa, plena de
simbiose e mestiçagem, fende os entraves impostos pela submissão do sujeito
colonizado e possibilita a inserção no tempo mítico, “o prazer do gozo intenso,
diferenciado, que rompe com o tempo cronológico e previsível de cada dia, e
pelo encontro com outros ‘encantados’ que também fogem da solidão” (PAZ, 2006:
p. 190). O relato da cosmogonia latino-americana que se reconfigura desde os
primórdios da conquista ibérica ganha seu ritmo, suas cores, seus pontos de
vista e se fundem na narrativa do real maravilhoso, tão conectada com o
insólito do cotidiano. A cosmogonia barroca apresenta-se menos como um corpo de
doutrinas do que a própria condição para o relato maravilhoso, não se conter na
mera apreensão dos códigos da memória, mas a partir da pulsão criadora,
inventar os códigos do fantástico.
Nesse sentido, para Carpentier, a magia vivenciada em cada canto e em cada momento de sua passagem no Haiti representavam a metonímia do continente americano, consubstanciando um projeto literário onde o gesto político promove uma qualidade essencialista que engloba todo o continente, definida pela fé e pelo milagre. No prefácio de sua novela “O Reino deste Mundo”, Carpentier faz uma breve definição do real maravilhoso enquanto narrativa necessariamente ungida “por toda uma mitologia, acompanhada de hinos mágicos, conservados por todo um povo (...)” e dessa forma, nada mais natural que toda a intensidade do real maravilhoso se manifestasse em sua visita ao Haiti. Em outras palavras, “o artista que não tem a mesma fé que alimenta os habitantes da América Latina, que não crê no milagre e na magia, não poderá captar a complexa realidade do continente, nem seu inesgotável caudal de mitologias” (SOLDÁN, 2008: p. 34).
Nesse sentido, para Carpentier, a magia vivenciada em cada canto e em cada momento de sua passagem no Haiti representavam a metonímia do continente americano, consubstanciando um projeto literário onde o gesto político promove uma qualidade essencialista que engloba todo o continente, definida pela fé e pelo milagre. No prefácio de sua novela “O Reino deste Mundo”, Carpentier faz uma breve definição do real maravilhoso enquanto narrativa necessariamente ungida “por toda uma mitologia, acompanhada de hinos mágicos, conservados por todo um povo (...)” e dessa forma, nada mais natural que toda a intensidade do real maravilhoso se manifestasse em sua visita ao Haiti. Em outras palavras, “o artista que não tem a mesma fé que alimenta os habitantes da América Latina, que não crê no milagre e na magia, não poderá captar a complexa realidade do continente, nem seu inesgotável caudal de mitologias” (SOLDÁN, 2008: p. 34).
Essa fé, essa magia perpassam as
fecundas mestiçagens que dão a cor, a beleza, a intensidade do relato
maravilhoso, que perpassam por exemplo as crônicas testemunhais da opressão
colonial de Huamán Poma[1],
ou o diário sobre o massacre dos jagunços de Canudos descrito por Euclides da
Cunha, cujo relato da resistência sertaneja mobiliza o respeito do autor,
“Sejamos justos – há alguma coisa de grande e solene nessa coragem estoica e
incoercível, no heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios
transviados e cada vez mais acredito que a mais bela vitória, a conquista real
consistirá no incorporá-los, amanhã, em breve, definitivamente, à nossa
existência política” (CUNHA, 2013, p.108).
(...)
[1] Conforme Carlos Araníbar, Huamán
Poma foi um contestador e andarilho filho dos Andes, que viveu no século XVI e
expressava os males da invasão espanhola em imagens e palavras, “emparelha
texto-figura e como cara e coroa de uma velha medalha, nos oferece duas versões
paralelas: desenhos para o analfabeto, letras para quem sabe ler” (ARANÍBAR,
2015, p. 9).
* N.A. - O texto foi renomeado na revisão gráfica e ficou De Carpentier a Tolkien: do maravilhoso barroco ao maravilhoso encantado.
* N.A. - O texto foi renomeado na revisão gráfica e ficou De Carpentier a Tolkien: do maravilhoso barroco ao maravilhoso encantado.
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Também ontem, em minha página do facebook, republiquei um trecho de Pedro Páramo, depois de quatro anos. Tinha acabado de fazer a leitura, quando, ainda tomado pela beleza do texto, destaquei um pequeno trecho que reproduzo abaixo.
"E sua alma?
Onde você acha que ela foi?
Deve estar vagando
pela terra como tantas outras, procurando viventes que rezem por ela. Talvez me
odeie pelos maus tratos que lhe dei, mas isso não me preocupa mais. Descansei
do vício dos seus remorsos. Ela me amargurava até o pouco que eu comia e
tornava as minhas noites insuportáveis; enchendo-as de pensamentos inquietos,
com figuras de condenados e outras coisas assim. Quando me sentei para morrer,
ela implorou que eu me levantasse e continuasse arrastando a vida, como se
ainda esperasse um milagre que me limpasse das culpas. Não fiz nem sequer uma
tentativa: 'Aqui termina o caminho', disse ela. 'Já não tenho forças para
mais'. E abri a boca para que fosse embora. E ela foi. Senti quando caiu nas
minhas mãos o filete de sangue com que estava amarrada ao meu coração".
(Pedro
Páramo, de Juan Rulfo)
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