A mercadoria como protagonista |
O texto abaixo tem pelo menos quinze anos, foi escrito quando ainda atuava como professor de Comunicação Comunitária na FAAP, no curso de Comunicação Social, na época um dos mais concorridos entre os jovens pertencentes à nata da sociedade burguesa paulistana, e bem por essa razão, um dos mais caros da cidade. A reflexão sobre o liberalismo na pós-modernidade, já bastante em voga nos meios acadêmicos, aqui formulado em seu processo de diluição - e não de constituição - do indivíduo livre e bem-sucedido, me parece muito atual.
Provavelmente em função da fatalidade neoliberal ao longo do processo histórico, cuja essência se manifesta na ambição pelo lucro desavergonhado, lamento as perdas desse tempo: o saudável curso de Comunitária, no qual tive o prazer de contribuir por mais de 11 anos; a decadência da pujança da instituição, que se perdeu em meio às fúteis escolhas administrativas; e a falência do local em que ocorre o encontro com meu aluno, a então magnífica livraria Cultura.
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A livraria estava no caminho do mercado,
iria comprar umas frutas para o desjejum da manhã, e vi que ocorria um
lançamento, um autor desconhecido de uma literatura que não me interessava. Mas
ainda assim achei por bem entrar por uns minutos, ver os títulos
recém-chegados, sentir o movimento, o frisson na fila de autógrafos, nada além
do que esses pobres desejos.
Diante da estante de filosofia,
folheava uma pequena biografia de Heidegger quando alguém me tocou nas costas.
Ao virar-me, deparei com o garçom sustentando uma bandeja em uma das mãos e com
a outra enchendo uma taça com um vinho vagabundo. Sorriu-me e proferiu a frase
do dia, "Como vai, professor?". Não estava a fim de pensar em nada
àquela altura da noite, o cansaço envolvia meus sentidos e a desolação começou
a invadir-me. "Lembra-se de mim?", questionou-me, com seu semblante
vivaz. Olhei bem nos olhos do jovem garçom que acabava de encher minha taça.
Dei uma risadinha sem graça e perguntei como estava. Ele estendeu-me o copo de
maneira polida e sem perder a compostura facial, disse que ia tocando a vida.
"Consegui este trabalho faz dois meses... com o tempo, consigo uma função
na administração...", e me falou de sua conquista sem perder o sorriso
prestimoso. Peguei a taça de vinho vagabundo e suas obrigações como garçom
aliadas ao meu torpor colocaram um ponto final ao encontro. "Até mais,
professor, foi um prazer vê-lo...", e logo se afastou para o próximo
cliente.
Pouco depois saí da livraria
apertando o passo para encontrar o mercado ainda aberto. Refletir sobre o
ocorrido foi uma consequência inescapável. Se foi meu aluno, devia ter se
formado em comunicação, e a razão de não me recordar de sua fisionomia confirmava
sua discrição como aluno. Bem, não ter passado de um aluno mediano não era razão suficiente para distribuir taças de vinho em um lançamento de livro. Está bem, vamos começar de novo: o fato de
ter se formado numa das melhores faculdades de comunicação de São Paulo deveria
lhe apresentar possibilidades de voos mais ousados na área. Perguntei-me o que
faria com os conhecimentos adquiridos. Nossas
conversações sobre a consciência da realidade social, sobre a importância do outro, as discussões sobre os filmes
vistos, documentários de Eduardo Coutinho, o Irã de Makhmalbaff e Kiarostami... As leituras
feitas sobre a cordialidade
Enquanto escolhia laranjas, maçãs, bananas, reconheci o que me havia molestado de modo especialmente cruel naquele encontro: a assepsia, o excesso de zelo, sem lugar para o gesto autêntico do entusiasmo ou da decepção. Ao contrário, o sorriso que permeou nossa conversação foi uma necessidade imposta pelo nosso admirável mundo insosso. Da parte dele, indicou a gentileza do bom atendimento, condimentada por uma conversa acessória, bastante contida sobre o passado recente. E da minha parte, o sorriso evidenciou a satisfação pelo serviço prestado, condimentado pelo breve deleite de ser lembrado por um ex-aluno. Nossas almas não foram recompensadas. Sonhos e emoções diluídos como água na água.
O que me convence da funcionalidade pós-moderna, ainda uma vez, é a engrenagem que se alimenta de frivolidades sedutoras. Não deseja se sustentar por sua força intrínseca, mas por uma eficiente concorrência que se dissimula como essência de nossas ações. Após ouvir a cantilena de que deus é pai, agora me preparo para compreender que a verdade do mundo é ilusão, ou melhor dito, conforme as palavras de Hamsum, citadas por Heidegger, "(o nada) instala-se entre seus ouvidos e escuta o vazio verdadeiro. De todo curioso, uma alucinação (...) Aqui, porém, o Nada sobre nada. Não há nada, nem sequer um buraco. Só se pode balançar resignadamente a cabeça".