31 janeiro 2021

Carlos Heitor Cony

O golpe de 64: paradigma de destruição

Retomo a leitura de O ato e o fato, livro de crônicas de Carlos Heitor Cony. Na página inicial, o indicativo de quando o adquiri, abril de 2004, justamente quando ele foi relançado, em comemoração aos quarenta anos da quartelada. De lá para cá, apenas a leitura de umas poucas crônicas, talvez até por me dedicar a outros tantos lançamentos relacionados com o acontecimento. 

Antes, fui um assíduo leitor das crônicas de Cony, na famosa página 2 da Folha de SP, isso nos anos 1980 e por um tempo nos anos 1990, quando por alguma razão ainda valia a pena ler o jornal. Cheguei a comprar diversos romances seus, empolgado com o estilo de sua escrita, bela, coerente, insinuante. Suas crônicas diárias assim entusiasmavam, embora confesso, não apoiasse inteiramente as linhas de pensamento político que desenvolvia, a meu ver um tanto ariscas a uma visão social mais profunda, e com isso quero dizer, a uma visão de transformação mais ousada. 

Muitas delas me soavam individualistas, marcadas por um existencialismo dos anos de juventude, que se em um primeiro momento agradava pela liberdade, aos poucos deixava inscrever certa degradação daqueles princípios, quando utilizados para colocar-se como um observador de palanque, não mais desejoso de sujar as mãos no comprometimento com os desígnios do mundo. Talvez a idade ou o cansaço levava-o a esse ponto, a reproduzir o blasé típico de um jornalismo viciado na ambiência burguesa, desconfiado das lideranças e dos movimentos de base. E isso, naquele momento de ascensão do pensamento econômico neoliberal, criava um mal-estar que maculava a beleza de sua escrita, pois a perspectiva história começava a maturar novos caminhos de governança, descartando meios-termos na ação e no pensar políticos.

As compras de jornais foram paulatinamente substituídas pela prática da navegação da internet, pela garimpagem de notícias nos sítios de jornalismo mais independentes, que começaram a jorrar muita informação. Nesse contexto abandonei a leitura dos jornais e, de algum modo, a leitura de Cony. Por fim, dezesseis anos depois, eis-me recuperando a sua crônica, deste livro que por inúmeras razões, me parece antológico, incorporando os elementos de uma obra clássica, ça veut dire, seja qual for o momento em que seja lida, preserva uma saudável atualidade. Vai além: em determinados momentos, a compreensão dos fatos passados torna-se alertas claros para o futuro, para este futuro 60 anos mais tarde. 

Há também um tempero forte em suas linhas, que denomino de galhardia, ou seja, coragem na atitude e elegância no estilo. Ataca o dedurismo, ataca os interrogatórios frequentes de suspeitos, enfrenta os militares de alta patente, faz troça da revolução ao chamá-la de quartelada, e tudo isso sem perder a linha do argumento. Na crônica Judas, o dedo-duro, escreve "Não podemos consentir que meia dúzia de fanáticos, que uma dúzia de histéricos, que duas dúzias de boçais deformem e violentem a Nação e o caráter de nosso povo. Que ninguém delate ninguém, afinal, sábado de aleluia vem inexoravelmente todos os anos. E há postes bastantes para se pendurar os Judas". É ou não é uma oração que prenuncia nossos dias?

Na crônica A revolução dos Caranguejos, escrita apenas duas semanas depois do golpe, não titubeia ao colocar o dedo na ferida, "Sem medo, e com coerência, continuo afirmando: isso não é uma revolução. É uma quartelada continuada, sem nenhum pudor, sem sequer os disfarces legalistas que outrora mascaravam os pronunciamentos militares. É o tacão. É a espora. A força bruta. O coice". Seria ameaçado de tal maneira que optou por tirar a família de casa e colocá-la em local seguro. Como diz Luiz Fernando Veríssimo no prefácio, "Em pouco tempo aquele ato, ler Cony, se tornou um exercício vital de oxigenação para muita gente", e, simultaneamente, o apoio moral expresso em uma resistência cada vez mais passiva e silente. 

Nosso país é assim, um punhado de confederações que, de quando em quando, soe aglutinar-se minimamente em torno de algum propósito, ou como no presente momento, em um despropósito. Não há nação quando uma classe dominante explora violentamente uma massa famélica, levando-a a acreditar que um dia encontrará a salvação redentora no empreendedorismo individualizado. 

Naquele momento, a ação militar contribuiu para rebentar com o relativo espírito coletivo e nacionalista que se forjava havia quase vinte anos, desde a redemocratização do país. Como escreve Cony em Até quando?, "A quartelada - é óbvio - já conseguiu realizar o que nenhum inimigo externo ou interno do Brasil conseguiu fazer em quatro séculos: desmembrou o País, violou nossa unidade". E dessa maneira penso, e sempre refleti em minhas aulas de Teorias Sociais, que o serviço que os militares prestaram a partir de abril de 64 foi, principalmente, deixar-nos psicologicamente atarantados, fisicamente aquebrantados e socialmente prontos para cair de joelhos ante o messias de plantão.

Mas é no final que encontramos o suprassumo de sua obra, as linhas que a consagram como uma obra perene, pela visão do momento e pela percepção atemporal, que nos define como uma terra imersa em ciclos de repetições históricas, ou reprodução de farsas atiçadas pelas classes dominantes, que buscam locupletar-se na desgraça dominante. Ali, em Uma palavra ainda, no epílogo, escreve, "Não importa, afinal, a situação desta hora. Como o náufrago perdido nas ondas, em meio da noite negra, o que importa é sobreviver até a madrugada, ainda que seja apenas para morrer abençoado pelo calor da aurora. Olhando os horizontes que o cercam, o náufrago não saberá de que lado surgirá a luz. Mas espera. Sabe que a aurora, saída das águas, de repente ameaçará uma cor de dia. Essa espera justifica a sua luta e a sua sobrevivência. Também não sabemos, ainda de que lado, de que horizonte surgirão os primeiros clarões que expulsarão as trevas em que estamos mergulhados".

Uma obra perene persiste na antevisão dos acontecimentos narrados pelo autor. Sua sensibilidade a fará mais ou menos significativa, de acordo com aquilo que considera indispensável como relato. Cony escreve macerado pela tacanhez dos atos sucedidos naquele longínquo 1964, mas nos presenteia com palavras que podem perfeitamente expressar nossas esperanças presentes, ao nos debatermos em meio à nova noite negra, de duração imprevista.  

(atualizado em 01.02.2021)



19 janeiro 2021

Poesia 08

 

Seattle, 1997


O VILÃO DE UMA TARDE DE DOMINGO

 

 

Uma bela tarde de sol


o telefone toca, toca

         a casa estremece um pouquinho

         os cães ladram

         o nosso time escolhe o lado de cima da rua

 

o telefone toca, toca

         bocas que bocejaram agora falam

         desejos que despontaram agora sacodem

         o aroma do feijão perpassa as narinas

 

o telefone toca, toca

         e nosso time já marcou o segundo gol

         Johnny voltou da guerra

         o vizinho passa para o terceiro Led

 

o telefone toca, toca

        e as duas sonhadoras despertam

        uma delas atende e lamuria-se:

        - Você acaba de nos acordar!

 

 

                                                                  (mar/84)




09 janeiro 2021

Imagens de viagem, 1997


San Francisco

Essas imagens adormeceram em uma pequena caixa acolchoada, que foi adaptada para acolher os slides fotográficos. Ao todo, cerca de 100 diapositivos e que foram vistos apenas uma única vez. Em julho de 1997 juntei uma grana e fui para Guadalajara participar do Congresso Internacional de Semiótica e ali permaneci cerca de uma semana. Ao final, segui por terra para o norte, Vallarta, Mazatlán, La Paz, na Baja California, Tijuana, Los Angeles, Santa Monica, San Francisco, até Seattle, a fronteira com o Canadá. 

Na estada em Guadalajara, fiz 30 ou 40 imagens em papel. A partir daí, por alguma razão que não saberia dizer, fiz os registros em diapositivo. Revelados logo que regressei, lembro de tê-los apresentado apenas uma vez, em uma sessão na casa do amigo Luiz Otávio, em Taubaté. Depois voltaram para a caixinha acolchoada por mais de 23 anos. Confinado, com tempo para ler e escrever, decidi nestes dias recuperar digitalmente as imagens, com ajuda do aplicativo Helmut. 

Consegui reproduzir a maior parte das fotos, mas em p&b. As imagens mexicanas ficaram, ao meu ver, prejudicadas com a perda das cores intensas do verão. A luminosidade ficou algo opaca, minimizando o brilho das paisagens naturais. Ainda assim, em certos momentos, vejo fortes semelhanças nos domínios morfológicos (clima, luz e relevo) entre o Pacífico mexicano e o da Califórnia. As reproduções urbanas estadunidenses, em especial as de San Francisco, adaptaram-se bem ao preto e branco como se fossem originais. Então confiram, abaixo destaco um punhado de fotos, na ordem cronológica em que foram tiradas. 

Vamos a elas.


Puerto Vallarta



Puerto Vallarta



Mazatlán



Mazatlán



Mazatlán



La Paz (Baixa Califórnia)



La Paz (Baixa Califórnia)



Beverly Hills



Santa Monica



Santa Monica



San Francisco



San Francisco



Seattle



Seattle






08 janeiro 2021

Trump e seus acólitos

 

Seria curioso ver a Grande Nação comandada por esses espectros


A cena chega a ser patética: uma profusão de seres travestidos com as mais esquisitas indumentárias diante do Capitólio, em Washington, em meio à confirmação da vitória de John Biden pelo Congresso. Estava reunida a parcela mais radical dos apoiadores de Trump, que como uma avalancha, decide invadir o recinto, ocupando-o com violência. O saldo final, quatro mortes, dezenas de feridos e um ato grosseiro e mal calculado contra as instituições políticas estadunidenses. Tente imaginar o que significa uma turba intolerante ocupar na marra um espaço público, portando bandeiras confederadas, camisas de apoio a Auschwitz, ou como o cidadão na foto acima, como um fury de búfalo. 

O que esperar dessa carga emotiva e irascível? Massa desgovernada - uma redundância ao próprio conceito de massa, desenvolvido por Canetti em seu excelente Massa e Poder - incapaz de ser portadora de qualquer proposta a não ser rechaçar (eu diria tripudiar) o resultado das eleições presidenciais e cumprir um pretenso chamado épico, America First, impulsionado pelo presidente prestes a deixar o cargo. Se Trump ainda possuía dividendos políticos mesmo na derrota, com o episódio tresloucado desse dia 6 de janeiro, tornou-se um líder isolado pelo mundo, descartado pelo seu partido, pelo próprio vice-presidente, Mike Pence, que se recusou a cumprir seu papel em questionar, na sessão do Congresso, a derrota de seu chefe. 

Espero que o significado simbólico desse acontecimento seja a pá de cal sobre um modo inconsequente de fazer política, amparado na banalidade de um populismo de direita que acreditava-se sepultado, e que reacendeu pela via da estratégia digital de Steve Bannon na eleição de Trump, a distorcer o sentido da diplomacia e a exaltar a truculência adormecida nos rincões reacionários. Por aqui, o capitão desgovernado abriga as futilidades desse caminho: emite impressões lamentáveis sobre a imparcialidade das eleições estadunidenses, correndo em socorro do modelo que igualmente o fez candidato e o elegeu. 

E sem controle, faz advertências perigosas em relação às eleições de 2022, insistindo que as urnas eletrônicas estão destinadas a produzir fraude. Como não tem um pingo de senso democrático e tolerância ao outro, é especialista em fazer barulho em torno de si, em forjar ideias para exibi-las como um exercício inconsequente de destruição. Aliás, foi essa a promessa feita há dois anos, em um jantar na mesma Washington, quando ao lado de seu guru Olavo de Carvalho e diante do mesmo Trump, prometeu primeiro destruir para depois construir. Realiza a destruição com esmero, e lembro que hoje alcançamos no país a dolorosa cifra de 200.000 mortes pela Covid-19.

Nada parece mais lúgubre do que a gestão desse capitão sem amor ao próximo, sem percepção da realidade, sem projeto de nação. Triste por viver esse tempo.

(atualizado em 08.01.2021)