11 janeiro 2020

Jornada em Cambeville



Foram precisos mais de vinte anos para que alguns textos meus ganhassem visibilidade pública. Começou no ano passado, quando publiquei de maneira decente meu premiado A Paixão Inútil (1997). Nesta semana, por fim, consigo publicar em uma revista de filosofia um capítulo de minha dissertação de mestrado (1999), com o título Sartre e o Cinema. E agora vem aos poucos a lume, saindo das prateleiras profundas de minha casa, a premiada novela Jornada em Cambeville (1998). Quero em breve, se possível ainda neste ano, publicá-la decentemente, ou seja, sob uma editora real e registro de ISBN.

O que esses textos têm em comum? Além de terem sido concebidos e produzidos no mesmo período, anos 1990, aportam a temática existencialista, marca indelével de meus primeiros escritos sérios, que conseguiram sobreviver. E é bacana que ressurjam com força agora, tanto tempo depois. Fizeram parte de um momento em que organizava metodologicamente não apenas meus textos literários e acadêmicos, mas minha própria vida, oferecendo-lhe um horizonte embasado em uma visão de mundo humanista e por que não dizer, pronta para agregar o sentido da inquietação revolucionária.

Abaixo, um trecho da novela.

"... a conta à minha frente, um valor simbólico... tome uma nota de cinco, adeus... o calçadão... o movimento do comércio apenas se inicia, os consumidores chegarão mais tarde... a praça da matriz, as imensas portas da igreja... a missa vai avançada... quantas vezes terei adentrado este espaço?... O padre Simphoriano, sua voz de imigrante alemão, incompreensível... Os pássaros voando ao alto, dezenas de pessoas disputando um lugar nos bancos... meu avô sempre na terceira fileira da direita, compenetrado, fiel... O padre conclui o sermão... em outros tempos ficaria arrependido por chegar tão atrasado... os recados para os paroquianos presentes, uns poucos gatos pingados nesta primeira missa do dia, a maioria gente idosa, concentrada nas cadeiras da frente... a penúltima fileira, o banco vazio... sentar... observar... recomeçam os cânticos conduzidos pelas carolas de véu... estranhos, mal distingo as letras pelos ecos difusos das vozes a ressoar no interior da catedral vazia... o teto da nave principal, de uma brancura irretocável, a ausência dos pássaros a voar e a ignorar cá embaixo o movimento dos golpes de mea culpa no peito dos seres arrependidos... no fundo do altar o meu velho conhecido Santo Antonio, a mesma túnica franciscana tendo no colo a pequena criança, que ainda hoje não imagino quem possa ser... o ritual da eucaristia, como todo ritual, um sacrifício para acompanhar... o gestual do padre, muito jovem por sinal, nenhuma ou pouca diferença desde que abandonei a fé cristã... por mais que queira ter algum sentimento saudoso, vejo objetos, aparências, fisionomias, o cenário ao redor, perderam as auras mágicas que propunham acalentar de algum modo o espírito pecador, agora códigos revestidos por uma significação menos sagrada, mais libertadora, dogma que não mais dialoga com a minha razão... as velas seguem queimando... os pórticos menos portentosos... a entrada da sacristia, minha primeira comunhão... o padre dirige-se aos fiéis, que insistem em sua crença absoluta, o que desejo aqui é repousar um pouco no ambiente acolhedor, sinto falta do velho órgão, que enchia o ambiente com notas sacras, sinto falta, sou uma espécie de turista jogado no interior da igreja, registro a cena e caio fora simples assim, o café me deixou mais desperto, as carolas, os cânticos, a estátua de Santo Antonio distantes a não mais alcançar-me, sem mais paixão envolvida, o elo rompido que espaço é este? o olhar distante e cogniscitivo... levantar... a retirada repentina... meu silêncio respeitoso, não incomodar... um trocado na urna de auxílio... as portas, o sol da manhã..."


04 janeiro 2020

Aspectos do neoliberalismo (I)


Varsóvia, 1994


Aproveitando o tempo bondoso das férias, procuro realizar com algum ânimo e dedicação, ainda que sem o devido apuro acadêmico, leituras envolvendo o tema do neoliberalismo. São diversos autores que pretendo estudar e na medida do possível, irei destacando alguns pontos que considere relevantes da discussão de cada um.

Por essa razão, os títulos das postagens se repetirão, com o acréscimo do numeral romano. Começo abaixo com o oportuno trabalho organizado pelo Prof. Antonio Corrêa de Lacerda, da Faculdade de Economia e Administração da PUCSP, O Mito da Austeridadepublicado pela Contracorrente em 2019. 

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"Duas características marcam, essencialmente, a ideologia neoliberal: primeiro, o princípio da concorrência. A competição possui um papel-chave nessa ideologia, norteando toda organização econômica. Segundo, o princípio ético da autossuficiência, com a ação individual, dentro de um sistema competitivo, devendo prover as necessidades econômicas e sociais. 

A competição e a autossuficiência não negam a ação estatal, mas ela só se justificaria a fim de garantir as condições para que a ação individual e a concorrência se desenvolvam de maneira plena. Nesse sentido, não haveria uma oposição entre mercado e Estado no neoliberalismo, mas uma crítica às formas de intervenção estatais que não tenham como princípio favorecer a concorrência entre os agentes econômicos".

(Pereira, Mariana R. Janssen. Políticas sociais frente à austeridade, in: Lacerda, Antonio Corrêa de (org.), O Mito da Austeridade, editora Contracorrente, 2019, p. 82). 


03 janeiro 2020

Poesia 17

Cemitério judeu de Praga, 1994


Indisciplina

   
Eu, dentre outros,

que sobrevivemos

que alimentamos

desalentos e esperanças,

nos convencemos

de que resistir é preciso


(junho/2009)