Colônia, 2010 |
A estação que me acompanhava em cada
instante, antes da partida. Escolhi a mesa mais afastada, na entrada do café e
pus-me a pensar um pouco sobre as circunstâncias. Atravessaram-me os momentos
de nossas jornadas, o redescobrimento dos gestos, dos tempos duradouros de cada
palavra, a sucessão perdida dos olhares em torno do desejo, os impulsos de cada
caminhada noturna, os longos beijos apaixonados no leito de amor, os sabores
das mesas, o alimento que nos entretinha em pensamentos e miragens... a música
incidental, os temas forjados e esquecidos... Atenuo minha inquietação, a
estação já não me causa estranhamento, agora é uma questão de aguardar a hora
da partida, a observar de maneira despreocupada as pessoas prosseguirem céleres
em seu destino, agrupadas em conversas triviais ou solitárias capturadas pelas
brumas dos pensamentos contínuos, movidas por suas pequenas tragédias.
(...)
Acordo pela madrugada, após me
debater com sonhos sem sentido, em que seres humanos morrem e tornam-se zumbis
sob minha complacência. Um saxofone que exalava notas rápidas em legato, sob o acompanhamento atravessado
do público com as mãos. É provável que esteja impressionado pela carga de
trabalho, pela semana que promete novos compromissos com prazos que não se postergam.
Com a exceção de dois magníficos grupos de alunos, ou talvez três, as aulas
perdem sua força. É notória a percepção de alunos se desgarrarem da
concentração mágica e se dispersarem. Acompanham atentos, e então uma pergunta,
outra mais, o debate travado se multiplica em falas disseminadas, não se retoma
a concentração de antes. As aulas, os seminários, os pequenos rituais
acadêmicos que não cessam, os deslocamentos das estações para os hotéis, cafés
da manhã, recepções acadêmicas, gentilezas, as falas e os debates, mais
aplausos, o silêncio inquieto dos vagões... Ainda assim, malgrado o sacrifício
dos textos poéticos, tem sido o melhor semestre letivo nestes anos todos.
(...)
A viagem está concluída, não há o
que fazer e também não sei se estaria disposto a acrescentar algo mais. Talvez
ainda surja neste tempo vago algumas reflexões pessoais que me perseguem, sobre
temas que não tive condições de me dedicar. É quando posso retomar os rascunhos
da ficção, mas a esta altura o que é ficção e realidade? Há situações em que
uma se funde à outra, ou uma prepara o terreno para a outra. As folhas do meu
caderno quadriculado ganham linhas e páginas de anotações que se mesclam, as
urgentes do cotidiano nas bordas, enquanto visualizo a jovem em sua bicicleta,
a mão não é tão hábil para reter o fluxo de impressões, por isso não é raro me
deter no meio de uma imagem em construção. A narrativa ganha densidade,
volúpia, ameaça escapar, para ao final se amansar como bom alazão selvagem. Coloco-me
em sinuosa espera, hoje sem inspiração para novas ideias, é bem possível que
seja o cansaço acumulado, sabe-se lá.
(...)
Olhares sofridos, de coragem, de dor
e de afeto, e de uma longa trajetória de vida, onde sem dúvida prevaleceu a
reprodução de um cotidiano muitas vezes sem graça, repetitivo, mas que retiro
relatos pungentes, como se me fizesse personagem de uma outra narrativa mítica,
forjada em disputas, amor, conquistas, em grande medida, por desesperança
superada pela persistência. Novos e velhos personagens relidos por novas
interpretações, em alguns casos pelas descrições mais serenas e prolongadas, em
outros, pela memória que, sem ser a mesma, não confirma as mesmas lembranças de
outras narrações. Aproveitei, assim, o tempo bondoso junto ao meu pai. A ceia
trouxe, para mim, essas superposições da vida, passado que projetou o futuro e
anuncia o presente, todos em simultaneidade, com as certezas que podemos ter,
com as ausências que não podemos evitar. Como se cumpríssemos uma nova etapa de
renovação, preparando-nos para mais um ciclo de vida, com todas suas boas e
desagradáveis surpresas. Nosso tempo cronológico sempre reiniciado com as
festas, a partir do congraçamento de fim de cada ano, das reflexões
inevitáveis. Somos fortes e imaginosos, competentes o suficiente para, nos
momentos de mudança, saber improvisar e descobrir novos 'caminhos epistêmicos'
para a vida. Tenho sentido há algum tempo nas falas de meu pai uma concordância
com a verdade suprema e penso que por isso sua leitura da vida surge tão
límpida e tranquila.
(...)
Permanecem
as gotículas da neve fundida, que se esparramam pela vidraça em alta
velocidade. Logo estarei em Colônia, esta é a primeira vez. O trem flui
desprovido de receios, avança em meio a uma paisagem lúgubre, branca e sem
vida. Mais ao longe, vejo passar com menos pressa as habitações escuras e
solitárias, aqui e ali obstruídas por suaves colinas cobertas de neve que as
oculta por momentos. Pequenas estações passam velozes, modificando o ruído
produzido no atrito com os trilhos. Mais parecem signos abandonados da
civilização, assim como as casas, verdadeiras tumbas mortuárias à distância,
inertes, silenciosas. Mesmo dentro do vagão, sou o passageiro que se inquieta
pela imobilidade enganosa, pelo calor artificial, pela ausência de rostos, de
tal modo que as gotículas apressadas no vidro, a paisagem branca, se alinham em
um fundo generoso, que estimula o imaginário, os vagos registros da memória que
me libertam de um mal-estar inusitado.
(...)
Nessa manhã opaca que avança por minha janela, penso um pouco em uma história imaginada aos pedaços, primeiro a ideia de alguém que desembarca em um lugar desconhecido - e o que aprofunda esta sensação é o estranhamento com as pessoas, com as ruas cobertas de neve, com as tardes mais frias do que as noites. Como uma referência mágica que impede o absoluto distanciamento, o Zeit Café na entrada da estação, com seus poucos clientes e o atendente prestativo, sempre com uma taça de café cremoso. O frio das manhãs amenizado pela serenidade de um lugar acolhedor. A cidade cinzenta como o palco de seus desencontros, enquanto Rutger, o cidadão viajante, aguarda o próximo embarque que tarda a ocorrer. Pelas condições climáticas, não pode se comunicar com o mundo exterior e suas curtas caminhadas pelas bordas da estação têm como companhia os pensamentos incertos, vez ou outra com uma boa taça de café. Enquanto aguarda que algo distinto aconteça, sente que mergulha na mesma dimensão opressora, conhece melhor ao atendente, que lhe apresenta os mesmos clientes de cada dia, pacientemente acomodados diante das mesmas mesinhas.
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