24 outubro 2013

14 outubro 2013

Continuidade dos parques


por Julio Cortázar


Havia começado a ler a novela uns dias antes. Abandonou-a pelos negócios urgentes, retomou-a quando regressava de trem à fazenda; se deixava envolver lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Nessa tarde, depois de escrever uma carta ao seu representante e discutir com o mordomo uma questão de contratos, voltou ao livro sob a tranquilidade do estúdio que se abria ao parque de carvalhos. Recostado em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o havia molestado com a irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse de ora em vez o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos. 

Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca tomou-o logo em seguida. Gozava do prazer quase perverso de ir se apartando linha a linha do que o rodeava, sentindo assim que sua cabeça descansava comodamente no veludo da poltrona de alto recosto, que os cigarros seguiam ao alcance da mão, que mais além das amplas janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra por palavra, absorvido pela sórdida opção dos heróis, entregava-se às imagens que se organizavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunho do último encontro na cabana da montanha. 

Primeiro entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, rosto ferido pelo chicotaço de uma ramagem. Ela estancava carinhosamente o sangue com seus beijos, ele porém rechaçava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se aninhava contra seu peito, e por baixo bradava a liberdade ocultada. Um diálogo ofegante corria pelas páginas como um caudal de serpentes, e se sentia que tudo estava decidido desde sempre. Mesmo estas carícias que enredavam o corpo do amante como desejando retê-lo e dissuadi-lo desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: pretextos, acasos, possíveis equívocos. A partir desta hora cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo repasse despiedoso se interrompia apenas para que uma mão acariciasse o rosto. Começava a anoitecer.

Sem que se olhassem, atados rigidamente à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia seguir pelo caminho que dava ao norte. Desde a senda oposta ele se voltou um instante para vê-la correr com os cabelos soltos. Correu por sua vez, protegendo-se sob as árvores e as sebes, até distinguir através da bruma rosácea do crepúsculo a alameda que conduzia à casa. Os cães não deviam ladrar, e não ladraram. O mordomo não estaria a esta hora, e não estava. 

Subiu os três degraus da varanda e entrou. Com o sangue galopando em seus ouvidos, alcançavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma galeria, uma escada atapetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro cômodo, ninguém no segundo. A porta da sala, e então o punhal na mão, a luz das grandes janelas, o alto recosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

(extraído e traduzido da obra Final del Juego, Buenos Aires: Santillana Ediciones Generales, 2008) 


05 outubro 2013

Chá nas Montanhas

Paul Bowles (1910-1999)


Ao que me recordo, acabei conhecendo o Marrocos antes de conhecer o filme de Bertolucci, O Céu que nos Protege, que por sua vez, acabaria me conduzindo ao escritor Paul Bowles. Uma sucessão de magníficos achados, pois minha proposta de viagem de algum modo coincidia com o espírito da aventura dos protagonistas do romance de Bowles. Lançava-me ao desconhecido, não como turista, mas como viajante, como um geógrafo prestes a se formar, desejoso por contatar culturas diversas. O projeto era ambicioso, previa juntamente com um amigo percorrer o Marrocos, Argélia e Tunísia, mas para meu desconsolo não passei de Oujda, no extremo leste marroquino, dali, então, seguindo para a Espanha.

Ao me deparar posteriormente com a beleza da fotografia do filme de Bertolucci, recuperei mentalmente as cenas urbanas vividas em Tânger e a luminosidade terracota de Marrakech, a meio caminho entre o oceano e Ouarzazate, às portas do deserto. A entrega da personagem vivida por Debra Winger foi naturalmente mais intensa que a minha, fazendo com que eu me ligasse às suas experiências profundas, com todas aquelas forças enigmáticas do Saara. 

Minha admiração por esse espaço geográfico e por sua população se multiplicou, entrou em ação o imaginário alimentado pelas sequências fílmicas e mais tarde, pelos escritos de Paul Bowles. Perguntava-me como um escritor estadunidense podia 'escapar' para um universo imerso em pura sensibilidade e oferecer um texto tão denso e sem visões preconcebidas. Na aproximação de seus escritos, descobri um autor que conseguia expressar técnica e beleza, produzindo relatos de rara acuidade a partir de suas vivências culturais.


Tudo isso para revelar a razão deste blog chamar-se Chá nas Montanhas. Há exatos cinco anos, no desejo de retomar os relatos nas redes sociais, comecei este trabalho que perdura até hoje, e não tive dúvidas em nomeá-lo com o título de um dos livros de Paul Bowles que mais aprecio. Dentre um elenco de belíssimas narrativas, ali se encontra o conto que originou o romance O Céu que nos Protege, o desconcertante A Distant Episode (Um Episódio Distante). 

Sinto-me feliz em ter alcançado este tempo de atividade contínua em rede. Não foi fácil, mas confesso que tem sido um desafio interessante, que se renova a cada dia. O blog me alimentou nos momentos de pouca inspiração, estimulando-me a pensar e produzir novos temas, a conhecer e transcrever os mais diversos autores. Já são quase 400 postagens, com mais de 8.500 visitas nestes cinco anos. 

Que o trabalho perdure, e que possa contar sempre com a presença de todos vocês, caros leitores.



04 outubro 2013

Sobre os passos indispensáveis

Com Jerusa, Unesp, Franca, 2013

Os esforços acabam sendo de grande valia, quando compreendemos a necessidade de um propósito. No caso, a prova de hoje, com aquela sala complicada mostrou-me ao final das contas a didática a ser buscada. A uma certa altura, resolvi caminhar pela sala, por entre os grupos, pois vi que estendiam exageradamente o tempo de prova. Optei livremente por perguntar como iam e diante de uma ou outra dúvida, propunha didaticamente uma reflexão, contornando o problema, mas deixando-o ao alcance dos olhos e do coração. Foi incrível como demonstraram vividamente romper com os impasses, de algum modo avançando na escritura. 

Um aluno me chamou a atenção, Ernesto, o mais chato e desagradável da sala. Consultou-me sobre seu percurso na resposta e lhe fiz ver a projeção da teoria de Bauman na realidade. Desenhei (sim, desenhei) um conjunto de guetificações miseráveis e de luxo, nomeando-as devagar, olhando-o com firmeza, com a conhecida firmeza guevarista, endurecida pero con ternura, indagando-lhe se não era como via e sentia a cidade. Ele me acompanhou atento e ao final expressou-se com uma luminosidade convincente, dizendo que agora era possível entender a proposta do Bauman. Voltou para a carteira e respondeu a questão, que ao final das contas, me pareceu bem resolvida. E assim foi com um conjunto de outros alunos, sem oferecer respostas objetivas, mas conversando sobre os temas, indagando-lhes sobre o entendimento das coisas.

Um a um foi se retirando, com aquela consciência (ou impressão) de que tinham capturado o que não conseguiam antes fazer ideia. Ainda assim saíram preocupados, mas com uma leveza para eles mesmos, inesperada. De minha parte, nunca uma prova me pareceu um instrumento tão propositivo e eficiente para fazê-los avançar sobre um adorável enigma. Fomos a última sala a deixar o andar, e de algum modo percebi a necessidade do esforço pedagógico, ainda que em um momento supostamente indevido. Sei lá, qual é o tempo definido para o aprendizado e compreensão das coisas? Eu os tinha (na verdade, ainda os tenho...) como desinteressados sem causa, mas por um momento pude perceber que uma atenção mais intensa e cuidadosa pode ao menos amenizar tensões insuperáveis. Um dos alunos me indagou sobre o que era esse estranhamento diante de uma cultura distinta, que Laplantine tão lindamente aborda em seu texto. 

E conversamos largamente sobre isso. Outros participaram, e ouviram, e comentaram cada qual à sua maneira, a voz que se articula e que se faz ouvir! Não lhes dei respostas, apenas propus caminhos para um desejo de ir mais além dos horizontes conhecidos. Avançar por veredas difíceis, mas construtivas, sem receios, e promover a eliminação do medo, dos preconceitos sobre o desconhecido. Tudo pode parecer um longo percurso sem atalhos, mas sinto a necessidade de descobrir quem são aqueles alunos, e por algum caminho fazer cumprir os desígnios de uma escolha, ou seja, contribuir para uma discussão que faça despertar as dúvidas, sem deixar de estimular a confiança.

(Uma versão expandida deste texto encontra-se na revista digital VilaFlorhttp://www.vilaflor.art.br/edicao-03/marco-antonio-bin.php)