14 março 2024

Was ist Metaphysik?


A mercadoria como protagonista


O texto abaixo tem pelo menos quinze anos, foi escrito quando ainda atuava como professor de Comunicação Comunitária na FAAP, no curso de Comunicação Social, na época um dos mais concorridos entre os jovens pertencentes à nata da sociedade burguesa paulistana, e bem por essa razão, um dos mais caros da cidade. A reflexão sobre o liberalismo na pós-modernidade, já bastante em voga nos meios acadêmicos, aqui formulado em seu processo de diluição - e não de constituição - do indivíduo livre e bem-sucedido, me parece muito atual. 

Provavelmente em função da fatalidade neoliberal ao longo do processo histórico, cuja essência se manifesta na ambição pelo lucro desavergonhado, lamento as perdas desse tempo: o saudável curso de Comunitária, no qual tive o prazer de contribuir por mais de 11 anos; a decadência da pujança da instituição, que se perdeu em meio às fúteis escolhas administrativas; e a falência do local em que ocorre o encontro com meu aluno, a então magnífica livraria Cultura.

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A livraria estava no caminho do mercado, iria comprar umas frutas para o desjejum da manhã, e vi que ocorria um lançamento, um autor desconhecido de uma literatura que não me interessava. Mas ainda assim achei por bem entrar por uns minutos, ver os títulos recém-chegados, sentir o movimento, o frisson na fila de autógrafos, nada além do que esses pobres desejos. 

Diante da estante de filosofia, folheava uma pequena biografia de Heidegger quando alguém me tocou nas costas. Ao virar-me, deparei com o garçom sustentando uma bandeja em uma das mãos e com a outra enchendo uma taça com um vinho vagabundo. Sorriu-me e proferiu a frase do dia, "Como vai, professor?". Não estava a fim de pensar em nada àquela altura da noite, o cansaço envolvia meus sentidos e a desolação começou a invadir-me. "Lembra-se de mim?", questionou-me, com seu semblante vivaz. Olhei bem nos olhos do jovem garçom que acabava de encher minha taça. Dei uma risadinha sem graça e perguntei como estava. Ele estendeu-me o copo de maneira polida e sem perder a compostura facial, disse que ia tocando a vida. "Consegui este trabalho faz dois meses... com o tempo, consigo uma função na administração...", e me falou de sua conquista sem perder o sorriso prestimoso. Peguei a taça de vinho vagabundo e suas obrigações como garçom aliadas ao meu torpor colocaram um ponto final ao encontro. "Até mais, professor, foi um prazer vê-lo...", e logo se afastou para o próximo cliente.

Pouco depois saí da livraria apertando o passo para encontrar o mercado ainda aberto. Refletir sobre o ocorrido foi uma consequência inescapável. Se foi meu aluno, devia ter se formado em comunicação, e a razão de não me recordar de sua fisionomia confirmava sua discrição como aluno. Bem, não ter passado de um aluno mediano não era razão suficiente para distribuir taças de vinho em um lançamento de livro. Está bem, vamos começar de novo: o fato de ter se formado numa das melhores faculdades de comunicação de São Paulo deveria lhe apresentar possibilidades de voos mais ousados na área. Perguntei-me o que faria com os conhecimentos adquiridos. Nossas conversações sobre a consciência da realidade social, sobre a importância do outro, as discussões sobre os filmes vistos, documentários de Eduardo Coutinho, o Irã de Makhmalbaff e Kiarostami... As leituras feitas sobre a cordialidade em Sérgio Buarque, os debates com Darcy Ribeiro e o povo brasileiro... Tudo parecia se resumir ao sorriso enervante de boa serventia, como se servir um copo de vinho fosse o complemento de todo um ciclo de aprendizado.

Enquanto escolhia laranjas, maçãs, bananas, reconheci o que me havia molestado de modo especialmente cruel naquele encontro: a assepsia, o excesso de zelo, sem lugar para o gesto autêntico do entusiasmo ou da decepção. Ao contrário, o sorriso que permeou nossa conversação foi uma necessidade imposta pelo nosso admirável mundo insosso. Da parte dele, indicou a gentileza do bom atendimento, condimentada por uma conversa acessória, bastante contida sobre o passado recente. E da minha parte, o sorriso evidenciou a satisfação pelo serviço prestado, condimentado pelo breve deleite de ser lembrado por um ex-aluno. Nossas almas não foram recompensadas. Sonhos e emoções diluídos como água na água.

O que me convence da funcionalidade pós-moderna, ainda uma vez, é a engrenagem que se alimenta de frivolidades sedutoras. Não deseja se sustentar por sua força intrínseca, mas por uma eficiente concorrência que se dissimula como essência de nossas ações. Após ouvir a cantilena de que deus é pai, agora me preparo para compreender que a verdade do mundo é ilusão, ou melhor dito, conforme as palavras de Hamsum, citadas por Heidegger, "(o nada) instala-se entre seus ouvidos e escuta o vazio verdadeiro. De todo curioso, uma alucinação (...) Aqui, porém, o Nada sobre nada. Não há nada, nem sequer um buraco. Só se pode balançar resignadamente a cabeça".     



12 março 2024

Sobre a vertigem do imediatismo


A leveza dos mestres


Não existem atalhos para o sucesso, ou mesmo para se estabelecer na competência. Já faz tempo que afastei de mim o cálice das facilidades imediatas que prometem mundos e fundos, no curso dessa contemporaneidade bestificada, falsamente glamourosa, que se pauta no liberalismo tresloucado de mercado. São tentadores os fariseus que prometem mundos e fundos em apenas sete passos. A foto acima é bem sugestiva, os mestres que aprenderam com outros mestres, em uma lenta lapidação de suas vivências como seres lançados no mundo. Lembro-me de uma entrevista de Vargas Llosa com Julio Cortázar, nos anos 1960, quando lhe pergunta o que faria se um jovem de 15 anos quisesse aconselhar-se para se tornar um escritor, Ao modo dos mestres Zen, quebraria uma cadeira em sua cabeça, respondeu Cortázar, e completou, Se apesar de tudo minha resposta não fosse clara, eu lhe diria que só o fato de buscar conselhos alheios sobre a produção literária, confirmaria sua falta de verdadeira vocação

Há duas coisas importantes, a meu ver, nessa resposta simples e contundente do grande Cortázar: como disse no começo, não existem atalhos para a satisfação egoísta de um desejo; e que a vocação não é algo que se mede (ou se acrescenta) com conselhos, ainda que da melhor qualidade. No lugar da ansiedade egóica, a humildade do trabalho perene, o esforço de aprendizagem sem data de validade, com os mestres que nos inspiram. E isso não significa um curso pago de capacitação, mas a capacidade natural de agregar conhecimento à vocação. Claro, há que se ter uma vocação, do contrário, não há como desenvolver a virtude inata. Me chama a atenção a profusão de pretensos cursos para fazer de um bom redator um escritor bem-sucedido, tomando-se como base a criação narrativa de escritores consagrados e... exercícios, com trocas coletivas de escritura. Não espere que o milagre venha dos céus, pois não vem. 

Em um de seus cursos de cinema proferidos no Colégio São Luiz, em certo momento Luiz Sérgio Person comentou, provavelmente no limite de sua paciência, que naquela sala não tinha ninguém que se daria bem como diretor, a não ser aquele barbudo ali do canto. Referia-se ao jovem Carlos Reichenbach. E é fato, nada mais se soube dos outros trinta ou quarenta estudantes, se é que estavam ali para almejar alguma coisa com cinema, além de conhecimento. Porque as coisas são assim mesmo, não brotam mestres ao acaso, após uma roçada feita com esmero, ou após se cumprir os malditos sete passos da sabedoria. Em um mundo voraz, impaciente e cada vez mais ganancioso, convém mais do que nunca lapidar a vocação com paciência, e que a inspiração seja a matéria resultante de leitura dos mestres, uma leitura desinteressada e contínua. Que a caravana passe, os cães continuarão ladrando. A beleza toda está nesses pequenos movimentos de prazer.

    

06 março 2024

Terra Devastada no Al Janiah


Um delicioso lançamento!


Demorou um pouquinho, mas por fim publico palavras e imagens do que foi o lançamento de Terra Devastada, no mezanino do simpático e acolhedor Al Janiah, coroado com a sensível leitura dramática do Coletivo Parêntesis de Teatro. Uma bela confraternização, para além do que podia imaginar. Foram muitas as pessoas presentes: queridos amigos de longa data; novos amigos que conheci ali no evento; meu irmão Júlio representando a família; minha editora Caravana, na pessoa do grande Claudio Gonçalves (que realizou belas imagens); minha amada Moniquinha, com seu sorriso contagiante; a juventude entusiasta de Ulisses e Gabriel. Em suma, uma noite completa, colorida, palestina, inesquecível. 

Abaixo, alguns registros da noitada.