30 junho 2019

O descalabro em estado de normalidade


Caracas, 2009


Faz dez anos, igualmente em um domingo ensolarado, que eu tomava a foto acima em Caracas, em meio à mobilização popular contra a deposição de José Manuel Zelaya, então presidente de Honduras. Parece-me significativa a imagem assim como o fato pois era uma clara reação contra uma espécie de golpe incomum em nosso continente, uma ação concatenada pelos agentes do poder legislativo e jurídico visando a deposição "forçada" de um presidente eleito, ação cuja logística foi comandada pelos militares. Mais de dez mil pessoas se reuniram diante de Miraflores e passamos a ouvir uma transmissão de Hugo Chávez, que havia se dirigido para Manágua para encontrar Zelaya. 

Daí em diante acompanharíamos golpes "forçados" de matizes similares no Paraguai e no Brasil. A Sul América progressista se desmontava com as eleições de Macri na Argentina (2015) e de Lênin Moreno no Equador (2017), dois políticos que assumiriam caminhos neoliberais e sepultariam os anos de ouro das experiências nacional-populares, demarcada de maneira histórica pela Cumbre da Alca em Mar del Plata, em 2005. Ali pela primeira vez se articularam os esforços diplomáticos e políticos comandados por lideranças da estirpe de Lula, Kirchner, Chávez, Morales, Corrêa, que abririam novos horizontes para uma integração à esquerda, com prioridade para o desenvolvimento do bem-estar social. 

Corte para os tristes e cinzentos dias de 2019. Ainda há pouco acompanhei à distância apoiadores de do juiz Moro e de Bolsonaro na Paulista, vergando as já tradicionais camisas amarelas da seleção ou cobertos pela bandeira brasileira, em uma demonstração patética de defesa da reforma da previdência, do plano de segurança proposto por Moro e de apoio ao desgoverno de Bolsonaro. Soa absurdo que haja tantas pessoas (imagino que se reuniram milhares em diversas capitais) que ainda acredite nas propostas imediatistas de um governo sem projetos a longo prazo, e que ao contrário, desmonta as estruturas voltadas para o atendimento público, como a educação, a saúde, a previdência social.

Em circunstâncias normais o momento seria de completo refluxo dessas forças do retrocesso, que conseguem se manter incólumes diante do descalabro instalado, da série de denúncias graves contra a isenção do próprio Moro e a tropa da Lava-Jato. A característica do que se convenciona chamar de fake news é a capacidade de misturar o que é fato com o que é ficção e assim confundir a análise política com bases sólidas. Como diria Bauman, tudo se liquefaz em verdade e mentira, certo e errado, guerra e paz, e o mundo se embota em sucessivas versões falaciosas, onde o histriônico e a arrogância ganha ares de modelos de respeito. 

Os pobres miseráveis - e os vi em boa quantidade acompanhados por seus filhos - agitam o verde e amarelo sem a consciência profunda dos fatos, sem a compreensão oferecida pelo debate político que não existe e dessa maneira, sem a chance de constituir a cultura política que os orientem em momentos emblemáticos como este. Mitificam seus hipotéticos líderes como se isso os redimisse da desgraça social que os cerca. A grande confusão de informações instalada não pode ser lida, identificada e compreendida sem uma formação que os faria ver como ficaram à margem de tudo. O descalabro instalado não pode ser mensurado pelas pequenas coisas.



17 junho 2019

Em torno da XXVIII Compós - Porto Alegre

Concentração na Esquina Democrática, Greve Geral, PoA 

Reuniu-se na PUCRS na semana passada o XXVIII Compós, reunindo um punhado seleto de pesquisadores da pós-graduação em Comunicação do país. Foram três dias de atividades intensas, vinte grupos de trabalho com dez trabalhos aprovados em cada um. Juntamente com Mônica Nunes, participei do grupo de trabalho Memória nas Mídias, apresentando o texto "FOLKERS, BARDOS E BARBADOS: memória, utopia e política no medievalismo brasileiro". No final, ainda estivemos na concentração da Greve Geral de 14 de junho, que culminou no início da noite em grande passeata contra a política econômica do desgoverno Bolsonaro.

Abaixo, destaco alguns trechos de nosso texto.

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As memórias do medievo aparecem não apenas em narrativas como quando relatam oralmente as lendas arturianas que inspiram a formação de suas escolas de combates. Estas memórias são encadeamentos simbólicos que codificam gestos de luta, vestimentas, alimentos, armas e uma série de outros objetos em textos, no sentido de Lótman (1996), por sua vez apreendidos como medievais desde a infância, nos livros de histórias ou na televisão, nas produções da web e em tantas outras mídias e linguagens. Ao dizermos que um objeto pode ser um texto cultural, entendemos que ele é codificado de alguma maneira, e, por certo, os códigos do medieval nos são desconhecidos, mas, pensando com Lótman, “teremos que os reconstituir, baseando-nos no texto que nos é dado” (LÓTMAN, 1996, p. 93).
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Circunscrevendo nossas observações a estes agrupamentos jovens, este artigo busca demonstrar que as memórias produzidas pelo medievalismo são teatralizadas e nestas teatralidades da memória um tempo textual se cria internamente, o tempo utópico, próximo à idealização, ao mito, às hierofanias. Entretanto, porque o texto e a memória podem ser pancrônicos, as urgências do tempo presente, neoliberal, incidem sobre o que é possível narrar e desejar. Inevitavelmente, aqui, o texto cultural atravessa-se do político, uma vez que “o político não se configura por problemáticas e temas, mas especialmente pela maneira pela qual se constroem as relações com a vida, com o entorno, com os outros, com a memória, a cultura e o artisticamente estabelecido” (DIÉGUEZ, 2019, on line).
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Fantasias, músicas, objetos funcionam como operadores para que “o encontro fique mais imersivo”, nas palavras dos administradores da página; para nós, codificam as teatralidades das memórias do medieval. Neste sentido, imersão e teatralização gozam de uma mesma propriedade: “um instinto de transfiguração capaz de criar um ambiente diferente do dia-a-dia, de subverter e transformar a vida” (DIÉGUEZ, s/d, on line, 2019). As rupturas do cotidiano abertas pelas teatralidades das memórias do medievo, tornado texto no tempo, instauram um pulsar utópico: o tempo interno da ficção.
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Sempre os contatos anteriores de nossos trabalhos de campo tiveram por princípio a aproximação discreta e respeitosa às teatralidades medievalistas pesquisadas. (...) A matriz medievalista em sua larga abrangência histórica prevalecia na caracterização dos que vinham fantasiados. Eram guerreiros, cavaleiros, arqueiros, bardos, vikings, que se misturavam às referências ficcionais da época, como faunos e elfos. Não é ao acaso a escolha do lugar em que realizam os encontros, o parque (ou o bosque) recupera a função simbólica da floresta na Idade Média, lugar privilegiado da caça para a aristocracia e de sobrevivência para os desgarrados esfomeados (DUBY, 1988).
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O sentido utópico recupera o mundo d´A Utopia de Tomas Morus, ao projetar um lugar ideal, ainda que no caso dos folkers contemporâneos, restrito a outro jeito de atuar politicamente no mundo, em resguardá-lo da poluição e ao mesmo tempo promover os sentidos do prazer, da diversão, do lúdico em cada encontro. É possível ouvir nos pequenos espaços dos parques as palavras de Rafael Hitloteu, o narrador de A Utopia, de Thomas Morus, ressoando em seu longo argumento sobre um lugar que proporciona o bem-estar de seus cidadãos livres, “na Utopia as leis são pouco numerosas, a administração distribui indistintamente seus benefícios por todas as classes de cidadãos (...), a riqueza é tão igualmente repartida que cada um goza abundantemente de todas as comodidades da vida” (MORUS, 1978, p. 203).
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Por mais que as coletividades lúdicas incorporem modos de ser do tempo medieval, como a honra e a vitória pela espada, compreendendo-os como referências importantes do ponto de vista ético e moral que se perderam no tempo presente, a reprodução desses modos de ser medieval na verdade expressa a inescapável vinculação desses participantes ao sistema normativo neoliberal. Assim, a brincadeira atua como uma sutil extensão do que vivemos na dura realidade social neoliberal, a começar pelo enfraquecimento dessa própria vivência coletiva, visto que os indivíduos “são submetidos a um regime de concorrência em todos os níveis” (DARDOT & LAVAL, 2016, p. 9).
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Não nos parece suficiente a condenação do sistema normativo com seus indispensáveis dispositivos disciplinares sem uma compreensão de que a racionalidade neoliberal, como expressão do capitalismo financeiro, com seus excessos e privações, se estabelece como consenso “na nova ordenação das atividades econômicas, das relações sociais, dos comportamentos e das subjetividades” (DARDOT & LAVAL, p. 203).
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