Foram precisos mais de vinte anos para que alguns textos meus ganhassem
visibilidade pública. Começou no ano passado, quando publiquei de maneira decente meu
premiado A Paixão Inútil (1997). Nesta semana, por fim,
consigo publicar em uma revista de filosofia um capítulo de minha dissertação
de mestrado (1999), com o título Sartre e o Cinema. E agora vem aos
poucos a lume, saindo das prateleiras profundas de minha casa, a premiada
novela Jornada em Cambeville (1998). Quero em breve, se
possível ainda neste ano, publicá-la decentemente, ou seja, sob uma editora real e registro de ISBN.
O que esses
textos têm em comum? Além de terem sido concebidos e produzidos no mesmo
período, anos 1990, aportam a temática existencialista, marca indelével de meus
primeiros escritos sérios, que conseguiram sobreviver. E é bacana que ressurjam
com força agora, tanto tempo depois. Fizeram parte de um momento em que
organizava metodologicamente não apenas meus textos literários e acadêmicos, mas
minha própria vida, oferecendo-lhe um horizonte embasado em uma visão de mundo
humanista e por que não dizer, pronta para agregar o sentido da inquietação
revolucionária.
Abaixo, um trecho da novela.
"... a conta à minha frente, um valor simbólico... tome uma nota de cinco, adeus... o calçadão... o movimento do comércio apenas se inicia, os consumidores chegarão mais tarde... a praça da matriz, as imensas portas da igreja... a missa vai avançada... quantas vezes terei adentrado este espaço?... O padre Simphoriano, sua voz de imigrante alemão, incompreensível... Os pássaros voando ao alto, dezenas de pessoas disputando um lugar nos bancos... meu avô sempre na terceira fileira da direita, compenetrado, fiel... O padre conclui o sermão... em outros tempos ficaria arrependido por chegar tão atrasado... os recados para os paroquianos presentes, uns poucos gatos pingados nesta primeira missa do dia, a maioria gente idosa, concentrada nas cadeiras da frente... a penúltima fileira, o banco vazio... sentar... observar... recomeçam os cânticos conduzidos pelas carolas de véu... estranhos, mal distingo as letras pelos ecos difusos das vozes a ressoar no interior da catedral vazia... o teto da nave principal, de uma brancura irretocável, a ausência dos pássaros a voar e a ignorar cá embaixo o movimento dos golpes de mea culpa no peito dos seres arrependidos... no fundo do altar o meu velho conhecido Santo Antonio, a mesma túnica franciscana tendo no colo a pequena criança, que ainda hoje não imagino quem possa ser... o ritual da eucaristia, como todo ritual, um sacrifício para acompanhar... o gestual do padre, muito jovem por sinal, nenhuma ou pouca diferença desde que abandonei a fé cristã... por mais que queira ter algum sentimento saudoso, vejo objetos, aparências, fisionomias, o cenário ao redor, perderam as auras mágicas que propunham acalentar de algum modo o espírito pecador, agora códigos revestidos por uma significação menos sagrada, mais libertadora, dogma que não mais dialoga com a minha razão... as velas seguem queimando... os pórticos menos portentosos... a entrada da sacristia, minha primeira comunhão... o padre dirige-se aos fiéis, que insistem em sua crença absoluta, o que desejo aqui é repousar um pouco no ambiente acolhedor, sinto falta do velho órgão, que enchia o ambiente com notas sacras, sinto falta, sou uma espécie de turista jogado no interior da igreja, registro a cena e caio fora simples assim, o café me deixou mais desperto, as carolas, os cânticos, a estátua de Santo Antonio distantes a não mais alcançar-me, sem mais paixão envolvida, o elo rompido que espaço é este? o olhar distante e cogniscitivo... levantar... a retirada repentina... meu silêncio respeitoso, não incomodar... um trocado na urna de auxílio... as portas, o sol da manhã..."
Abaixo, um trecho da novela.
"... a conta à minha frente, um valor simbólico... tome uma nota de cinco, adeus... o calçadão... o movimento do comércio apenas se inicia, os consumidores chegarão mais tarde... a praça da matriz, as imensas portas da igreja... a missa vai avançada... quantas vezes terei adentrado este espaço?... O padre Simphoriano, sua voz de imigrante alemão, incompreensível... Os pássaros voando ao alto, dezenas de pessoas disputando um lugar nos bancos... meu avô sempre na terceira fileira da direita, compenetrado, fiel... O padre conclui o sermão... em outros tempos ficaria arrependido por chegar tão atrasado... os recados para os paroquianos presentes, uns poucos gatos pingados nesta primeira missa do dia, a maioria gente idosa, concentrada nas cadeiras da frente... a penúltima fileira, o banco vazio... sentar... observar... recomeçam os cânticos conduzidos pelas carolas de véu... estranhos, mal distingo as letras pelos ecos difusos das vozes a ressoar no interior da catedral vazia... o teto da nave principal, de uma brancura irretocável, a ausência dos pássaros a voar e a ignorar cá embaixo o movimento dos golpes de mea culpa no peito dos seres arrependidos... no fundo do altar o meu velho conhecido Santo Antonio, a mesma túnica franciscana tendo no colo a pequena criança, que ainda hoje não imagino quem possa ser... o ritual da eucaristia, como todo ritual, um sacrifício para acompanhar... o gestual do padre, muito jovem por sinal, nenhuma ou pouca diferença desde que abandonei a fé cristã... por mais que queira ter algum sentimento saudoso, vejo objetos, aparências, fisionomias, o cenário ao redor, perderam as auras mágicas que propunham acalentar de algum modo o espírito pecador, agora códigos revestidos por uma significação menos sagrada, mais libertadora, dogma que não mais dialoga com a minha razão... as velas seguem queimando... os pórticos menos portentosos... a entrada da sacristia, minha primeira comunhão... o padre dirige-se aos fiéis, que insistem em sua crença absoluta, o que desejo aqui é repousar um pouco no ambiente acolhedor, sinto falta do velho órgão, que enchia o ambiente com notas sacras, sinto falta, sou uma espécie de turista jogado no interior da igreja, registro a cena e caio fora simples assim, o café me deixou mais desperto, as carolas, os cânticos, a estátua de Santo Antonio distantes a não mais alcançar-me, sem mais paixão envolvida, o elo rompido que espaço é este? o olhar distante e cogniscitivo... levantar... a retirada repentina... meu silêncio respeitoso, não incomodar... um trocado na urna de auxílio... as portas, o sol da manhã..."