Uma Clio sertaneja vai ao encontro de Conselheiro |
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Lotman explica que o texto pode ter muitos extratos e ser semioticamente heterogêneo, a exemplo dos textos artísticos. Entrando em contato com o contexto circundante, como seu público, deixa de ser uma mensagem dirigida de um destinador a um destinatário. Mostrando capacidade de condensar informação, adquire memória. Pode crescer por si mesmo e, dessa forma, funcionar como dispositivo intelectual: não só transmite informação depositada nele a partir de fora, mas também transforma mensagens e produz novas. Esta capacidade geradora dos textos enfatiza também uma memória-gênese na cultura necessária para produzi-los, pois como afirma: “a memória não é para a cultura um depósito passivo, mas constitui uma parte de seu mecanismo formador de textos”. Para que isso aconteça, entendemos a memória da cultura e dos textos também construída por meio de códigos que operam e organizam sua orientação.
A memória-gênese, projetiva, que enxergamos na semiótica de Lotman, ajuda a pensá-la não apenas como “memória do passado”, como traz Paul Ricoeur ao explicar a conceituação de memória em Aristóteles, mas também como memória do futuro. Futuro não necessariamente como o que se coloca adiante, mas paralelo ao presente, tal qual entendido na teoria retrofuturista, explicada abaixo – ou ainda, como já dito sobre a figuração de Clio, no que está contido no caminho não percorrido.
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Há muito tempo a pergunta o que
teria se passado se...? inquieta cientistas e alguns trabalhos deram início a estas
respostas em investigações mais sistemáticas sobre o que tem sido chamado de
pensamento contrafactual. O interesse
acadêmico por estas reflexões, explica o professor da Universidade de Zaragoza
e estudioso do tema, Pelegrin Campo (2010), teve início nos anos de 1940 no
âmbito da psicologia, mas alcança agora áreas tão diversas quanto a economia, a
astronomia, a geografia, os estudos de marketing, a história. O pesquisador
ensina que as colocações contrafactuais relativas a episódios e processos
históricos específicos do passado se propõem a estudar até que ponto uma
mudança na sucessão dos acontecimentos conhecidos poderia ter modificado o
futuro histórico em uma direção diferente.
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Pelegrin Campo
identifica que nos anos de 1980, com os trabalhos do historiador britânico,
Hugh Trevor-Roper, destacam-se a importância do acidental e da decisão
individual na história e a necessidade de considerar as possibilidades
alternativas. “A história não é meramente o que sucedeu: é o que ocorreu no
contexto do que poderia ter ocorrido. Consequentemente, deve incorporar, como
elemento necessário, as alternativas, o que poderia-ter-sido”. Diante do exposto, faremos, a seguir, uma
abordagem da importância do episódio de Canudos no contexto político e social
brasileiro.
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No último capítulo de seu livro Em busca de novo modelo, Celso Furtado faz uma justa reverência a Euclides da Cunha e sua obra magna, Os Sertões. Retoma o olhar visionário do escritor, quando descreve o sertanejo de Canudos, essa "gente indomável" que diante de toda sorte de privações e infortúnios, teima em lutar por sua causa. A resistência sem trégua necessitou de quatro expedições para ser derrotada, e o foi de maneira completa, brutal, impiedosa. Segundo Furtado, o engenheiro e naquela ocasião cronista a serviço do Estado de São Paulo, Euclides da Cunha, "percebeu com lucidez a gravidade das contradições inerentes à nossa formação histórica, as quais se manifestam nas profundas desigualdades sociais que tanto demoramos a reconhecer".
Para além das equivocadas doutrinas raciais que moldavam a antropologia da época, Furtado destaca a percepção intuitiva que Euclides demonstrava com os sertanejos, aludindo à importância de incorporá-los à nossa vida política. Essa intuição considerava o processo de formação de nossa cultura, e a indispensável inclusão daquela gente rústica e combativa, para a garantia de nossa evolução social. Furtado nos mostra que o episódio de Canudos, salvo do esquecimento pela narrativa de Euclides da Cunha, se inscreve como um acontecimento simbólico para compreendermos um país em construção, onde emergem problemas estruturais como a fome, o analfabetismo, o latifundismo. Ao final de seu belo ensaio, destaca que "o mitológico sertanejo euclidiano deve ser visto como a prefiguração do cidadão consciente que hoje se afirma".
Quando teve a oportunidade de atuar como ministro do planejamento do governo João Goulart, Furtado procurou sanar os problemas crônicos e seculares da região nordeste. Procurando articular planejamento e política de longo prazo juntamente com os governadores da região, considerava inadiável a ênfase em obras de infraestrutura (estradas e eletrificação) para a industrialização. A história comprova que, com o golpe cívico-militar de 1964, todas essas propostas seriam descartadas, eliminando a possibilidade do pequeno agricultor fixar-se à terra, levando-o a migrar massivamente para as regiões mais industrializadas do centro-sul. Mais adiante veremos o quanto esse amalgama urbano-rural irá influenciar na formação e estruturação do MST, e desse movimento, a possibilidade da escolha utópica como realização de um sonho sempre postergado.
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A força do processo histórico recupera os referentes simbólicos do passado e dessa maneira, Glauber em seu Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) incorpora Conselheiro na figura de Sebastião, que percorre o sertão arrebanhando almas a partir de suas promessas idílicas, e retrata a violência sertaneja compondo personagens como Antonio das Mortes, o matador de aluguel a serviço da igreja e dos latifundiários, e Corisco, como representante do cangaço. Naquele momento, o cinema brasileiro renovado, que prenunciava um futuro em suas formas estéticas e temáticas, passa necessariamente pela recuperação da história social, recriando o espaço-tempo de uma região simbólica onde as narrativas se inserem em uma interpretação crítica do passado, e nada mais pedagógico do que a construção de personagens alegóricos a representar o poder e a pobreza crônica. Uma vez mais Canudos surge como referencial para a ruptura de nosso arcaísmo social, marcado por profunda desigualdade estrutural, e subjaz como memória de um futuro de novas esperanças.
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