18 agosto 2021

Esperanças e desilusões

 

A mudança que traria dignidade


Participo como expositor do próximo Comunicon, em outubro, promovido pelo PPGCOM da ESPM, depois de três anos da ocorrência do último. O texto que apresento estava pronto para aquele evento, e tive que atualizá-lo um pouco às pressas. Essa necessidade se deu em razão do artigo desenvolver sua estrutura teórico-metodológica embasada nos acontecimentos políticos que surgem com o golpe cívico-militar de 1964 e, passando pelo "golpe suave" de 2016, alcança os nossos dias. Como pano de fundo, o desenvolvimento social, ou de maneira mais direta, o descaso das políticas públicas produzido de maneira acintosa pela maioria dos atores políticos responsáveis, ao longo desse período de quase 60 anos, com a grata exceção dos governos de Lula e Dilma.

Como exemplo, tomo a cidade de Remígio, no interior da Paraíba, um caso de pobreza endêmica nos anos 1990, que em vinte anos se transforma radicalmente graças principalmente ao Bolsa Família, tão vilipendiado pelos governos posteriores. Lamentavelmente não tive tempo de atualizar as bibliografias referentes aos dados públicos utilizados no artigo escrito em 2018 - suas referências estão "vencidas", ou, não foram localizadas nos acessos presentes. O que não desvaloriza os dados ali lançados, bem como a certeza de que, com um mínimo de cuidado e respeito com o bem-estar social, as desgraças seculares podem ser superadas com dignidade. 

Abaixo, destaco partes do texto, que deverá fazer parte dos anais do congresso em novembro.

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UTOPIAS, UCRONIAS E DESILUSÃO: a tragédia das políticas de desenvolvimento social, 1964-2021 


I – Estratos analíticos do golpismo, 1964

Um pensamento contrafatual ou ucrônico que sempre está presente quando analisamos um acontecimento marcante do passado, seja pessoal ou ligado à história social, nasce da pergunta “que teria acontecido se...?”. Por vezes, ao debruçarmos em um fato histórico, sofremos a tentação de imaginar o que teria acontecido se determinadas situações não tivessem ocorrido da maneira como ocorreu. No transcurso do golpe cívico-militar de 1964, foram muitos os “ses” que, entre o dia 31 de março e o dia 2 de abril, nos permite exercitar possibilidades contrafáticas que por certo teriam mudado o curso da história. O pior dos cenários se estabeleceu: o que passou a ser chamado de Revolução, na verdade incorporou a demolição das utopias populares que se criavam, englobadas nas propostas das reformas – agrária, política, tributária. 

Outros caminhos, diante do contexto histórico, possuíam maior chance de terem sido trilhados, não foram. E se a divisão enviada do Rio pelo I Exército, então sob o comando legalista, tivesse enfrentado a tropa rebelde de Mourão, vinda de Juiz de Fora? E se o Palácio da Guanabara, sob o governador golpista Carlos Lacerda, tivesse sido isolado em suas comunicações com o mundo externo? E se o II Exército, sob o comando do então legalista Amaury Kruel, não tivesse se bandeado para o lado golpista no segundo dia da intentona? E se Goulart tivesse aceito a sugestão de Brizola para enfrentar o golpe, resistindo desde Porto Alegre, junto ao poderoso III Exército? Todas essas questões possibilitam imaginar desdobramentos alternativos ao golpe institucional que, por longos 21 anos, mudaria completamente a face política do país. (...)

Triste observar a evolução dos acontecimentos, sem deixar de alimentar o desejo íntimo de uma ruptura alternativa; desprender-se de alguma forma da realidade e pela ficção poética, alcançar a utopia imaginada. Novamente o exercício de considerar a alternativa ucrônica, a derrota do golpe cívico-militar, nada mais sugere do que a possibilidade da continuidade utópica sonhada em um contexto social mais solidário, reafirmando sua beleza imaginária na realização de certas propostas sociais de justiça e distribuição da riqueza. Entretanto, o desdobramento, por mais absurdo e abusivo, deságua na brusca mudança do Brasil, o fim de um processo e o início de outro, trágico, embasado em outros projetos políticos que excluiriam o bem-estar social. 

Para que isso ocorresse, sem dúvida foi decisiva a participação de diversos atores sociais que permitiram com que o golpe fosse bem-sucedido, não só nas fileiras militares, como na sociedade civil. De Kruel no II Exército aos governadores Magalhães, Lacerda e Ademar de Barros, passando por institutos como Ipês-Ibad e instituições femininas como a CAMDE carioca, a UCF (União Cívica Feminina) e MAF (Movimento de Arregimentação Feminina) paulistas, sem contar a interferência direta da CIA e do Departamento de Estado. 

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II - Remígio, Paraíba

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Uma percepção intuitiva e outra concreta sobressaem na dolorosa releitura deste caderno, publicado há mais de 20 anos. No primeiro caso, com base nas relações cotidianas do mundo ao redor e nas informações colhidas em diversas fontes, sem uma análise científica profunda e abrangente para este trabalho, a apreensão de que houve uma saudável mudança, ainda que não completa, nas condições de acesso e cidadania das populações dos municípios menos favorecidos de nosso país, e aqui destacando em especial a região Nordeste, que deu um salto consistente de qualidade, não considerando seus centros urbanos mais avançados, mas as regiões mais isoladas, em pleno agreste. A realidade descrita por Graciliano Ramos, filmada por Gláuber e pintada por Portinari, hoje, definitivamente, não é mais a mesma.

A percepção concreta se escora em trabalhos sérios como o produzido por Walquíria Rego e Alessandro Pinzani, no livro Vozes do Bolsa Família - autonomia, dinheiro e cidadania. Destaco da obra um trecho sugestivo, "(...) As pessoas não precisam mais passar seu tempo pensando exclusivamente em procurar comida suficiente e podem dedicar-se a atividades (inclusive econômicas) diversificadas. (...) (e também) ganham mais autonomia ao se tornarem responsáveis pela maneira como o dinheiro da bolsa é usado". (REGO e PINZANI, 2014, p.205-206).

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IV - As sequelas escravocratas

O capítulo As Raças e os Mitos do livro de Dante Moreira Leite, O Caráter Nacional Brasileiro, contribui para compreendermos mais a formação social e política de nosso país. Em especial, são abordados dois pensadores conservadores do início do século XX, Nina Rodrigues e Oliveira Viana, fortemente influenciados pelo que se denominava então de evolucionismo social, com um olhar pessimista para a nossa miscigenação.

O olhar racista de Nina Rodrigues para nossa sociedade analisava o negro como raça inferior, e dessa forma, a herança de nosso mestiçamento marcada pelo equilíbrio mental instável que acarreta, inferindo-se, conforme Moreira Leite, que o brasileiro seria um desequilibrado. De Oliveira Viana, a descrição social pouco ou nada tem de científico, onde enaltece os sentimentos de uma aristocracia rural do início de nossa colonização, "não são eles somente homens de cabedais, com hábitos de sociabilidade e luxo; são também espíritos do melhor quilate intelectual e da melhor cultura" (LEITE, 2002, p.294).

Moreira Leite desmonta passo a passo a construção dessa hipotética visão idílica de nossa sociedade; a esse respeito, vale a pena consultar as páginas de Tinhorão Ramos sobre o cotidiano tedioso e modorrento no período do Brasil Colônia, mais animado nos espaços onde a festa e o batuque de negros escravos, quando permitidos, se faziam presente. A aristocracia rural, para Oliveira Viana, constituía o "centro de polarização dos elementos arianos da nacionalidade" (LEITE, 2002, p.297), por certo aqui influenciado pelos ventos do fascismo europeu que sopravam vigorosos nos anos 1930.

A discussão em aula torna-se muito oportuna pois assim identificamos de algum modo a linhagem do pensamento conservador, machista e ainda com fortes elementos escravocratas de nossa elite econômica, que promoveu o golpe institucional para assumir as rédeas políticas, ao modelo da Velha República, para não dizer do Segundo Império. Nina Rodrigues e Oliveira Viana são apenas alguns dos representantes desse pensamento arcaico, que como Euclides da Cunha, Silvio Romeiro e tantos outros intelectuais formadores de opinião, escoravam-se nas teses do embranquecimento como o caminho para a virtude moral e o desenvolvimento da nação.

As marcas desse pensamento derivadas da superioridade biológica persistem nos dias presentes, em manifestações regulares pelas redes sociais, reproduzidas por quem apenas se inspira em reproduzir e causar impactos, sem mensurar os efeitos.

V - Tempo de retrocessos e incertezas

Houve um recuo histórico, em que a memória da República Velha restabeleceu-se com os retrocessos trabalhistas que nos reduziriam às formas organizacionais dos anos 1910, onde a luta e os embates trabalhistas simplesmente inexistiam, com a exceção das mobilizações anarquistas. Excluídas do poder, parcelas organizadas da sociedade forçosamente são levadas  a condensar significantes, mobilizando-se em torno das mais urgentes prioridades. Não é difícil imaginar uma renovada onda de experimentações, a consolidar experiências políticas que possam restabelecer verdadeiramente o Estado de direito em sua plenitude, longe dos aventureirismos conduzidos pelos interesses de uma envelhecida e corrupta oligarquia.

Para Marx, a linha de produção tem a função precípua de alienar o trabalhador em relação ao produto final do seu trabalho e, consequentemente, do valor agregado como resultado de seu esforço. Em outras palavras, torna-se dono apenas de sua força de trabalho, gerando a plus valia ao patrão ou dono dos meios de produção. Contrapõe, então, que o objetivo deve ser exatamente o oposto, o trabalho como um processo de humanização do trabalhador, na medida em que se conscientiza do seu valor. A consciência política o difere da materialidade produtiva da máquina, e sua organização social consolida o processo histórico que culmina na luta de classes. Conforme descrito no final do Manifesto, torna-se indispensável (nos operários) "uma consciência nítida do antagonismo hostil entre a burguesia e o proletariado". Não há como negar esse precipício de diferenças, não há como fugir do embate que se coloca.

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Conclusão

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Fortemente entrelaçados, essas instâncias da vida civil abafaram o descontentamento das classes trabalhadoras, ignorando qualquer movimento que surgisse desses setores. A virulência e principalmente a determinação contra a normalidade institucional do país, vindos do executivo, legislativo e judiciário, demonstra que seus atos foram pensados e desenvolvidos por forças ideologicamente muito bem estruturadas, internas e externas. Grupos de estudos e reflexão pautados por um liberalismo virulento, com forte ascendência e circulação nas classes dominantes deste país, decerto deixaram um contributo decisivo, eliminando os cuidados que sempre pautaram a política congressual.

Alguns desses agentes reverberam de maneira agressiva, e acrescidas à verborragia do capitão que ocupa a cadeira da presidência, tratam de fazer terra-arrasada com o sentido da política como ciência dirigida ao bem público, tal como a conhecemos desde o surgimento da das teorias modernas, com Maquiavel, Bodin, Hobbes, dentre outros.



06 agosto 2021

Luis Buñuel

 

Buñuel por Dalí

Minha leitura de Meu último suspiro, autobiografia de Luis Buñuel, escrita no crepúsculo de sua vida, foi feita sem qualquer linearidade, bastante próxima à irreverência surrealista, com idas e vindas, sem qualquer formalidade. Comecei pelo fim, depois saltei para o começo e detive-me a maior parte do tempo no miolo, nos anos intermediários, a partir da realização de Un chien andalou. Se o seu cinema me seduz de maneira incondicional pela originalidade, pela ousadia, seu texto me surpreendeu, revelando um Buñuel sem inspiração, muitas vezes desagradável e sem graça. A narrativa é desequilibrada, alternando passagens marcantes, como o período da guerra civil espanhola, com momentos descartáveis, quando descreve determinadas lembranças, que a seu ver, são engraçadas ou curiosas.   

Talvez seja essa sua proposta, não ser um livro sério, buscando constantemente aquilo que diz faltar no mundo moderno, provocação. Nesse sentido, o niilismo presente em determinadas atitudes soa obtuso, quando, por exemplo, diz que "(...) a ciência não me interessa. Parece-me pretensiosa, analítica e superficial (...)", argumento que, hoje em dia, soaria perigosamente frívolo, simpático à onda negacionista que varre o mundo. Alimenta a narrativa com fofocas de bastidores, como quando descreve sua amizade com Dalí, trazendo detalhes íntimos, "Sua vida sexual foi praticamente inexistente. Era um imaginativo, com tendências ligeiramente sádicas", ou revelando as diferenças (não tão bem assimiladas) que terminaram por distanciá-los por décadas. 

O livro traz as relações com intelectuais do universo surrealista e fora dele, demonstrando muitas vezes uma contradição insuperável, como ao reforçar conscientemente uma postura irreverente em inúmeras atitudes, e ao mesmo tempo se deixar levar por "prazeres burgueses", como por exemplo, o gosto em tomar drinques com Chaplin à beira da piscina, em Beverly Hills. Tem uma satisfação irresistível em descrever situações vivenciadas com personalidades do cinema, como as que teve com o próprio Chaplin, ou intelectuais de um modo geral, como com Lacan, onde tem a oportunidade de destacar passagens com pouca relevância.

Com tudo isso, seu livro me parece indispensável, prendeu longamente minha atenção. No meio dos pequenos pecadilhos, há momentos fortes, muito interessantes, como normalmente ocorre com a descrição das produções de seus filmes, ou o capítulo em que circula entre a Espanha convulsionada pelos enfrentamentos políticos e a França, que o acolhe em suas necessidades cinematográficas e intelectuais, nos anos 1930. Para mim foi uma notável descoberta seu documentário de 1933 (e que posteriormente assisti no Youtube), Les Hurdes, tierra sin pan. Não só pelo registro de um lugar miserável nas montanhas da Extremadura, mas pela coragem da denúncia social. 

A parte final descreve, com admirável autenticidade, a solidão e a decrepitude do corpo, sem dúvida aprofundados por seu sistema de crenças, pautado no ateísmo e na irreverência surrealista, que o acompanham até o último de seus dias. E termina com uma confissão, "apesar de meu ódio pela informação, gostaria de poder erguer-me entre os mortos, a cada dez anos, caminhar até uma banca de jornais e comprar alguns. (...) com os jornais debaixo do braço, lívido, esbarrando nos muros, retornaria ao cemitério e leria os desastres do mundo, antes de tornar a dormir, satisfeito na proteção tranquilizadora da sepultura".