24 julho 2021

Clio encontra Conselheiro

 

Uma Clio sertaneja vai ao encontro de Conselheiro

Clio, musa feita de sangue sertanejo, cujo santuário não está em Helicon, mas nas barrancas do rio Vaza Barris, faz de seu encontro com Antonio Conselheiro a redenção da nossa memória social, o elemento ucrônico que pelas derivas heterotópicas, alimenta o futuro utópico de nosso povo. Para que esses tentáculos temporais se harmonizem em suas dimensões históricas e míticas, o que deixou de ser no início se realiza nas ações políticas do movimento dos trabalhadores rurais sem terra, MST. 

A Clio, tal como descrita por Iuri Lotman é “uma peregrina que vai de encruzilhada em encruzilhada e escolhe um caminho”, e nesse sentido, sacramenta em idas e vindas, em erros e acertos, a consumação do ideal buscado desde o princípio, e que pela imposição de conjunturas desfavoráveis, apenas deixou indicado o caminho pelo qual Conselheiro desejava trilhar com seu povo. 

Passamos então pela tragédia de Canudos descrita por Euclides, pelas derrotas populares que deixaram de contemplar os projetos sociais de Celso Furtado e emolduraram o sentido épico da obra de Glauber Rocha, para só então, se realizar pela mobilização inventiva e pela ação imaginativa de grupos populares como o MST. A memória alimentada por Clio anulando o medo construído por nossas elites ao longo do tempo e assim, rompendo com a visão tradicionalista das narrativas que nos corrompem o conhecimento da história.

Esta é uma breve síntese do artigo "Clio e a memória do futuro: ucronias, utopias e heterotopias nos assentamentos do MST", que tive a imensa alegria de realizar em coautoria com minha querida Mônica Nunes, e que ao final, teremos o orgulho de ver publicado em uma importante referência acadêmica, a revista Lumina, da UFJF. 

Abaixo, dois ou três momentos do ensaio. 

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Clio e a memória do futuro: ucronias, utopias e heterotopias nos assentamentos do MST 

Mônica Rebecca F. Nunes
Marco Antonio Bin

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Lotman explica que o texto pode ter muitos extratos e ser semioticamente heterogêneo, a exemplo dos textos artísticos. Entrando em contato com o contexto circundante, como seu público, deixa de ser uma mensagem dirigida de um destinador a um destinatário. Mostrando capacidade de condensar informação, adquire memória. Pode crescer por si mesmo e, dessa forma, funcionar como dispositivo intelectual: não só transmite informação depositada nele a partir de fora, mas também transforma mensagens e produz novas. Esta capacidade geradora dos textos enfatiza também uma memória-gênese na cultura necessária para produzi-los, pois como afirma: “a memória não é para a cultura um depósito passivo, mas constitui uma parte de seu mecanismo formador de textos”. Para que isso aconteça, entendemos a memória da cultura e dos textos também construída por meio de códigos que operam e organizam sua orientação.

A memória-gênese, projetiva, que enxergamos na semiótica de Lotman, ajuda a pensá-la não apenas como “memória do passado”, como traz Paul Ricoeur ao explicar a conceituação de memória em Aristóteles, mas também como memória do futuro. Futuro não necessariamente como o que se coloca adiante, mas paralelo ao presente, tal qual entendido na teoria retrofuturista, explicada abaixo – ou ainda, como já dito sobre a figuração de Clio, no que está contido no caminho não percorrido. 

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Há muito tempo a pergunta o que teria se passado se...? inquieta cientistas e alguns trabalhos deram início a estas respostas em investigações mais sistemáticas sobre o que tem sido chamado de pensamento contrafactual.  O interesse acadêmico por estas reflexões, explica o professor da Universidade de Zaragoza e estudioso do tema, Pelegrin Campo (2010), teve início nos anos de 1940 no âmbito da psicologia, mas alcança agora áreas tão diversas quanto a economia, a astronomia, a geografia, os estudos de marketing, a história. O pesquisador ensina que as colocações contrafactuais relativas a episódios e processos históricos específicos do passado se propõem a estudar até que ponto uma mudança na sucessão dos acontecimentos conhecidos poderia ter modificado o futuro histórico em uma direção diferente.

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Pelegrin Campo identifica que nos anos de 1980, com os trabalhos do historiador britânico, Hugh Trevor-Roper, destacam-se a importância do acidental e da decisão individual na história e a necessidade de considerar as possibilidades alternativas. “A história não é meramente o que sucedeu: é o que ocorreu no contexto do que poderia ter ocorrido. Consequentemente, deve incorporar, como elemento necessário, as alternativas, o que poderia-ter-sido”. Diante do exposto, faremos, a seguir, uma abordagem da importância do episódio de Canudos no contexto político e social brasileiro.

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No último capítulo de seu livro Em busca de novo modelo, Celso Furtado faz uma justa reverência a Euclides da Cunha e sua obra magna, Os Sertões. Retoma o olhar visionário do escritor, quando descreve o sertanejo de Canudos, essa "gente indomável" que diante de toda sorte de privações e infortúnios, teima em lutar por sua causa. A resistência sem trégua necessitou de quatro expedições para ser derrotada, e o foi de maneira completa, brutal, impiedosa. Segundo Furtado, o engenheiro e naquela ocasião cronista a serviço do Estado de São Paulo, Euclides da Cunha, "percebeu com lucidez a gravidade das contradições inerentes à nossa formação histórica, as quais se manifestam nas profundas desigualdades sociais que tanto demoramos a reconhecer". 

Para além das equivocadas doutrinas raciais que moldavam a antropologia da época, Furtado destaca a percepção intuitiva que Euclides demonstrava com os sertanejos, aludindo à importância de incorporá-los à nossa vida política. Essa intuição considerava o processo de formação de nossa cultura, e a indispensável inclusão daquela gente rústica e combativa, para a garantia de nossa evolução social. Furtado nos mostra que o episódio de Canudos, salvo do esquecimento pela narrativa de Euclides da Cunha, se inscreve como um acontecimento simbólico para compreendermos um país em construção, onde emergem problemas estruturais como a fome, o analfabetismo, o latifundismo. Ao final de seu belo ensaio, destaca que "o mitológico sertanejo euclidiano deve ser visto como a prefiguração do cidadão consciente que hoje se afirma".

Quando teve a oportunidade de atuar como ministro do planejamento do governo João Goulart, Furtado procurou sanar os problemas crônicos e seculares da região nordeste. Procurando articular planejamento e política de longo prazo juntamente com os governadores da região, considerava inadiável a ênfase em obras de infraestrutura (estradas e eletrificação) para a industrialização. A história comprova que, com o golpe cívico-militar de 1964, todas essas propostas seriam descartadas, eliminando a possibilidade do pequeno agricultor fixar-se à terra, levando-o a migrar massivamente para as regiões mais industrializadas do centro-sul. Mais adiante veremos o quanto esse amalgama urbano-rural irá influenciar na formação e estruturação do MST, e desse movimento, a possibilidade da escolha utópica como realização de um sonho sempre postergado.

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A força do processo histórico recupera os referentes simbólicos do passado e dessa maneira, Glauber em seu Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) incorpora Conselheiro na figura de Sebastião, que percorre o sertão arrebanhando almas a partir de suas promessas idílicas, e retrata a violência sertaneja compondo personagens como Antonio das Mortes, o matador de aluguel a serviço da igreja e dos latifundiários, e Corisco, como representante do cangaço. Naquele momento, o cinema brasileiro renovado, que prenunciava um futuro em suas formas estéticas e temáticas, passa necessariamente pela recuperação da história social, recriando o espaço-tempo de uma região simbólica onde as narrativas se inserem em uma interpretação crítica do passado, e nada mais pedagógico do que a construção de personagens alegóricos a representar o poder e a pobreza crônica. Uma vez mais Canudos surge como referencial para a ruptura de nosso arcaísmo social, marcado por profunda desigualdade estrutural, e subjaz como memória de um futuro de novas esperanças. 

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14 julho 2021

O senhor Bonilla e seus irmãos

 

Mazatlán, 1997

Meus pais estão velhos. Faço esta constatação com duro pesar na alma, depois deste fim de semana, quando estive na casa deles, a dois dias de cavalgada, para comemorar o aniversário de meu pai, 95 anos. Estão firmes, porém frágeis. A grande casa aprofundou-me a impressão da delicadeza da vida, do fim que não está distante, e mais forte que isso, as impressões da vida que vivemos, em seus belos e dolorosos quadros, não mais vinculada ao presente. É como se tudo o que vivemos no passado, em família, fosse a visão de um simulacro, a enunciação confusa do que poderia ter sido e não foi. 

Desvelo com mais clareza – nas minhas reflexões e nas conversas com meus irmãos – o percurso em que as peças se juntaram poucas vezes para definir algo coletiva e sentimentalmente poderoso: estivemos em grande parte dessa caminhada muito à deriva, em uma sintonia abstrata, o que propiciou tanto distanciamento, tanto “não sei bem o que dizer”. Essa experiência não foi suficiente para produzir animosidade entre nós, mas certamente os anos forjaram um vazio que não pôde ser preenchido ao longo do convívio. 

O amor que subsiste não é artificial, mas extravasa de maneira complexa o improviso da edificação de nossa proximidade. Em certas ocasiões, ele emergiu copiado dos códigos de etiqueta ao estilo segundo império. Em outras, brotou com a força de uma coisa esquisita, marcada pelo não-vivido. Sempre soubemos tratá-lo de acordo com as circunstâncias, e isso, de um modo ou de outro, resultou no vazio, na carne de nossa precariedade relacional.

E assim é, o que vejo a cada vez que entro naquela grande casa é falta. Perdemos as melhores chances de criarmos uma felicidade conjunta. Cada um tratou de compor a sua felicidade coletiva com base na sobrevivência individual. Sobrevivemos assim, de alguma forma juntos, preservando o respeito, o carinho, as datas festivas – tudo dentro daquele almanaque conservador. O amor aí decorrente só poderia surgir como um exercício vago, estranho, com poucas brechas para sua significação mais genuína. 

Talvez quem tenha vivido com mais autenticidade os sentimentos coletivos de amor e carinho tenha sido Cordélia, minha irmã. Ela de algum modo ajudou a preservar o que nem mesmo ela sabia a fundo. Hoje, conversamos com muito carinho sobre todas essas faltas que visualizamos ao retomar as lembranças e encontramos uma forma de amor que nos apazigua. É verdade que com Ramón, meu irmão, a léguas de distância, essa prática é menos corriqueira, mas não temos dificuldades em “tê-lo” conosco. 

Quando esvaziamos o escritório de meu pai, há poucos anos, permanecemos lá, juntos, permeados por um intenso sentimento que nos parecia improvável. Enquanto revolvíamos o vazio daquelas caixas de documentos, aprendíamos a preencher com um sentimento acolhedor, muito próximo ao amor que desconhecemos ao longo da vida. 

É possível dizer que o mesmo ocorre quando nós, os filhos, nos juntamos a nossos pais. As faltas sentidas nos ajudam a conectar com as representações cultivadas por eles, e retomamos as pontes fragmentadas de suas ausências a partir de brincadeiras, de interpretações de fatos reais, mas sobretudo, penso eu, de nossos sonhos. Então fica assim, nós filhos os encontramos fragilizados, ainda com boa saúde, e reconstruímos o significado da família. Do presente para o passado e daí para o que resta do futuro. Já não se trata de alimentar a beleza do que foi, porque não foi, mas de exercitar o amor com as peças à mão. 

Uma empreitada aparentemente difícil, mas que no fundo é tão suave quanto a brisa noturna de verão. Quando retomo com minha irmã, diante de uma boa garrafa de vinho ao final da noite, as histórias compartilhadas, é como se as vivêssemos pela primeira vez de modo autêntico. A dureza dos fatos e as peripécias do imaginário nos redime e realiza a conexão com o que está por vir, com menos ruído. 

Ao final das contas, quando tudo estiver prestes a terminar, uma dor lancinante nos atravessará e desabaremos em um choro curto, intenso, vívido, profundo, como jamais se pronunciou. Não haverá dinheiro nem posses que amenizará o vazio sentido, deslocado como fardo do presente para o passado consolidado. E colocaremos em dia o amor faltante de tantos anos.

(atualizado em 14.07.2021)



03 julho 2021

Terra Devastada, a peça (2)

"Basta-me permanecer em seu regaço"...


Não foi apenas uma construção ficcional, o que já exigiria muito esforço e dedicação, mas a conclusão de um longo e nem sempre regular estudo sobre a causa palestina, marcada por leituras, conversas, visitas a exposições, entrevistas e o profundo desejo de conhecer mais sobre este doloroso problema político, que se arrasta por décadas.

Fico de algum modo satisfeito com o resultado. Não se trata aqui de enaltecer um lado em detrimento de outro, mas de conhecer um pouco as engrenagens de um impasse que não se mostra em todas as suas faces. É verdade que utilizei em minha pesquisa autores, poetas, pesquisadores que se não são palestinos, analisam a questão sob a perspectiva palestina. 

Claro que essa minha escolha foi pessoal, nada fácil, pois me trouxe muito desgaste emocional. As visões israelenses do conflito estão muito mais acessíveis, embora seja justo dizer que muitos textos e análises (digo os esforços mais densos) apresentam simpatia ao lado palestino. Mas o que fiz foi buscar os olhares palestinos que me pareceram mais equânimes - e cito aqui duas, o intelectual Edward Said e o escritor Raja Shehadeh - para edificar a estrutura da peça. 

A primeira parte, como já havia dito, teve uma primeira versão há 35 anos. Ganhou prêmio, foi apreciada por integrantes do escritório da OLP, mas se resumia a praticamente um esboço do que deveria ser, continha meras seis laudas. De lá para cá, fui adensando a peça, ou o que hoje é o primeiro ato, sabendo que ela solicitava um prosseguimento.

Mesmo exígua, essa inconclusa primeira versão exigiu muita pesquisa. Mergulhei fundamente nos acontecimentos de Sabra e Shatila para montar o drama de uma família, um drama todo pautado nos acontecimentos históricos. Tornou-se ficcional pela elaboração dos diálogos e do cenário. Quando retomei a peça para adensá-la, o que pretendi foi inserir a ação dramática em uma ambientação palestina, e foi aí que os problemas de fato surgiram.

Como disse é muito difícil pesquisar nas redes sobre o tema da Palestina. Poucos e incidentais detalhes sobre a cultura. Tive de contornar diversos obstáculos para chegar a um resultado minimamente aceitável. Ao dar por concluído o primeiro ato, o texto dispunha de vinte laudas. Segui com as revisões, para posteriormente suspender sine die a conclusão do projeto.

A cada retomada do conflito, e isso ocorreu diversas vezes nos últimos 15 anos, eu me organizava para escrever um segundo ato que atualizasse os desdobramentos políticos do conflito. Com a pandemia impedindo os movimentos externos, como as saídas para os cafés, os encontros com os amigos, me concentrei para concluir o trabalho. Colaborou para que as coisas avançassem de modo conclusivo o último ataque israelense, em maio último. E então consegui. 

Em seu formato que considero final (salvo algumas novas correções que eventualmente se façam necessárias) ela tem 35 laudas em espaço simples. E fico feliz que a peça não tenha se transformado em um libelo anti-israelense, mas uma tentativa de reflexão, a partir dos olhares palestinos que avaliam os fracassos políticos acumulados. Uma postura objetiva, mas certamente não imparcial. Para tanto, retomo nos diálogos as concepções de autores como do escritor Gassan Kanafani e do professor Edward Said, que atuaram ativamente em prol da resistência palestina.  

Não pude fugir a esse compromisso de assumir um lado. Alcanço, com o final deste trabalho, a reflexão acumulada por um incômodo que perdura 40 anos. Tinha de escrever, acompanhando e analisando o ponto de vista do infortúnio palestino.

(atualizações em 04.07.2021 e 08.10.2021)